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Alguns aspectos da magnificente Cultura de Portugal

Far-se-á alguma vez a sincronização,
verificar-se-á algum dia a unidade de propósitos,
a harmonia de forças entre a música portuguesa e a cultura portuguesa,
encaradas uma e outra do ponto de vista do processo nacional?
O futuro o dirá, mas não era mau que todos nós fôssemos preparando,
na medida das nossas forças, para o conseguir.
Fernando Lopes-Graça
(“A Música Portuguesa e os seus problemas”, 1959)

Nesses dezesseis anos de blogs ininterruptos publicados sempre aos sábados, um número considerável foi dedicado à Cultura de Portugal, mormente a Música. Quantos às gravações, considerando-se obras de compositores do Brasil e de Portugal, cerca de doze CDs foram dedicados às criações dos dois países, equilibradamente. Foram as dezenas de viagens a Portugal para recitais, mas igualmente para outras atividades voltadas à Música, que me levaram à ratificação do encantamento pela Cultura do país. Considero que foi fundamental o culto aos valores literários portugueses que meu saudoso Pai transmitiu aos quatro filhos. Líamos mais os autores de Portugal, de Camões aos da primeira metade do século XX, do que escritores e poetas brasileiros.

Transcorriam os blogs hebdomadários e, a certa altura, verifiquei que o retorno periódico à Cultura portuguesa se fazia de maneira espontânea.

A reunião de textos resultou na publicação, pela Imprensa da Universidade de Coimbra, do primeiro volume de “Impressões sobre a Música Portuguesa” (2011), prefaciado pelo ilustre musicólogo e autor português Mário Vieira de Carvalho, livro este que teria a edição brasileira lançada pela Editora da Universidade de São Paulo em 2014.

Daqueles anos até bem recentemente, outros 63 blogs foram dedicados à Cultura de Portugal, salientando-se sempre prioritariamente a Música, mas não negligenciando outras áreas do conhecimento. Na breve turnê que realizei em solo português no ano passado, após o décimo recital, desde um primeiro em 2004 na magnífica Biblioteca Joanina em Coimbra, apresentei à Direção da Imprensa da Universidade de Coimbra proposta que reunia aqueles posts publicados sobre música, mas também com inserções temáticas outras, como literatura em prosa e verso, história, aventura, esta última salientando o excepcional alpinista João Garcia. Foi motivo de grande alegria o comunicado de que o Conselho Editorial da IUC aprovara a publicação, que viria a ser realidade no fim de 2022. Tive sempre o incentivo do relevante João Gouveia Monteiro, um dos mais importantes medievalistas da Europa e professor da Instituição fundada em 1290. A leitura de três de seus livros basilares apenas ratifica minha admiração pelo seu perfil de grande pesquisador.

Ponderei em vários blogs que haveria a necessidade imperiosa de a Música Portuguesa ser muitíssimo mais divulgada. Poderia parecer repetição, pois insisto em vários posts nesse quesito essencial. Se alguns intérpretes de valor de Portugal buscam expandir a aceitação da criação portuguesa, haveria que existir a participação do Estado nessa propagação das composições do país, no sentido de que elas merecessem ser visitadas e tocadas por músicos de outros centros mundiais. Trata-se de um árduo trabalho de divulgação que teria de estar amparado por especialistas da área, não necessariamente músicos, mas ao menos com visão cultural ampla. É certo que a cultura erudita tem sofrido erosão, mercê do avanço avassalador de outras voltadas ao supérfluo, ao efêmero e que, renovadas não qualitativamente, seduzem multidões. Essa derrocada não vem isolada, pois contamina tradições, costumes e até moralidade.

A respeito da Música, estudiosos se debruçam sobre sua importância na sociedade portuguesa. Os musicólogos José Maria Pedrosa Cardoso (1942-2021), a quem dediquei in memoriam o livro ora publicado, e Mário Vieira de Carvalho são alguns exemplos meritórios de pesquisadores que entendem na essência essencial a relevância da criação musical portuguesa. Alguns de seus livros são mencionados no presente “Impressões sobre a Música Portuguesa” (II).

