Navegando Posts em Personalidades

Cientista de Mérito Incontestável: “Pai da Moderna Mandiocultura Brasileira”

Quem pode, alegre, o campo ver florir,
No céu da noite escura ver estrelas,
Ouvir e ver, ao longe, o mar bramir,
Buscar as coisas belas para sorvê-las!

Quem pode ouvir a fala da criança,
E o perfume das flores respirar,
E em sua fé nutrir a esperança
De um dia ver a Deus, e a ele orar!

A música divina e a pintura
Que são da natureza o som e a imagem,
Quem pode ouvi-la e ver na tela pura,
A orquestração das cores na voragem!

De tais messes quem pode desfrutar,
Não irá outro Bem jamais querer
Pois dirá: Deus! que mais posso almejar
Senão p’ra sempre assim poder viver!

Edgard San’Anna Normanha (1992)

Em nosso país existe tradição em louvar personagens mediáticos, sejam eles meritosos, medianos ou simplesmente medíocres. Mais e mais acentua-se a focalização nesses últimos, e holofotes possantes iluminam tantas vezes aquele que, por motivos os mais variados, sabe conquistar uma mídia que deveria clamar por competência. Aparência da verdade. Se atentarmos aos jornais, revistas, emissoras de rádio e de TV e textos de provedores internéticos, a decadência ético-moral e da língua portuguesa, tem sido sem tréguas. Enfim, é o que temos.

Edgard Sant’Anna Normanha foi um dos mais importantes cientistas brasileiros numa área que desabrochava para estudos aprofundados da agricultura. Quem dele se lembra hoje? Pesquisadores meritórios da área de raízes e tubérculos e aqueles que tiveram o privilégio de conhecê-lo. Edgard Sant’Anna Normanha deixou um legado extraordinário e as ações em sua especialidade serviram para salvar povos carentes de inanição no Brasil, na África, na Ásia e em países da América Central. Debelou pragas, salvou culturas fadadas ao desaparecimento, dedicou uma vida inteira à sua especialidade, cercando-a não apenas com o conhecimento específico. Possuía uma visão enciclopédica, pois idiomas vários, espanhol, inglês, francês, italiano, alemão e latim não lhe eram estranhos, assim como a matemática. Nos momentos de devaneio, Edgard escrevia poesias ou textos leves e sensíveis.

Nascido aos 5 de Setembro de 1914 em Carinhanha na Bahia, às margens do Rio São Francisco, quase fronteira com o Estado de Minas Gerais, ainda na infância mudou-se com a família para São João del Rey, onde cursaria o primário no Grupo Escolar João dos Santos (1924/26), concluindo-o em Niterói, no Estado do Rio de Janeiro (1927). O curso secundário seria realizado no tradicional Internato do Colégio D. Pedro II do Rio de Janeiro (1928/32) e o curso superior na respeitada Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, em Piracicaba, no Estado de São Paulo (1933/36). De 1937 a 1965 Edgard Sant’Anna Normanha trabalhou na Seção de Raízes e Tubérculos do respeitado Instituto Agronômico do Estado de São Paulo, em Campinas, tendo realizado seus mais importantes experimentos agrícolas com a cultura da mandioca.

O cientista não se restringiria apenas à pesquisa da mandioca, sua especialidade, mas incursionaria por rincões desse imenso país, juntamente com ilustres colegas, estudando a batata doce, o cará, a mandioquinha salsa, a araruta industrial e as aracéas comestíveis. Saliente-se, nessas viagens, a companhia do colega Pedro Teixeira Mendes em 1939 e José Elias Paiva Neto em 1942. Em 1951, Sant’Anna Normanha percorreria extensa região do Nordeste, colhendo quantidade apreciável de variedades de mandioca. A viagem resultou em estudos  aprofundados e apresentados em reuniões científicas no Brasil e no Exterior. Dedicar-se-ia, igualmente, ao aperfeiçoamento e desempenho de implementos agrícolas relacionados às suas pesquisas, tendo sido, possivelmente de maneira pioneira no mundo, aquele que ajudou a plantar um hectare de mandioca a partir da técnica de tração mecânica, por ele desenvolvida para o mister, exemplo de sua curiosidade e dedicação a tudo relacionado a raízes e tubérculos. A primeira máquina de preparar manivas receberia, em sua homenagem, o nome de “normaniva”.

