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A partir do “trailer” de “O Labirinto da Saudade”

Em todo o caso, que se sinta só;
mas não vá supor que é muito grande;
da sua grandeza, se a tiver real,
fará parte o supor que os outros são pequenos.
Agostinho da Silva
(“Entrevistas”)

Recebi de dileto amigo português, o arquiteto António Menéres, “trailer” do filme de Manuel Gonçalves Mendes, “O Labirinto da Saudade”, a partir do livro homônimo do notável filósofo, ensaísta e professor Eduardo Lourenço (1923- ). Denominado “O Bar da Eternidade”, essa pequena e substanciosa cena de quatro minutos revela temas fulcrais da existência. Há um diálogo de extrema relevância entre Eduardo Lourenço e uma figura igualmente ilustre da cultura em Portugal, o arquiteto Álvaro Siza Vieira (1933- ).

Inicialmente Siza Vieira questiona: “O que ficará de nós, homens e mulheres, se é que alguma coisa fica, quando partirmos em férias?” a receber do filósofo: “Quem dera que a resposta à sua pergunta fosse essa tão lírica e tão futurante como o partir em férias. A nossa própria morte é-nos tão hostil que nós nem em sonhos morremos. A morte verdadeira é a do outro. A do outro que existiu para nós. Que foi tudo para nós, que foi o absoluto para nós. E essa que é a morte real. As outras mortes são ilusórias, mesmo a nossa, sobretudo a nossa”.

Segue-se um diálogo enriquecedor em torno da vida e da morte, das incertezas a envolver a complexa dialética em torno da passagem inexorável, mormente se considerada for a etariedade dos insignes envolvidos.

Siza Vieira observa nada sabermos sobre nascimento, vida e morte, mas sim sobre continuidade através das gerações que se sucedem, “continuidade da vida, e quando um de nós morre há filhos, netos, música para músicos, artes, escrita, literatura… Não desaparecemos completamente. O mundo continua. A História, no fundo, tem esse papel de sugerir ou de fazer real uma continuidade, agora a morte não”. A colocação de Siza provoca resposta essencial de Eduardo Lourenço: “O problema é que, consciente ou inconscientemente, escrevemos como se fôssemos eternos. Sem essa ilusão de eternidade como coisa nossa, nós não escreveríamos nada de realmente grandioso. O que os homens querem é que aquilo se transfigure numa espécie de estátua, que se pode tocar, viver e permanecer através dos séculos”. Após louvar Siza Vieira, dele recebe o testemunho: “Eu faço os meus projetos com a ideia de que… essa ideia de que é para ficar. Mas pensando friamente, não é bem assim. Também a construção, muitas vezes, não é durável. É vulnerável…”. Eduardo Lourenço de imediato afirma: “Hiroshima existia e foi destruída em nove segundos. É como se fossem feridas que a Humanidade faz a si mesma, não é? E essas sem reparação. Porque foram destruídas e não podem ser reconstruídas de nenhuma maneira. Aquilo que de mais belo há na humanidade é que nós somos submersos às mesmas forças que regem realmente o mundo. Porque é que nós escaparíamos, quando tudo o que foi criado está condenado a desaparecer?”, conceitos concluídos por Siza Vieira: “E se assim não fosse talvez se tornasse insuportável”.

Consideremos as observações sobre o legado, esperançosas inicialmente por parte de Siza Vieira, mas com a ressalva “… não é bem assim”. Por sua vez, Eduardo Lourenço, mais cético nesse item, diz “… tudo o que foi criado está condenado a desaparecer”.

O legado de obra física sempre foi mais vulnerável ao desaparecimento através dos séculos. São incontáveis os monumentos, obras de arte, pinturas, bibliotecas que sucumbiram ao tempo por causas naturais, intencionais ou imprevistas. Alguns exemplos são implacáveis: Biblioteca de Alexandria, no período helenístico, teria sido destruída pelo fogo; Biblioteca Real de Lisboa arrasada durante o terremoto de 1755, assim como inúmeros monumentos históricos da cidade; Catedral Notre-Dame de Reims semidestruída pelos bombardeios alemães na guerra 1914-1918; pinturas de Manabu Mabe, que seriam expostas em grande retrospectiva no Japão, perderam-e em acidente aéreo em 1978; O Templo de Baalshamin, edificado no início do primeiro milênio, explodido pelos integrantes do então denominado EI em 2015; Museu Nacional do Rio de Janeiro e seu extraordinário acervo consumido pelo fogo em 2018, assim como parte considerável da Catedral de Notre-Dame de Paris bem recentemente. O tempo inexorável corroeu tantas obras arquitetônicas na Grécia e na Roma Antigas, assim como na Península Ibérica e em muitos outros pontos geográficos. Considere-se ainda a ação de descaso de tantas autoridades espalhadas pelo mundo, que pouco fazem para a conservação de obras de arte expostas às intempéries.