No livro em pauta, blogs foram particularmente dedicados a compositores que me são caros e que integram meu repertório pianístico habitual. Fernando Lopes-Graça (1906-1994) destaca-se entre os mais importantes compositores do século XX, infelizmente ainda não divulgado à altura nos países europeus e nas Américas, apesar do seu incomensurável valor. Em Simpósio de que participei, promovido pela Associação Lopes-Graça em Moira, observei que, se em um concerto hipotético com auditório pleno em Portugal alguém perguntar aos presentes se conhecem nosso músico maior, Heitor Villa-Lobos (1887-1959), haverá aqueles que dirão conhecer algumas obras do compositor. Mutatis mutandi, se no Brasil fizerem o mesmo em relação a Lopes-Graça, corre-se o risco de haver um silêncio sepulcral. No Brasil é quase nulo o conhecimento da composição portuguesa, hélas.

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, “Sonata em Mi Maior, nº 34, na interpretação de J.E.M.:

Carlos Seixas – Sonata nº 34 in E major – José Eduardo Martins – piano – Bing video

Diria igualmente que o notável compositor conimbricense Carlos Seixas (1704-1742) não é tocado em nosso país, ele que foi tão admirado pelo grande Domênico Scarlatti (1685-1756). Algumas das Sonatas de Seixas, que gravei ao piano para um álbum duplo de CDs (23 Sonatas, selo belga De Rode Pomp), estão no Youtube. Outros compositores portugueses também estão no aplicativo. Enumerando-os: de Francisco de Lacerda (1869-1934), açoriano de São Jorge, amigo de Claude Debussy, regente renomado, as “Trente-six Histoires pour amuser les enfants d’un artiste”; do saudoso amigo Jorge Peixinho (1940-1995), o “Étude Dei-Reihe Courante”; do brilhante compositor contemporâneo e dileto amigo Eurico Carrapatoso (1962- ), as “Six histoires d’enfants pour amuser un artiste” e  a “Missa sem palavras”. São vários os blogs dedicados a esses mestres, que dignificam a Música Portuguesa, nos quais amplio considerações a respeito de obras que tive o prazer de apresentar em solo português e brasileiro, tantas delas em primeira audição.

Acredito firmemente que, se houver empenho efetivo e permanente do Estado português, compositores como Carlos Seixas e Fernando Lopes-Graça, como exemplos, estariam a ser interpretados frequentemente no planeta. Não mereceriam o olhar que propicia aberturas?

Clique para ouvir, de Jorge Peixinho, “Étude V – Die Reihe Courante”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=Uc1PTtYbnoA

Ao longo dos anos, algumas figuras de relevo na cultura portuguesa foram lembradas após o passamento: organista Antoine Sibertin Blanc (1930-2012) – nascido em França, mas com destacada atuação como intérprete e professor em Portugal durante décadas -, pianista Sequeira Costa (1929-2019), Presidente da República Portuguesa Jorge Sampaio (1939-2021) e o musicólogo, meu amigo-irmão, José Maria Pedrosa Cardoso (1942-2021).

Aos 84 anos o tempo se abrevia, mas continuarei a pontuar as Culturas da pátria-mãe em meus blogs hebdomadários.

“Impressões sobre a Música Portuguesa” ( II ) está à disposição do leitor através do link:

https://www.amazon.com/dp/9892623231

“Impressões sobre a Música Portuguesa e outros temas” (II) focuses  primarity on Portuguese Music. Nevertheless, there are reviews about some works written by Portuguese authors. In the 63 texts, written from November 2011 to December 2021, Portugal is always kept as my point of focus.

 

Luzes a possibilitar novos aprofundamentos

Um homem que levou a sério a sua liberdade.
Pedro Picoito
(28 de Abril de 2009)

Tenho para mim que apenas a compreensão do todo possibilita a mais fidedigna interpretação dos fatos. Como tinha razões sobradas o saudoso amigo e ilustre professor de Direito Internacional da USP, Guido Soares, a entender as fases acadêmicas através da metáfora. O postulante no mestrado penetra numa floresta e conhece as diferentes espécies de árvores; quando no doutorado, concentra-se em apenas uma árvore, dissecando-a da raiz à copa; na livre docência, sobrevoa a floresta conhecendo todos os pormenores e a interpreta.