Juntamente com seu colega do Instituto Agronômico de Campinas, Araken Soares Pereira, Normanha apreendeu as melhores condições e épocas para o plantio da mandioca e essas pesquisas levaram ao aproveitamento 80% superior aos processos anteriores de cultivo.

Bolsista da John Simon Guggenheim Memorial Foundation de Nova York, realizou pesquisas importantes relativas à mandioca entre 1952 e 1953.

Notável sua atividade no México de 1962 a 1971, país em que estagiava durante mês a cada ano. Desenvolveu e assessorou para empresa privada, a produção industrial da mandioca no Estado de Chiapas, região de Tapachula, destinada à produção de amidos e dextrinas, tendo mais do que duplicado a produção da mandioca para esse fim. Louve-se a utilização de plantadeiras fabricadas no Brasil, que foram de grande eficácia para esse fim, pois Normanha idealizou a mecanização do preparo (corte) que pela primeira vez foi utilizada em culturas de mandioca no México. Expressivos os seus experimentos para aprimoramento do cultivo do lemon grass e da citronela em terras mexicanas. A empresa privada “Adesivos Resistol” rendeu tributo a Edgard Sant’Anna Normanha pelos resultados obtidos, dando o nome do cientista a uma Estação Experimental de Mandioca, localizada nos arredores de Tapachula.

 

 

Importantes suas pesquisas que ajudaram a debelar pragas que acometiam o barbasco, planta nativa do México (maior produtor mundial) e países da América Central e de cujos tubérculos se obtém a diogesnina, precursora da cortisona e hormônios do sexo. Ter debelado a praga na Nicarágua valeu-lhe ser recebido, como reconhecimento, pelo presidente e ditador Anastasio Somosa.

Como assessor da FAO (Food and Agriculture Organization of United Nations), obteve resultados exemplares com suas pesquisas. Em 1975 passaria três meses na prestigiosa organização com sede em Roma, e também em outras capitais da Europa, a fim de elaborar projetos fundamentais à cultura da mandioca e de tuberosas em países de clima tropical.  Foram várias incursões em tantas regiões do Exterior. Apenas para mencionar alguns países onde atuou temporariamente: México, Guatemala, Nicarágua, Paraguay, Gâmbia, Togo, Nigéria, Angola, Sri Lanka (Ceilão), Thailândia.

No “Mandi-Notícias”, informativo técnico e geral sobre mandiocultura da Sociedade Brasileira de Mandioca (ano II, nº único – 1979), escreve o editor, o ilustre engenheiro agrônomo José Osmar Lorenzi: “A EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária em 26 de abril de 1977 lhe outorgou o Prêmio Frederico de Menezes Veiga, observando: ‘Ao lhe conceder o Prêmio Frederico de Menezes Veiga, a EMBRAPA pretende render um tributo ao pesquisador que aliou à sua missão científica um alto grau de simplicidade e, precisamente por isso, construiu um trabalho de inestimável valia para aqueles que, agora, buscam soluções mais econômicas e que atendam ao desenvolvimento nacional. Para tanto, é obrigatória a consulta à sua longa e substanciosa experiência”. Uma expressiva homenagem do Instituto Agronômico de Campinas foi prestada ao insigne pesquisador, pois atribuíram-lhe o nome de uma alameda na Fazenda Santa Elisa, pertencente ao I.A.C.

Edgard Sant’Anna Normanha deixaria dezenas de artigos publicados no Brasil e no Exterior sobre suas pesquisas e descobertas na área das raízes e tubérculos. A grande maioria depositada no referencial Instituto Agronômico de Campinas, onde realizou a maior parte de seus trabalhos. Certamente foi um cientista que ajudou a mitigar a fome em países onde escassez se fazia soberana. Quantos não foram as milhares e milhares de pessoas que lhe devem a vida mercê de suas atuações? Teve sempre o apoio de ilustres colegas do Instituto Agronômico de Campinas.