Esses poucos, mas significativos exemplos, ratificam o posicionamento de Eduardo Lourenço. Contudo, exceções ou exceção há nesse legado. Pensando-se na literatura e na música, verifica-se que a herança não se atém à obra de arte material inerte que habita galerias e museus e é vista por legiões de frequentadores. Walter Benjamin, no ensaio publicado em 1936, “A obra de arte na era da sua reprodutividade técnica”, já argumentava que a reprodução em tantos formatos de uma obra de arte causou a perda da “aura”, depreendendo dessa constatação, a autenticidade. O hic et nunc desapareceria para sempre. Considere-se que a obra de arte material, única e autêntica, nessa categoria incluindo-se a pintura, a escultura e a arquitetura, tem sofrido constantemente o lento e inexorável desaparecimento.

Quanto à literatura, ela independe da presença física dos manuscritos, pois obviamente subsiste sem contestação através da reprodução. Os museus, arquivos e bibliotecas dão a guarida necessária aos textos originais, majoritariamente distantes do público leigo e consultados por especialistas quando se faz necessário. Portanto, perdurarão em edições divulgadas em versões para tantas línguas. O teatro, que traduz em cena o que reza segmento literário, vive do intérprete, ou seja, do ator. Este é geograficamente regionalizado, pois sua atuação é realizada frente àqueles que compartilham o mesmo idioma. Sua internacionalização é basicamente exígua, sendo que o texto teatral não o é, pois vertido para outros idiomas encontrará atores de outros países para divulgá-lo e o legado estaria garantido.

Seria a música a única área em que o legado estaria salvaguardado geograficamente em sua abrangência territorial plena. Os sons são compreendidos em todos os rincões e o amálgama compositor-intérprete não tem fronteiras. Todos os povos compreendem a unicidade da Música.

Partituras, assim como textos literários, podem subsistir sob a proteção de entidades que os abrigam. Se essas desaparecerem por múltiplas razões, a reprodução ad infinitum garante parte essencial de acervos, perenidade pois. Para a interpretação o legado teria tempo finito, pois mesmo a saber que processos tecnológicos estariam sempre in progress, haverá um momento, acredita-se, que distorções sonoras quanto às centenárias gravações ocorrerão, como já acontece com muitos registros fonográficos das primeiras décadas do século XX. Saliente-se que extraordinários avanços tecnológicos têm conseguido resultados surpreendentes quanto às antigas gravações.

Num outro patamar, a arte cinematográfica seria aquela, talvez, que mais tem sofrido a ação do tempo. Quão mais antigos os filmes de qualidade, mais ficam restritos a públicos especializados, admiradores da arte específica. Para o grande público, ávido do novo, mais acentuadamente se processa o distanciamento com o passado cinematográfico. Contudo, igualmente no caso, o legado estaria garantido mercê de processos novos, que têm conseguido êxito na restauração de originais. Sob outra égide, o filme se internacionaliza através das legendas ou das dublagens, estas sempre lamentáveis.

Nada sabemos sobre a duração do planeta. Incógnita. A destruição sistemática das reservas naturais, os conflitos os mais generalizados movidos por motivos de várias ordens: religioso, ideológico, racismo; guerras intestinas e terrorismo; descaso; a decadência dos costumes, tudo não estaria tornando a terra uma gigantesca panela de pressão com mínimo escape? Para os mais pessimistas, toda discussão em torno do legado esbarraria nessa desesperança. Todavia, a presença constante da morte, mors certa hora incerta, assim como a necessidade de se pensar em legados, ainda movem a humanidade, apesar da sábia advertência de Eduardo Lourenço: “Porque é que nós escaparíamos quando tudo o que foi criado está condenado a desaparecer?”.

This post discusses views about life, death and human legacy to History. It was inspired by a conversation between philosopher Eduardo Lourenço and architect Álvaro Siza Vieira, two of the most influential Portuguese intellectuals of the 20th and early 21st centuries.