O notável historiador medievalista João Gouveia Monteiro assim o faz ao “sobrevoar” o todo do período em que viveu o personagem talvez mais emblemático da História de Portugal, Nuno Álvares Pereira. Sem a atuação do Condestável, teria hoje Portugal as suas fronteiras?  Sobre o Guerreiro Comandante, os bens recebidos do rei D. João I após as vitórias nas batalhas fundamentais para a integridade de Portugal, a fortuna que fez dele o homem mais rico de Portugal, exceção ao rei D. João I, a doação paulatina de seu patrimônio e os anos finais austeros no Convento do Carmo, por ele fundado com parte de seus bens, pesquisas profundas foram e continuam a ser realizadas, sendo crucial o livro do professor de História Medieval da Universidade de Coimbra.

João Gouveia Monteiro, ao final de “Nuno Álvares Pereira, Guerreiro – Senhor Feudal e Santo”, após desfilar o personagem em suas etapas distintas, mencionando e interpretando incontável fonte documental que remonta à Idade Média e prossegue através dos séculos, posiciona-se em tópicos capitais e sobrevoa a floresta. Não o teria feito se anteriormente uma consistente bibliografia não apontasse para obras relevantes de sua lavra a compreender o período medieval.

Transcrevo essencialidades de sua visão abrangente do grande herói português inseridas ao final de seu livro sobre o Condestável. O historiador enumera cinco significantes argumentos e outras mais considerações relativas a Nuno Álvares Pereira junto ao Convento do Carmo, onde viveria seus últimos anos, e sua afeição pelos eremitas e grupos eremíticos.

Em primeiro lugar Gouveia Monteiro menciona as palavras “pobres da serra” contidas num documento do período. Escreve: “Parece-me indubitável que estes ‘pobres da serra’ são os anacoretas da serra de Ossa” [Sul de Portugal]. Prossegue o autor: “… a expressão ‘mandou por um pobre’ é isso que sugere; tendo em conta o grau de familiaridade do Condestável com as comunidades eremíticas alentejanas, pode até ser que não se tratasse apenas de pedir informação sobre o modelo de vida, de requerer aconselhamento, mas também de tentar chamar esse modelo para junto de si, na fase final da sua vida”.

Num segundo argumento, o historiador ratifica seu posicionamento dessa ligação do Condestável com eremitas da serra de Ossa, através da doação a eles destinada, de uma casa e um terreno ladeando o Convento do Carmo, realizada por um seu cunhado, quando Nuno Álvares já estava a morar no cenóbio.

Como terceiro posicionamento, Gouveia Monteiro considera que nos tempos das batalhas, ao ajudar “quatrocentos castelhanos que, desesperados com a falta de alimentos que havia em Castela, chegaram à comarca de Entre Tejo e Guadiana em busca de comida, foi justamente aos eremitas da serra de Ossa que recorreu para os identificar, organizar e materializar o seu apoio’’ e não àqueles mais abastados, o que evidenciaria uma nítida ligação do Condestável àquela altura com os mais pobres, mas generosos, que viviam em eremitérios na austeridade e castidade.

Numa quarta consideração, o ilustre medievalista faz uma tradução literal, diferente daquela apresentada por estudiosos, de frase de oração que “o infante D. Pedro compôs em memória de Nun’Álvares e que o rei D. Duarte enviou ao abade florentino D. Gomes, em apêndice à carta que lhe remeteu em 21 de julho de 1437, …: Norma principium, exemplum dominorum, speculum anachoretarum es, beate Nune”. Propõe o historiador: “Modelo de príncipes, exemplo de senhores, espelho de anacoretas és tu, bem-aventurado Nuno”, frase que decididamente evidencia a afinidade do herói com os eremitas, pois pesquisadores anteriores substituíram “anachoretarum” pelas palavras “contemplativos e religiosos”.

Numa quinta afirmação, Gouveia Monteiro demonstra a “relação que a família dos Pereiras tinha com o fenômeno eremítico do Sul de Portugal”. Os pais de Nuno Álvares foram generosos doadores de terras para os movimentos eremíticos na região do Alentejo.