Sou um privilegiado. Foi uma dádiva tê-lo como sogro. Casado com a ilustre pedagoga e professora de piano Olga Rizzardo Normanha (vide blog “Professora Olga Rizzardo Normanha – 1915-2013, 02/03/2013), viveram concentrados em servir a comunidade em suas áreas específicas. Minha mulher Regina e minha cunhada Maria Elizabeth seguiriam os passos musicais maternos. Quando do estágio nos Estados Unidos, como bolsista da Fundação Guggenheim, fez-se acompanhar de sua esposa Olga e da filha Regina, então com 12 anos de idade. Pianista precoce, Regina participaria do Junior Bach Festival em Berkeley, na Califórnia. No link abaixo, a gravação ao vivo de uma peça de seu recital, inteiramente dedicado a J.S.Bach.

Clique para ouvir, de J.S. Bach, o Prelúdio da Suíte Inglesa no. 2, com Regina Normanha ao piano (1953).

Curiosamente, foi em uma das viagens do Dr. Edgard (assim sempre o chamei) ao México, acompanhado de Olga e Maria Elizabeth, que esta conheceria o “cicerone” da empresa para a qual meu sogro trabalharia temporariamente, o competente engenheiro químico e de segurança Luiz Atristain Martinéz. Casaram-se e estão fixados na capital mexicana. Salientaria que a cultura enciclopédica do Dr. Edgard era magnânima, generosa. Jamais, friso, jamais deixou de responder às questões que nossas filhas lhe formulavam. Se dúvida pairasse, telefonava-nos e, com carinho, nunca deixava pergunta sem resposta. Menciono também o fino senso de humor de meu sogro, que encantava a todos que o conheceram. Ágil no raciocínio, era “mestre” nos trocadilhos e na arte de desenhar. Esse lado humano e sensível ficaria externado nos inúmeros poemas que deixou. Faleceu em Campinas aos 17 de Novembro de 2002.

Nesse Brasil a deriva sob o aspecto político e também cultural, onde falsos valores são glorificados, a lembrança de uma figura tão expressiva e fundamental à nossa agricultura, exemplar sob os aspectos ético e moral, criativo na ampla acepção da palavra, torna esse post um singelo tributo a Edgard Sant’Anna Normanha nesse  dia 5 de Setembro, data de seu centenário.

This post is a tribute to the memory of Edgar Sant’Anna Normanha in the centennial of his birth. A cassava (manioc) researcher, Normanha was expert in roots and tubers, helping fight hunger in many tropical countries. He was also my father-in-law, a man I learned to admire not only for his acute mind and commitment to his work, but also for his uprightness, sense of justice and humor.

 

 

 

 

 

Compositor e Professor de Imenso Valor

A entidade musical apresenta pois,
essa estranha singularidade de conter dois aspectos,
de existir simultânea e distintamente
sob duas formas separadas uma da outra pelo silêncio do vazio.
Essa natureza particular da música
comanda a sua própria vida e suas repercussões na ordem  social,
pois ela supõe duas espécies de músicos: o criador e o intérprete.
Igor Stravinsky

A morte sempre causa impacto, seja de quem for. O desaparecimento de um músico da maior qualidade, com quem mantive relacionamento de amizade e musical, não deixa de ser sentida no âmago.

Conheci Mario Ficarelli nos anos 1950 e frequentamos a Academia Paulista de Música nos meados da década. Para o leitor, diria que a Academia teve entre seus docentes alguns dos mais competentes músicos, cujos nomes ultrapassaram fronteiras. Fato muito raro em São Paulo, seja em Conservatório ou em Universidade. Entre seus mestres, professores de altíssimo nível. O Brasil voltado à música clássica conhecia sobejamente todos os nomes que se seguem: Eleazar de Carvalho, José Kliass, Souza Lima, Caldeira Filho, Fritz Jank, Dinorah de Carvalho, Raul Laranjeira, Bernardo Federowsky, Jaime Ingram, entre outros mais. Uma verdadeira seleção de expoentes. Mario Ficarelli não apenas estudava composição, como exercia funções administrativas que o ajudaram a manter seus estudos. Num período em que a classe estudantil apenas pensava música, o convívio aluno-mestre tornou-se verdadeiro amálgama.