Um imenso pianista e professor

A música “clássica” – como sói dizer-se –
será talvez de todas as práticas musicais,
aquela onde é mais comum este “esquecimento em vida” com umas poucas excepções.
Talvez porque o número de decisores é muito pequeno e o isolamento social é patente.
António Pinho Vargas

O desaparecimento, no dia 21 de Fevereiro, de José Carlos Sequeira Costa comoveu todos aqueles que apreciam a interpretação no mais alto nível. Certamente o mais completo pianista português da segunda metade do século XX e um dos nomes referenciais do piano nesse período em termos mundiais. Nascido em Luanda, Angola, desde cedo mostrou dons excepcionais. Estudou em Portugal com o pianista, compositor e professor Vianna da Motta (vide blogs: “Vianna da Motta – 1868-1948″ e “Seria Vianna da Motta lembrado à altura de seu mérito?”, 07/07/2018 e 14/07/2018, respectivamente), continuando posteriormente com Edwin Fisher, Marguerite Long e Jacques Février.  Em 1951 recebeu o Grande Prêmio da Cidade de Paris no Concurso Internacional Marguerite Long-Jacques Thibaud. Criou e presidiu o Concurso Internacional Vianna da Motta. Sequeira Costa foi presença constante nos júris dos mais respeitados concursos internacionais de piano: Tchaikowsky em Moscou (seis vezes), Chopin em Varsóvia, assim como dos Concursos Leeds, Marguerite Long, Rubinstein, Montréal e Sviatoslav Richter. Como professor formou gerações e esteve ligado à Universidade de Kansas a partir do final da década de 1970. Orientou inúmeras master classes ao longo da carreira. Sequeira Costa apresentou-se em muitas das principais salas do planeta. A discografia do pianista é imensa e em seu repertório vastíssimo, mormente voltado ao período romântico, figuravam a integral das Sonatas de Beethoven e as integrais para piano e orquestra de Rachmaninov, Schumann e Chopin.

Em entrevista à Agência Lusa (RTP), o mais dileto aluno de Sequeira Costa, o pianista Artur Pizarro, afirmaria logo após o infausto acontecimento: “Ao nível da música clássica em Portugal, foi um dos mais importantes pianistas de qualquer século, uma das grandes figuras do século XX e ainda do XXI, quer como pianista, quer como organizador de eventos de música clássica, de festivais – foi diretor artístico de vários -, do concurso Vianna da Motta e como pedagogo”, afirma Artur Pizarro. Considera ainda: “Tudo aquilo que ele me explicava nas aulas, tudo o que fazíamos de trabalho juntos eu depois tive o privilégio de vê-lo fazer na prática, seguindo-o em múltiplos concertos em qualquer canto do mundo, e via-o fazer em palco aquilo que minuciosamente trabalhávamos nas aulas”. O notável musicólogo português Mário Vieira de Carvalho assim se pronunciou em 2010: “Chamar-lhe ‘um dos mais respeitados pianistas portugueses’ é, no mínimo, uma monumental gaffe. Pianistas notáveis há-os, sem dúvida, em Portugal, mas grande parte deles deve-o, em larga medida, a Sequeira Costa, que não é só um primus inter pares”.

Minha memória reporta-se aos anos de 1959-1962, período em que estive muito próximo a Sequeira Costa, mercê inicialmente de uma missiva de apresentação de nosso ilustre compositor Camargo Guarnieri (1907-1993).  Tinha aulas regulares em Paris com os lendários Marguerite Long (1874-1966) e Jean Doyen (1907-1982), período em que Sequeira Costa fixara parcialmente sua residência na cidade. Como estudei nos seis primeiros meses de 1959 com Jacques Février (1900-1979), que fora também professor de Sequeira bem anteriormente, o mestre francês não cansava de elogiar as qualidades excepcionais de seu antigo aluno. Retive duas afirmações do mestre Février. Disse-me que Sequeira Costa possuía a técnica pianística mais perfeita que conhecera e que jamais alguém poderia tocar “Gaspard de la Nuit”, a extraordinária obra de Maurice Ravel, como ele. Recentemente, em Janeiro último, conversava com meu amigo e ex-colega da USP, o compositor Willy Corrêa de Oliveira, sobre pianistas. Ao mencionar Sequeira Costa como um dos grandes, Willy afirmou desconhecê-lo. Tirei para o amigo cópias de vários CDs que conservo com plena admiração. No dia seguinte Willy me liga a dizer que jamais ouvira “Gaspard de la Nuit” como a interpretada por Sequeira Costa, a corroborar a opinião de Jaques Février. Encantaram-no igualmente as interpretações dos Concertos para piano e dos Estudos de Chopin, assim como as transcrições para piano magistralmente realizadas por Rachmaninov.