O autor remonta a uma doença estranha que se abateu sobre Nuno Álvares durante o período das beligerâncias com o reino de Castela. Foi ele levado a um eremitério relevante na região de Setúbal e houve um encontro com uma delegação do entorno, que o visitou protocolarmente, narrativa constante na “Crônica do Condestabre”. Gouveia Monteiro deduz: “Creio bem que esta passagem da ‘Crônica do Condestabre’ traduz metaforicamente o contraste entre os dois mundos, entre duas vocações e formas de assumir a vida, um dilema que dilacerava Nun’Álvares naquela hora: o mundo vão, precário e limitado do cotidiano, da manobra política, do jogo de influências pessoais…; e o mundo muito mais puro e celestial dos eremitérios, terras da água e do mel, onde a intriga dava lugar à contemplação e a acumulação de favores e de riqueza cedia em toda a linha perante o exemplo salvador do despojamento. Julgo, sinceramente, que a história da doença de Nuno Álvares Pereira passa também por este dilema existencial do nosso biografado”.

Nas considerações finais do livro, Gouveia Monteiro tece argumentos relativos à construção do Convento do Carmo por Nuno Álvares ensejada e à vinda dos frades carmelitas do Convento de Nossa Senhora do Carmo de Moura, da região alentejana, após convite formal (1392), ideia possivelmente gestada pelo Condestável após as vitórias em campo de batalha décadas antes. Gouveia Monteiro comenta: “Nun’Álvares terá querido assinalar o seu sucesso militar com um aparatoso monumento em Lisboa, no alto de uma colina virada para o Castelo de São Jorge; a escala da obra era proporcional ao desejo do segundo homem mais poderoso do reino de glorificar o seu feito na própria cidade a quem D. João I devia a Coroa e que era já a capital indisputada do reino. Além disso, era uma forma de o Condestável, homem muito rico e titulado (era também mordomo-mor e tinha já recebido uma quantidade impressionante de mercês régias, sendo igualmente conde de Ourém e de Barcelos), começar a ‘espiritualizar a sua riqueza’”. Paulatinamente o Condestável desprende-se de todas as amarras do “ter” bens materiais. A vida no Convento do Carmo o faz um doador cônscio dos atos. O historiador comenta a seguir: “Fora o início de um despojamento carismático que o velho Condestável queria agora tornar absoluto: prescindir do nome de família (e que família!), abdicar dos cargos e dos títulos, reduzir-se à humilde e insignificante condição identitária de ‘Nuno’, o donato carmelita”. Prossegue o medievalista: “… consumava a sua fuga mundi, com tudo o que de redentor isso representava, em especial para um homem que havia sido tão poderoso quanto ele”.

Bem debilitado, Nuno Álvares Pereira teve morte serena. Gouveia Monteiro menciona descrição de frei José Pereira de Sant’Anna: “De acordo com a reconstituição carmelita, Nun’Álvares pediu para morrer vestido com o seu Santo Hábito e requereu uma mortalha e uma cova para o seu corpo, suplicando que lhe dessem uma sepultura rasa e sem distinção, onde pudesse ‘esconder-se sem diferença do comum dos mais homens’”. O autor nos últimos subcapítulos discorre sobre “A sepultura do donato”, “O culto popular e o livro dos milagres”, “Construir a memória do ‘Santo Conde’” e “A estrada da canonização”.

Quanto ao último, Gouveia Monteiro assinala: “Temos, portanto, que em data próxima do falecimento de Nun’Álvares, já a Coroa se referia a ele, abertamente, como ‘santo’”.  Ao longo dos séculos reis e autoridades eclesiásticas ensejaram a canonização do Condestável, desde 1437 através de D. Duarte. Em 1641, D . João IV também requereu o reconhecimento da beatificação de Nuno Álvares, assim como D. Pedro II em 1674, sem contar as tratativas da Ordem Carmelita ao longo do tempo.