Estou a me lembrar de um verdadeiro companheirismo e aprendi, desde esse período, a admirar Ficarelli por suas posições firmes e dedicação exemplar à música. Antes de completar o curso recebi bolsa do governo francês, após premiação em concurso de piano em Salvador, e permaneci vários anos em Paris. Ao regressar ao Brasil, encontramo-nos em muitas oportunidades, sempre prazerosamente e, no início dos anos 1980, ao ingressar no Departamento de Música das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), partilhamos nossa vida acadêmica, que se prolongaria definitivamente na Universidade de São Paulo logo após.

Essa introdução se fez necessária, pois ligações de amizade de quase seis décadas merecem a lembrança. Mario (sem o acento agudo) foi um de nossos maiores nomes na composição brasileira. Teve a coragem, em período em que se “degladiavam” nacionalistas e vanguardistas, de não se filiar a nenhuma corrente e seguir um caminho seguro, o que levaria ao respeito nacional e, sobretudo, internacional. Sob outra égide, Ficarelli jamais negou a existência de seus eleitos. Entre eles, Jean Sibelius, Gustav Mahler, Igor Stravinsky. Debruçou-se sobre as sete sinfonias de Sibelius e defendeu magnífica tese de doutoramento na Universidade de São Paulo. Participei do júri. Logo após realizaria o concurso de Livre-Docência, a abordar sua Sinfonia nº 2, Mhatuhabh. Como compositor praticou uma linguagem de altíssima competência, a obedecer unicamente aos seus propósitos interiores.

O catálogo de Mario Ficarelli é extenso, a abranger mais de 150 obras para formações instrumentais as mais diversas, como sinfônica, cênica, vocal, coral e camerística. Sua obra deverá permanecer pela qualidade e independência.

Mario Ficarelli legou-nos uma bibliografia de síntese, conceitual. Há em seus escritos a necessidade de expor posições firmes e sinceras. Mestre ao abordar a elaboração de suas próprias criações, não escondendo os processos que levariam à definição de uma obra. Como professor, acredito ter sido um dos mais competentes entre os que conheci na Universidade de São Paulo, pois concentrava-se essencialmente na obra musical, analisando-a com acuidade e sem vacilos. Em suas aulas inexistia a palavra tergiversar e aqueles que tiveram o privilégio da formação segura sob seus cuidados são testemunhas. Inúmeras vezes conversamos sobre temas em que eu estava a trabalhar, como Rameau, Scriabine, Debussy, Henrique Oswald, música contemporânea. Por vezes éramos rodeados por alunos conscientes. Momentos para lembrar.

Nossa relação amistosa jamais teve um senão e recebi de Mario quatro peças para piano, tendo apresentado três delas em primeira audição. Pegadas na Areia (São Paulo 1983),  Minimal-Ciranda (São Paulo, 1987), Estudo nº 3 (Gent – Bélgica, 1996). Pegadas na Areia e Minimal-Ciranda integrariam cadernos que editei na USP em homenagem a Henrique Oswald (1985) e Villa-Lobos (1987), respectivamente. Essa última peça gravei-a posteriormente na Bulgária para o CD Music of Tribute, dedicado ao autor das Bachianas e lançado pelo selo Labor (USA). Sobre a peça, escreveu François Servenière (2011): “O minimalismo de Mario Ficarelli é impressionante, pois mesmo que a consideremos divertida, simples, repetitiva e cíclica, seu interesse reside nas ínfimas variações, que nos hipnotizam como uma serpente naja no instante do ataque”. Quanto ao Estudo nº 3, gravado na Bélgica para o CD Estudos Brasileiros para piano e lançado pela Academia Brasileira de Música, Servenière comenta: “No Estudo nº 3 há todo o potencial de dissonância da linguagem contemporânea. As harmonias são na realidade politonais e trabalham sob essa particularidade dos harmônicos característicos dos instrumentos de cordas. O final tem cadência mais tonal”. Paradigmas – Estudo nº 4 teve a première realizada por minha mulher, a pianista Regina Normanha Martins (Rio de Janeiro, 2001). A obra veio a integrar o álbum de Estudos para piano que elaboro desde 1985, dele a constar, presentemente, 90 colaborações do Brasil e do Exterior. Essa composição foi dedicada à minha saudosa mãe por ocasião de seu falecimento, em 1999. Mario sempre teve especial apreço pela homenageada. Segundo Ficarelli, a composição Paradigmas “evoca a morte e a ressurreição e foi escrita a partir de alguns de seus mais notáveis símbolos musicais, no entendimento do autor. Não se tratando de meras citações ou colagens, constituem-se em paradigmas que são ordenados de modo evolutivo a partir da morte, perpassando conflitos, vencendo-os, para chegar à vitória do renascimento”.