Em 1959 estreitamos relacionamento e no mês de Julho do mesmo ano seguimos em seu Simca Chambord de Paris para Lisboa, pernoitando em Bordeaux, Valladolid e finalmente Lisboa. Éramos cinco no carro: Sequeira Costa a dirigir, a excelente pianista e professora Tânia Achot-Haroutounian, que se tornaria sua segunda esposa, a irmã Natacha e Madame Achot, mãe das duas. Tânia obtivera anteriormente o terceiro prêmio no Concurso Chopin em Varsóvia e se tornaria posteriormente professora da Escola Superior de Música de Lisboa. Chegados a capital portuguesa, fiquei hospedado em casa do pai de sua primeira esposa, o ilustre Dr. João Couto, Diretor do Museu das Janelas Verdes, preparando-me para recital na Academia de Amadores de Lisboa a convite do insigne compositor Fernando Lopes-Graça (1906-1994).

Em Paris estudava com os dois mestres mencionados, mas já àquela altura tinha uma curiosidade com um gênero fundamental para o pianista, o “Estudo” para piano. Sendo Sequeira Costa um dos grandes intérpretes do planeta dos Estudos de Chopin, com ele trabalhei pormenorizadamente os dois cadernos do compositor polonês e alguns Estudos de Scriabine, àquela altura compositor ainda pouco divulgado no Ocidente. Tardiamente, a partir de 2000, gravaria na Bélgica cinco CDs dedicados ao Estudo para piano, inclusive as integrais dos compostos por Scriabine e Debussy. Conselhos de Sequeira quanto à interpretação desse gênero específico jamais foram esquecidos. As aulas com Sequeira Costa não interferiam na preparação que realizava das obras do repertório tradicional propostas por Jean Doyen e Marguerite Long. Diria que foram um grande enriquecimento. Igualmente estudei com Sequeira a Sonata op. 35 em si bemol menor e a Fantasia op 49 de Chopin, assim como as Sonatas op. 31 nº3 e a op. 81ª, “Les Adieux”, de Beethoven.

A didática do imenso pianista tinha a aura da abrangência. Alguns aspectos da interpretação eram-lhe fulcrais, o que o impedia de pensar em qualquer concessão. Gostava de assinalar todas as intenções na partitura. Cuidava com rigor estrito do estilo do compositor depositado em cada obra, sem contudo desvincular-se da emoção. A frase musical adquiria sob sua tutela plasticidade e flexibilidade ímpares. Dinâmica, articulação, agógica eram-lhe vitais. Antolha-se-me que elementos essenciais para a compreensão da mensagem contida numa partitura, como legato e substituições (dos dedos numa mesma nota), adquiriam para ele importância capital. Incorporei seus ensinamentos sobre a utilização dos pedais e de seus inúmeros matizes. Quantas não eram as passagens que realizava em fortíssimo e com pedal una corda (pedal esquerdo abafador), a fim de conseguir timbres diferenciados!!! A composição para piano subtraía muito do orquestral em sua concepção. Estava sempre a pensar em algum instrumento ou conjunto deles. Assim procedia nas Sonatas de Beethoven. Assisti a marcantes recitais em que interpretou várias delas. Nesse tão rico período admirava com fervor duas escolas pianísticas tão distintas, a do excelso Jean Doyen e a do bem mais jovem Sequeira Costa.

Durante o período em Paris, Sequeira Costa veio ao Brasil para recitais e apresentações com orquestra. Ficou hospedado em casa de meus pais em São Paulo. Em 1961 viajou para o Irã, onde permaneceria certo tempo, pois Tânia Achot é iraniana. Gostaria que eu fosse a Teerã, a fim de concluir preparativos para o Concurso Tchaikowsky em Moscou no ano de 1962. Poucas semanas antes de minha viagem, a oposição ao Xá Mohammad Reza Pahlavi inquietou-o e sugeriu-me não me deslocar naquele momento. Regressei ao Brasil e preparei-me em São Paulo para o Concurso e a gravação da primeira etapa está hoje em CD lançado em 1998. Na capital da União Soviética, após o concurso, realizei para a Rádio Central de Moscou gravação de música brasileira.