Após a notificação de 221 milagres associados a Nuno Álvares Pereira desde o século XV, a canonização do Condestável “apenas se viria a aproximar do seu termo em 2008, em resultado das diligências do cardeal-patriarca D. José Policarpo e das Ordem do Carmo; em 3 de julho deste ano, o papa Bento XVI (seguindo o parecer emitido pela Congregação Ordinária dos Cardeais em 7 de Junho) autorizou a publicação de dois decretos, um reconhecendo as virtudes heroicas do candidato e outro atestando a cura milagrosa da senhora Guilhermina de Jesus, de Vila Franca de Xira (que recuperara a visão). Finalmente, em 21 de fevereiro de 2009, Bento XVI anunciou a canonização, que veio a realizar-se no dia 26 de abril do mesmo ano, em Roma. Foi um final luminoso para o filho de Álvaro Gonçalves Pereira e Iria Gonçalves” (Gouveia Monteiro). Portanto, 577 anos após a morte de Nuno Álvares Pereira, desde 2009 o nome Santo Condestável se tornou oficial, embora assim fosse lembrado desde seu desenlace.

Que a religiosidade de Nuno Álvares Pereira, hoje São Nuno de Santa Maria, fora transmitida por seus ascendentes e documentada durante a atividade do jovem guerreiro parece ser consensual. As preces intensas antes das batalhas, a visualização dantesca de tantos combatentes por ele comandados e de inimigos mortos ou feridos em combate, o acolhimento de habitantes de Castela fugindo dos embates, mas tratados com humanidade pelo futuro Condestável, teriam levado o segundo homem mais rico de Portugal a tudo legar, não apenas aos seus comandados, como aos familiares, aos eremitas, e a erigir templos fundamentais para o culto religioso em Portugal. O Guerreiro, distanciando-se das batalhas, esteve, contudo, na conquista de Ceuta em 1415, trinta anos após Aljubarrota! Viver na austeridade voltada ao culto religioso e aos mais pobres – distribuição de alimentos e atendimentos vários – foi a plena redenção de uma figura entendida pelos seus coevos como já santificada.

O notável medievalista João Gouveia Monteiro, ao se debruçar sobre Nuno Álvares Pereira, o Santo Condestável, lega à literatura sobre o tema um livro impecável sob todos os planos. Ter dividido os períodos de atuação da figura histórica, quiçá a mais representativa de Portugal, dimensionando-a, propicia ao leitor a compreensão inequívoca do todo. Recomendo vivamente a leitura de “Nuno Álvares Pereira – Guerreiro, Senhor Feudal, Santo – Os três rostos do Condestável” (Lisboa, Manuscrito, 2019).

At the end of his book on Nuno Álvares Pereira, the Holy Constable, the noted medievalist João Gouveia Monteiro puts forward his personal positions, enriching the third phase of the biographee’s life, which is focused on his religious retreat in the Convent of Carmo and his links with the eremitic movement in Portugal.

 

 

Recordações de Bóris Pasternak

Scriabine era um criador visionário e um místico.
Tudo o que criava, vivia, sentia, pensava
instalava-se a partir de uma experiência interior de caráter místico,
pois essencialmente incomunicável na realidade e que, entretanto,
ele se esforçava em transmitir,
tanto em sua obra musical como em seus escritos poéticos,
em suas teorias, seus projetos e em suas conversas
com aqueles que poderiam compreendê-lo.

Marina Scriabine (1911-1998) – musicóloga e filha do compositor

Neste ano comemoram-se duas efemérides de relevantes compositores, o sesquicentenário do compositor russo Alexandre Scriabine e o centenário de Gilberto Mendes, este, tema dos dois posts anteriores. A respeito de Scriabine, ao longo dos blogs desde 2007 reiteradas vezes escrevi neste espaço sobre o importante contributo do compositor e pensador russo na música como um todo.

Estava a reorganizar os meus livros quando me deparo com uma pequena publicação com nome sugestivo. Tratava-se de “Nanico – homeopatia cultural”, criação do prezado amigo e editor Cláudio Giordano. Neste em especial, nº 13, de Junho de 1996, há um artigo extraído de “An Essay in Autobiography” escrito por Bóris Pasternak (1890-1960), autor do célebre “Doutor Jivago” e Prêmio Nobel de Literatura em 1958. Recordo-me de ter conversado com Giordano, que imediatamente se interessou em vê-lo publicado, com tradução cuidadosa de nossa dileta amiga Regina Maria Pitta.