O nosso desligamento da Universidade de São Paulo pela compulsória, ele em 2005 e eu em 2008, levou-nos a comunicações mais raras, mas nunca desprovidas de afeto. Quando de minha eleição para ingresso na Academia Brasileira de Música, como membro honorário, em 2010, foi dele, membro efetivo imortal, uma carta que me emocionou.

O diálogo competente entre Mario Ficarelli e Roberto Duarte e a profunda amizade entre os dois, tendo a música como fulcro, levou-me a convidar o ilustre maestro para que escrevesse um depoimento sobre o compositor. Transcrevo-o ao prezado leitor:

O amigo-irmão Ficarelli

“Assim nos tratávamos, pelo sobrenome, sem que isto tivesse qualquer intenção de formalidade. Apenas hábito.

Ficarelli era um mestre por excelência. No latim ele encontrou o título para uma das suas mais interessantes obras, Transfigurationis, encomenda do Maestro Eleazar de Carvalho para a temporada de 1981 da OSESP. Tive a honra de regê-la em sua estreia mundial. Dois fatos curiosos (transformações) aconteceram à época dos ensaios e da apresentação da obra: 1. iniciava-se entre nós uma sólida amizade; 2. tornei-me vegetariano. Efeito da obra ou mera coincidência?

Desde Transfigurationis nota-se o cuidadoso uso da percussão, que para Ficarelli não era um mero acessório e sim parte integrante da ideia geradora da obra. Duas notas (fá-mi) são o ponto de partida. Correspondem ‘às duas frequencias que caracterizam a Terra’… ‘Kepler, em sua terceira lei, determina que os planetas produziriam determinados sons quando da realização de seus movimentos no espaço’, como explicava Ficarelli. Suas harmonias são ora audaciosas, ora simples, transitando do tonal ao atonal. A obra termina com uma simples e literal citação do primeiro tema da Nona Sinfonia de Beethoven.

A Segunda Sinfonia ‘Mhatuhabh’, inspirada no livro I nostri amici extraterreni, de G. Grosso e U. Sartorio, foi dedicada a mim e a Tonhalle-Orchester Zürich.

Sua estreia, sob minha direção, ocorreu em Zurique, em 1992, com a Tonhalle-Orchester.

Duas páginas, com detalhadas explicações sobre a elaboração dos temas, foram anexadas ao autógrafo, com a recomendação de só serem reveladas após a sua morte.

Mhatuhabh tem Introdução e cinco movimentos e segue um programa. Sua apresentação em todas as grandes salas em que a dirigi (Zurique, Moscou, São Paulo e Rio de Janeiro) recebeu do público os mais efusivos aplausos.

Na partitura ao concluir a Sinfonia Ficarelli escreveu:

A Terceira Sinfonia, escrita sob estipêndio da Fundação Vitae, foi composta em 1992, durante sua estada na Europa. Propositalmente diferente da Segunda, sem deixar de ter a força e a vitalidade características do compositor. Sua primeira audição só foi realizada em 1998 pela (nova) OSESP, sob minha regência.

Para Sinfonia, última produção sinfônica de Ficarelli, foi uma das obras comissionadas pela Funarte para a XX Bienal. Pouco depois de concluído o trabalho, em um jantar no Rio, acompanhado de sua adorada Silvia, ele me disse com aquele seu típico ar solene-brincalhão e voz empostada: ‘Duarte, espero que você seja o regente da Para Sinfonia, mas prepare-se para suar a camisa, pois é uma obra forte e muito dinâmica’. Quis o destino que eu realmente a regesse em outubro de 2013 no Theatro Municipal do RJ, à frente da Orquestra Petrobrás Sinfônica.

Na realidade a Para Sinfonia é uma sinfonia completa em três movimentos, executados sem interrupção. As características do compositor estão presentes em cada compasso: Ficarelli sem medo de ser ele mesmo, sem maiores audácias ou extravagâncias, mas com arrojo e a inteligência de sempre. Ritmos fortes, percussão ativa e linhas melódicas simples, mas eficazes, percorrem o movimento inicial. Na parte intermediária, com o coração voltado para o romantismo, o mestre é influenciado pelo Jazz, com um solo de piano e intervenções do Vibrafone, Trompete, Clarineta e Trombone solistas. A conclusão, como não poderia deixar de ser, é otimista, feérica e retumbante.

