Compositor e Professor de Imenso Valor

A entidade musical apresenta pois,
essa estranha singularidade de conter dois aspectos,
de existir simultânea e distintamente
sob duas formas separadas uma da outra pelo silêncio do vazio.
Essa natureza particular da música
comanda a sua própria vida e suas repercussões na ordem  social,
pois ela supõe duas espécies de músicos: o criador e o intérprete.
Igor Stravinsky

A morte sempre causa impacto, seja de quem for. O desaparecimento de um músico da maior qualidade, com quem mantive relacionamento de amizade e musical, não deixa de ser sentida no âmago.

Conheci Mario Ficarelli nos anos 1950 e frequentamos a Academia Paulista de Música nos meados da década. Para o leitor, diria que a Academia teve entre seus docentes alguns dos mais competentes músicos, cujos nomes ultrapassaram fronteiras. Fato muito raro em São Paulo, seja em Conservatório ou em Universidade. Entre seus mestres, professores de altíssimo nível. O Brasil voltado à música clássica conhecia sobejamente todos os nomes que se seguem: Eleazar de Carvalho, José Kliass, Souza Lima, Caldeira Filho, Fritz Jank, Dinorah de Carvalho, Raul Laranjeira, Bernardo Federowsky, Jaime Ingram, entre outros mais. Uma verdadeira seleção de expoentes. Mario Ficarelli não apenas estudava composição, como exercia funções administrativas que o ajudaram a manter seus estudos. Num período em que a classe estudantil apenas pensava música, o convívio aluno-mestre tornou-se verdadeiro amálgama.

Estou a me lembrar de um verdadeiro companheirismo e aprendi, desde esse período, a admirar Ficarelli por suas posições firmes e dedicação exemplar à música. Antes de completar o curso recebi bolsa do governo francês, após premiação em concurso de piano em Salvador, e permaneci vários anos em Paris. Ao regressar ao Brasil, encontramo-nos em muitas oportunidades, sempre prazerosamente e, no início dos anos 1980, ao ingressar no Departamento de Música das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), partilhamos nossa vida acadêmica, que se prolongaria definitivamente na Universidade de São Paulo logo após.

Essa introdução se fez necessária, pois ligações de amizade de quase seis décadas merecem a lembrança. Mario (sem o acento agudo) foi um de nossos maiores nomes na composição brasileira. Teve a coragem, em período em que se “degladiavam” nacionalistas e vanguardistas, de não se filiar a nenhuma corrente e seguir um caminho seguro, o que levaria ao respeito nacional e, sobretudo, internacional. Sob outra égide, Ficarelli jamais negou a existência de seus eleitos. Entre eles, Jean Sibelius, Gustav Mahler, Igor Stravinsky. Debruçou-se sobre as sete sinfonias de Sibelius e defendeu magnífica tese de doutoramento na Universidade de São Paulo. Participei do júri. Logo após realizaria o concurso de Livre-Docência, a abordar sua Sinfonia nº 2, Mhatuhabh. Como compositor praticou uma linguagem de altíssima competência, a obedecer unicamente aos seus propósitos interiores.

O catálogo de Mario Ficarelli é extenso, a abranger mais de 150 obras para formações instrumentais as mais diversas, como sinfônica, cênica, vocal, coral e camerística. Sua obra deverá permanecer pela qualidade e independência.

Mario Ficarelli legou-nos uma bibliografia de síntese, conceitual. Há em seus escritos a necessidade de expor posições firmes e sinceras. Mestre ao abordar a elaboração de suas próprias criações, não escondendo os processos que levariam à definição de uma obra. Como professor, acredito ter sido um dos mais competentes entre os que conheci na Universidade de São Paulo, pois concentrava-se essencialmente na obra musical, analisando-a com acuidade e sem vacilos. Em suas aulas inexistia a palavra tergiversar e aqueles que tiveram o privilégio da formação segura sob seus cuidados são testemunhas. Inúmeras vezes conversamos sobre temas em que eu estava a trabalhar, como Rameau, Scriabine, Debussy, Henrique Oswald, música contemporânea. Por vezes éramos rodeados por alunos conscientes. Momentos para lembrar.

Nossa relação amistosa jamais teve um senão e recebi de Mario quatro peças para piano, tendo apresentado três delas em primeira audição. Pegadas na Areia (São Paulo 1983),  Minimal-Ciranda (São Paulo, 1987), Estudo nº 3 (Gent – Bélgica, 1996). Pegadas na Areia e Minimal-Ciranda integrariam cadernos que editei na USP em homenagem a Henrique Oswald (1985) e Villa-Lobos (1987), respectivamente. Essa última peça gravei-a posteriormente na Bulgária para o CD Music of Tribute, dedicado ao autor das Bachianas e lançado pelo selo Labor (USA). Sobre a peça, escreveu François Servenière (2011): “O minimalismo de Mario Ficarelli é impressionante, pois mesmo que a consideremos divertida, simples, repetitiva e cíclica, seu interesse reside nas ínfimas variações, que nos hipnotizam como uma serpente naja no instante do ataque”. Quanto ao Estudo nº 3, gravado na Bélgica para o CD Estudos Brasileiros para piano e lançado pela Academia Brasileira de Música, Servenière comenta: “No Estudo nº 3 há todo o potencial de dissonância da linguagem contemporânea. As harmonias são na realidade politonais e trabalham sob essa particularidade dos harmônicos característicos dos instrumentos de cordas. O final tem cadência mais tonal”. Paradigmas – Estudo nº 4 teve a première realizada por minha mulher, a pianista Regina Normanha Martins (Rio de Janeiro, 2001). A obra veio a integrar o álbum de Estudos para piano que elaboro desde 1985, dele a constar, presentemente, 90 colaborações do Brasil e do Exterior. Essa composição foi dedicada à minha saudosa mãe por ocasião de seu falecimento, em 1999. Mario sempre teve especial apreço pela homenageada. Segundo Ficarelli, a composição Paradigmas “evoca a morte e a ressurreição e foi escrita a partir de alguns de seus mais notáveis símbolos musicais, no entendimento do autor. Não se tratando de meras citações ou colagens, constituem-se em paradigmas que são ordenados de modo evolutivo a partir da morte, perpassando conflitos, vencendo-os, para chegar à vitória do renascimento”.