Pensei retransmiti-lo aos leitores, 26 anos após, por motivos precisos. A publicação do excelente “Nanico” era restrita e o texto de Pasternak, sendo revelador de alguns aspectos essenciais nesse cotidiano vivido pelos dois personagens, possibilitou uma maior abrangência sobre o já vasto material literário e analítico a respeito de Scriabine.

Devido à dimensão dos posts, divido o texto de Pasternak em dois, inserindo num terceiro aquele que vem logo após, igualmente publicado no mesmo número e de minha pena.

“Na primavera de 1903, papai alugou uma dacha perto de Maloiaroslavets, no caminho da ferrovia Briansk (agora conhecida como Linha Kiev). Coincidiu que Scriabine fosse nosso vizinho. Até então não o conhecíamos muito bem. As duas casas, algo distantes, ficavam ao lado de uma clareira numa colina. Chegamos, como de hábito, pela manhã bem cedo. O sol, filtrando-se pelos galhos baixos que se debruçavam sobre nosso telhado, penetrava pelas janelas. Dentro, embrulhos foram abertos e alimentos, roupas de cama, frigideiras e baldes surgindo. Escapuli para a mata.

Deus, quão pulsante aquele bosque matinal! A luz do sol trespassava-o por toda parte. Sombras trêmulas embalavam seu cimo num vaivém e do emaranhado de galhos vinha aquele sempre inesperado, sempre estranho chilrear de pássaros, que começa com chamados altos, abruptos e, extinguindo-se gradualmente, repete, em sua insistência, a alternância fugidia de luzes e sombras na distância. E acompanhando a sucessão de luzes e sombras e o cantar e agitar dos pássaros pelos galhos, fragmentos da Terceira Sinfonia ou Divino Poema, composto ao piano na casa ao lado, propagavam-se e ressoavam através da mata.

Senhor, que música! Sucessivamente a sinfonia ruiu como uma cidade bombardeada e foi reconstruída, renascendo dos destroços. Seu sistema, arduamente elaborado, enchia-a até transbordar e era novo – como era nova a floresta, respirando vida e frescor, vestida de primavera naquela manhã de 1903 – não 1803, lembre-se! E assim, como na mata não havia uma única folha artificial, também a sinfonia era livre de profundidade falsa, de retórica solene, nada que soasse como Beethoven, ou Glinka, ou Ivan Ivanovich ou como a Princesa Maria Alexevna; ao contrário, seu trágico poder empinava o nariz em triunfo a tudo o que fosse respeitável e majestosamente decrépito e enfadonho, mostrando-se perniciosamente ousada, livre, frívola e essencial como um anjo caído.

Espera-se, do homem que componha tal música, que conheça a si próprio e que, em horas de lazer, seja tão tranquilo e luzente como Deus descansando no sétimo dia; e tal ele provou ser. Scriabine e meu pai frequentemente caminhavam pela estrada que passava não muito longe de nossa casa. Às vezes eu os acompanhava. Scriabine gostava de tomar impulso e depois saltar pela estrada como se, a qualquer momento, fosse deixar o chão e planar no ar. De um modo geral, desenvolvera formas várias de leveza extrema e movimentos ágeis, parecendo prestes a alçar voo. Em seu caráter, essa habilidade manifestava-se no charme bem educado e na maneira mundana de adotar um ar superficial, evitando assuntos sérios em sociedade. Mais surpreendentes eram seus paradoxos durante esses passeios pelo campo.

Conversavam, ele e meu pai, sobre o bem e o mal, a arte e a vida. Ele atacava Tolstoi e pregava o homem superior e amoral de Nietzsche. Concordavam apenas quanto à essência e aos problemas do fazer artístico; discordavam em tudo o mais. Na época eu contava doze anos. Metade de suas discordâncias estavam além de minha compreensão. Mas Scriabine conquistou-me pelo frescor de sua mente. Idolatrava-o. Concordava sempre com ele, mesmo ignorando o que queria dizer. Logo ele partiu para a Suíça, onde acabou ficando por seis anos.