Um retrato, sem retoques, do próprio Ficarelli”!

No blog do dia 26 de Abril, ao referir-me a quatro compositores brasileiros vivos que admirava, mencionei: Gilberto Mendes, Mario Ficarelli, Ricardo Tacuchian e Paulo Costa Lima. Enviei a Mario o post em questão. Infelizmente não recebi resposta, pois Ficarelli travava sua última batalha.

Clique para ouvir, com José Eduardo Martins ao piano, as seguintes obras de Mario Ficarelli:

This post is a tribute to the outstanding Brazilian composer and my personal friend Mario Ficarelli, who passed away last May 2. Ficarelli left more than 150 works for solo instruments, symphonic orchestra and various ensembles and has been awarded prizes in Brazil, France and Germany. This post also includes words by the prominent Brazilian conductor Roberto Duarte, who was very close to Ficarelli and premiered many of his works.

 

 

Entrevista e debate antecedendo o evento

A única pátria válida: o instante.
Silvain Tesson (Dans les Forêts de Sibérie)

Confessadamente sou admirador do geógrafo, andarilho, viajante, wanderer, vagabond, eremita, narrador e contista Sylvain Tesson. Cinquenta e tais anos após a leitura da opera omnia de Saint-Exupéry, Sylvain Tesson me encanta, como ainda hoje me seduz o pensamento do piloto-escritor. Dois aventureiros solitários, Saint-Exupéry enfrentado na solidão do espaço aéreo, desertos, montanhas e mares, Sylvain Tesson levado à primeira forma do humano seguir caminho, a pé. O aviador a se mostrar espiritualista, sonhador, romântico e poético, o andarilho a evidenciar profundas reflexões sobre a condição humana, tantas delas cáusticas, céticas, mas igualmente plenas de metáforas líricas, que incitam o leitor a também refletir.

Estou a me lembrar de que anos atrás, em Paris, ao buscar livros sobre aventura, mormente títulos sobre montanhas himalaias, fui à livraria de quartier, próxima ao local onde velhos e diletos amigos sempre me abrigaram, e encontrei Petit traité sur l’immensité du monde, de Tesson. Perguntei a um dos atendentes sobre o autor. Disse-me que nada sabia. Ao iniciar a leitura, no dia anterior ao meu regresso à minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, interessei-me e voltei à livraria, onde comprei outras obras do jovem escritor.

Tantas foram as vezes, nesse convívio semanal com os leitores, que reiterei preferência por livros de aventura ao atravessar o oceano. Fazem-me companhia, relaxam-me e provocam o aguçamento da imaginação, tão necessária a nós, brasileiros, mormente nesses últimos anos de inquietação crescente e impasse à vista.

Levei comigo Dans les Forêts de Sibérie, de Sylvain Tesson. Ainda não finalizei a leitura, mas durante o voo de ida a neta Ana Clara comentou que tantas foram as resenhas que escrevi sobre as obras do autor francês que seria ótimo se pudesse conhecê-lo. Tranquilizei-a, a dizer que três vezes escrevi às Éditions Gallimard, a partir do site, e jamais recebi resposta. O voo serviu para que o avô lesse à Ana Clara passagens reflexivas que a entusiasmaram. Brevemente escreverei resenha.

Devido ao significado da apresentação em Saint-Germain-en-Laye, tive a grata surpresa de encontrar amigos que foram especialmente para o evento: o musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso e a esposa Manuela chegaram de Portugal, meu ex-aluno Paulo Filla e a esposa Noriko, do Brasil, assim como dileta amiga de Regina, a arquiteta Ana Maria Bovério. Especialmente para o recital, da Normandia, o compositor e pensador François Servenière. Nossos e-mails, trocados semanalmente, já ultrapassaram as 1.000 páginas! Música, literatura, artes e cotidiano são temas constantes nessas epístolas eletrônicas.