O nosso desligamento da Universidade de São Paulo pela compulsória, ele em 2005 e eu em 2008, levou-nos a comunicações mais raras, mas nunca desprovidas de afeto. Quando de minha eleição para ingresso na Academia Brasileira de Música, como membro honorário, em 2010, foi dele, membro efetivo imortal, uma carta que me emocionou.

O diálogo competente entre Mario Ficarelli e Roberto Duarte e a profunda amizade entre os dois, tendo a música como fulcro, levou-me a convidar o ilustre maestro para que escrevesse um depoimento sobre o compositor. Transcrevo-o ao prezado leitor:

O amigo-irmão Ficarelli

“Assim nos tratávamos, pelo sobrenome, sem que isto tivesse qualquer intenção de formalidade. Apenas hábito.

Ficarelli era um mestre por excelência. No latim ele encontrou o título para uma das suas mais interessantes obras, Transfigurationis, encomenda do Maestro Eleazar de Carvalho para a temporada de 1981 da OSESP. Tive a honra de regê-la em sua estreia mundial. Dois fatos curiosos (transformações) aconteceram à época dos ensaios e da apresentação da obra: 1. iniciava-se entre nós uma sólida amizade; 2. tornei-me vegetariano. Efeito da obra ou mera coincidência?

Desde Transfigurationis nota-se o cuidadoso uso da percussão, que para Ficarelli não era um mero acessório e sim parte integrante da ideia geradora da obra. Duas notas (fá-mi) são o ponto de partida. Correspondem ‘às duas frequencias que caracterizam a Terra’… ‘Kepler, em sua terceira lei, determina que os planetas produziriam determinados sons quando da realização de seus movimentos no espaço’, como explicava Ficarelli. Suas harmonias são ora audaciosas, ora simples, transitando do tonal ao atonal. A obra termina com uma simples e literal citação do primeiro tema da Nona Sinfonia de Beethoven.

A Segunda Sinfonia ‘Mhatuhabh’, inspirada no livro I nostri amici extraterreni, de G. Grosso e U. Sartorio, foi dedicada a mim e a Tonhalle-Orchester Zürich.

Sua estreia, sob minha direção, ocorreu em Zurique, em 1992, com a Tonhalle-Orchester.

Duas páginas, com detalhadas explicações sobre a elaboração dos temas, foram anexadas ao autógrafo, com a recomendação de só serem reveladas após a sua morte.

Mhatuhabh tem Introdução e cinco movimentos e segue um programa. Sua apresentação em todas as grandes salas em que a dirigi (Zurique, Moscou, São Paulo e Rio de Janeiro) recebeu do público os mais efusivos aplausos.

Na partitura ao concluir a Sinfonia Ficarelli escreveu:

A Terceira Sinfonia, escrita sob estipêndio da Fundação Vitae, foi composta em 1992, durante sua estada na Europa. Propositalmente diferente da Segunda, sem deixar de ter a força e a vitalidade características do compositor. Sua primeira audição só foi realizada em 1998 pela (nova) OSESP, sob minha regência.

Para Sinfonia, última produção sinfônica de Ficarelli, foi uma das obras comissionadas pela Funarte para a XX Bienal. Pouco depois de concluído o trabalho, em um jantar no Rio, acompanhado de sua adorada Silvia, ele me disse com aquele seu típico ar solene-brincalhão e voz empostada: ‘Duarte, espero que você seja o regente da Para Sinfonia, mas prepare-se para suar a camisa, pois é uma obra forte e muito dinâmica’. Quis o destino que eu realmente a regesse em outubro de 2013 no Theatro Municipal do RJ, à frente da Orquestra Petrobrás Sinfônica.

Na realidade a Para Sinfonia é uma sinfonia completa em três movimentos, executados sem interrupção. As características do compositor estão presentes em cada compasso: Ficarelli sem medo de ser ele mesmo, sem maiores audácias ou extravagâncias, mas com arrojo e a inteligência de sempre. Ritmos fortes, percussão ativa e linhas melódicas simples, mas eficazes, percorrem o movimento inicial. Na parte intermediária, com o coração voltado para o romantismo, o mestre é influenciado pelo Jazz, com um solo de piano e intervenções do Vibrafone, Trompete, Clarineta e Trombone solistas. A conclusão, como não poderia deixar de ser, é otimista, feérica e retumbante.

Um retrato, sem retoques, do próprio Ficarelli”!

No blog do dia 26 de Abril, ao referir-me a quatro compositores brasileiros vivos que admirava, mencionei: Gilberto Mendes, Mario Ficarelli, Ricardo Tacuchian e Paulo Costa Lima. Enviei a Mario o post em questão. Infelizmente não recebi resposta, pois Ficarelli travava sua última batalha.

Clique para ouvir, com José Eduardo Martins ao piano, as seguintes obras de Mario Ficarelli:

This post is a tribute to the outstanding Brazilian composer and my personal friend Mario Ficarelli, who passed away last May 2. Ficarelli left more than 150 works for solo instruments, symphonic orchestra and various ensembles and has been awarded prizes in Brazil, France and Germany. This post also includes words by the prominent Brazilian conductor Roberto Duarte, who was very close to Ficarelli and premiered many of his works.