No outono sofri um acidente que nos manteve no campo mais tempo do que o normal. Papai pintava a tela Pastagens Noturnas. Era uma cena de meninas de uma vila próxima, Bocharovo, cavalgando ao crepúsculo, a conduzir cavalos em direção aos prados úmidos ao pé de nossa colina. Uma tarde acompanhei-as, mas meu cavalo desembestou e, quando pulou um riacho, caí e quebrei a perna. Fiquei com uma perna mais curta do que a outra e, em consequência, fui dispensado do exército em todas as convocações.

Mesmo antes daquele verão arranhara um pouco o piano, conseguindo juntar alguns poucos sons de minha autoria. Agora, após meu encontro com Scriabine, desejava ardentemente compor. Naquele outono comecei a estudar teoria da composição, dedicando-me a ela durante meus seis anos restantes na escola. Trabalhei com o admirável Engel, crítico musical e teórico, e mais tarde com o professor Glière.

Ninguém tinha a mínima dúvida sobre minha vocação. Meu caminho estava traçado. Meus pais ficaram encantados com minha escolha profissional; a música seria meu destino e toda sorte de ingratidão para com eles, cujos sapatos eu era indigno de desamarrar, qualquer desobediência, negligência ou excentricidade minha passou a ser perdoada por esse motivo. Mesmo se flagrado às voltas com algum problema de fuga ou contraponto em classe, um livro de música aberto na carteira em plena aula de Matemática ou Grego, ou quando boquiaberto como um paspalho se algo me era perguntado, toda a classe vinha em minha defesa e os professores toleravam meus defeitos. E, ainda assim, desisti da música.

Desisti dela no exato momento em que tudo fazia crer estar no caminho certo e congratulações choviam sobre mim. Meu deus retornara; Scriabine voltara da Suíça trazendo suas últimas composições, entre elas O Êxtase. Foi recebido em triunfo por toda Moscou. No auge das festividades visitei-o, mostrando-lhe minhas peças. Sua reação superou todas as expectativas: escutou-me, aprovou-me, encorajou-me e abençoou-me.

Ninguém conhecia, porém, minha angústia secreta e, tivesse ela sido revelada, não me teriam acreditado. Eu progredia como compositor, mas tocava pessimamente e lia música como uma criança aprendendo a soletrar. A discrepância entre meus temas musicais, originais e difíceis, e minha falta de habilidade técnica transformou a alegria de um dom natural num tormento, até que não mais pude suportá-lo.

Como pôde tal coisa acontecer? Havia algo intrinsicamente errado em minha atitude, algo que merecia castigo. Eu tinha a arrogância adolescente, a presunção niilista dos tolos, que desprezam tudo o que parece acessível, tudo o que pode ser ‘obtido’ com aplicação. Considerava o esforço pouco criativo. ‘Na vida real’, pensava, tudo deve ser miraculoso e predestinado, nada planejado, deliberado, desejado.

Esse foi o lado negativo da influência de Scriabine em mim. Tomei-o como mestre supremo, sem imaginar que apenas ele podia permitir-se o luxo de seu próprio egocentrismo, que suas teorias serviam apenas a ele próprio. Desentendi-o infantilmente, mas as sementes de seu pensar haviam caído em solo fértil”.

Bóris Pasternak se dedicaria aos estudos musicais de 1904 a 1910. Compôs algumas obras. No belo Prelúdio nº 2 a influência de Scriabine é evidente.

Clique para ouvir, de Bóris Pasternak, “Prelúdio nº 2”, na interpretação de Eldar Nebolsin:

https://www.youtube.com/watch?v=y8nzjPhTXzY

No próximo post publicarei a segunda parte deste texto, na qual Pasternak avalia obras de fases distintas de Scriabine.

While rearranging my bookshelves I found a small publication edited by Cláudio Giordano in June 1996, “Nanico, cultural homeopathy”. It contained a testimonial by the famous Russian writer Boris Pasternak about his relationship with composer Alexandre Scriabine. His childhood memories remained intact. Pasternak’s account is worth reading, but due to its length I chose to divide it into two parts, the second to be posted next week.