Passei os dias 9 e 10 de Janeiro a estudar para o recital do dia 11. Generosamente minhas amigas da década de 1960, Nicole Billy e Odile Robert, violinista e pianista, respectivamente, cederam seus pianos para ensaios que se faziam necessários.

Um dia antes da apresentação, após almoço com Paulo Filla e Noriko em café-restaurante junto à estação de metrô Convention, atravessamos a rua a fim de verificar, na mesma Librairie Le Divan onde adquirira o primeiro livro de Tesson, estabelecimento de quartier, friso, se obra nova do autor em questão fora lançada. Foi quando vi cartaz em que se lia que o livro de contos S’Abandonner à Vivre teria manhã de autógrafos no dia 12 naquele local, um dia após meu recital. O acaso de que tanto falo no livro Témoignages nº 4 (Université Sorbonne, 2012) novamente se fez presente.

Manhã fria de domingo e livraria lotada. A anteceder a sessão de autógrafos, Sylvain Tesson é entrevistado por uma senhora bem articulada e perguntas incisivas tiveram respostas à altura. Perpassou nesse diálogo parte de suas preocupações. A solidão voluntária sempre buscada e as viagens pelo mundo, menos do que apenas descrever territórios percorridos, inserem no pensamento de Tesson reflexões profundas sobre a condição humana. Dir-se-ia que Tesson, nesses desafios físico-mentais extremos, sabe que não mudará a conduta dos homens, mas leva o leitor a abandonar tantos conceitos supérfluos, realmente desnecessários,  que afligem o citadino, preferencialmente. O distanciamento das urbes e o choque de civilizações ao longo  das travessias estabelecem uma mistura rica, a depreender reflexões de profundo interesse. A natureza é imperativa e Tesson sabe extrair lições que estão sendo abandonadas pelas últimas gerações, sob riscos de que só se acentuem. Essencialmente Tesson é autor de narrativas. Todavia, visita o compartimento de contos. Indagado por que não escrever romances e sim nouvelles, respondeu que o desenvolvimento de um romance poderia obstaculizar o narrador das tantas andanças e aventuras e que o conto, pela brevidade inerente, não o impede de continuar narrativas. Paradoxalmente talvez, responderia a outra questão, a afirmar que tem preferência pelo ato que leva à escrita, em detrimento das sucessivas travessias. Insistiria em ponto recorrente, pois não gosta de ficar em lugar fixo, como Paris, fazendo-o brevemente nos regressos das aventuras a que se propõe. Contudo, observou que, a depender da mente, pode o homem ter essa “travessia” na própria cidade, mas que isso pressupõe grande controle mental.

Ao final da entrevista, a senhora que formulou perguntas abriu o debate para o numeroso público presente. Fiz-lhe questões relacionadas à música. Primeiramente, uma relacionada ao livro que estava a ler, pois ao noroeste do lago Baikal, em sua cabana isolada com apenas duas janelas, longe dezenas de quilômetros de qualquer outro humano, certo dia ficou a olhar do interior a paisagem e a ouvir Schubert. Afirmou que estudara música e que Schubert, Schumann, Fauré estavam entre seus favoritos. A seguir perguntei-lhe sobre a flauta doce que utilizou ao realizar a longa travessia de um gulag até Calcutá, fazendo-lhe companhia e a ser de grande utilidade, pois, ao se aproximar de uma daquelas tendas redondas (yourte em francês, ger em mongol) erguidas por nômades na Mongólia, miúdos surgiam à porta e a recepção amistosa era certa. Disse que aprendeu recentemente a tocar gaita de fole, pois seu som é ouvido bem ao longe.

No momento dos autógrafos entreguei-lhe cópia de meus blogs sobre sua obra, alguns de meus CDs, inclusive um com obras para piano de Fauré, e Témoignages. Em Dans les Forêts de Sibérie coloquei uma pergunta: “O que a música representa para você”? A resposta, após olhar-me e pensar uns bons segundos: “O único momento em que não estou melancólico é quando escuto música triste, que se encarrega do peso de minha pena”.

Certamente o pensamento de Ana Clara tem poder muito intenso, pois o encontro realizou-se.

My unexpected meeting with the geographer, explorer and writer Sylvain Tesson during a book signing of one of his titles in a crowded Divan bookstore in Paris, some of the questions raised by the audience and the thought-provoking answers given by Tesson.