A partir de 1963 nossos contatos epistolares foram minguando. São muitas as razões que apontam para distanciamento entre as pessoas. Fixou-se nos Estados Unidos e por duas vezes em anos diferentes, casualmente, encontrei-o à porta da Fundação Gulbenkian em Lisboa. Cumprimentos apenas protocolares.

Fatores individuais insondáveis seriam a causa de o pianista Sequeira Costa não ter tido a divulgação que outros poucos luminares do piano granjearam e continuam a merecer. Foi um luminar na acepção. A  mídia globalizada sabe como manter personagens sob o foco dos holofotes, direcionando as luzes de acordo com tantos interesses estranhos. As gravações do notável pianista português, que estão entre as mais cuidadas da história da interpretação pianística, permanecerão para gáudio dos ouvintes desta e de outras gerações.

Sequeira Costa foi para mim mais do que um orientador, mas um farol a indicar o caminho da não concessão. Conselhos basilares permaneceram por toda a vida. Entender a música sob essa dimensão é uma dádiva. Inalienável.

Reminiscences of my relationship with the Angolan-born Portuguese pianist Sequeira Costa, who passed away last February 21st. A prodigious talent, he was one of the greatest pianists of the 20th and early 21st centuries, especially renowned for his interpretation of the romantic repertoire. I was lucky to take informal lessons from him when we were both living in Paris back in the fifties and with him I’ve learned to choose the path of no concession. An outstanding pianist and teacher, Sequeira Costa has not received from the media the recognition a performer with his accomplishments would deserve, but his recordings are jewels that will remain for the delight of listeners of present and future generations.

 

Tema sempre recorrente

Do ponto de vista dinâmico,
o conflito central opõe os desejos da vida gloriosa
e os desejos de morte presentes na origem.
André R. Missenard
(“Narcissisme et rupture”)

Quando o tema é a figura do herói, vasta literatura, que perpassa da Grécia Antiga aos tempos modernos, seja em epopeias, romances e narrativas, desperta sucessivamente interesse às gerações durante o passar dos milênios. Quantos não foram os heróis reais ou aqueles vivificados pela mitologia que alimentaram inúmeras vertentes humanísticas? Mitificados, permanecem na história e na imaginação dos homens. Presentes nas artes visuais, na literatura e na música, perduram até os nossos dias, causando admiração e debruçamento voltado às pesquisas sobre a figura do herói. Quanto já não foi escrito, analisado por especialistas, envolvendo-o? O mito do herói sempre existiu e não desaparecerá. Tem-se o modelo, idealiza-se o personagem que poderá servir de exemplo, seja em momento extremo e único que caracteriza a ação imediata de um salvamento, à constância na ação heroica perpetrada através de aventuras voluntárias que o comum dos mortais vê-se impossibilitado de realizar.

Muitos estudos reportam até à gravidez como ato heroico e seguem acompanhando o desenvolvimento da criança, do adolescente em seu caminho à idade adulta. Análises vêm o herói como arquétipo. O leitor interessado encontrará abundante literatura a respeito, mormente a envolver disciplinas como a psicanálise e, em casos específicos, estudos psicobiográficos que levam à compreensão de personagens tidos como heróis nos mais variados campos.

Vem o tema após conversa com o amigo Marcelo, que habitualmente encontro na feira livre de sábado. “Não seriam os tripulantes da expedição Kon-Tiki os verdadeiros super-heróis da modernidade, em detrimento dos famigerados personagens que infestam as criações cinematográficas rendendo somas volumosas?”, perguntou-me Marcelo. Marcamos um curto no domingo à tarde no Natural da Terra e conversamos a respeito.

A edificação do herói pode ser seguida desde o encaminhamento dos pais visando à vida gloriosa dos ungidos, seja em qual área “escolhida”, ou mesmo no ato “voluntário” que contrariaria desejos paternos e se apresentam como opposit às aspirações almejadas por ascendentes. Seria possível entender que, por vezes, embrionariamente uma semente de “heroísmo” exista e que basta um instante do acontecido para que o ato heroico emerja sem sequer resquício de qualquer ação voluntária anterior voltada à figura do herói. Quando recentemente o imigrante malinês Mamoudou Gassama, de apenas 22 anos, escalou com intrepidez absoluta os cinco andares de um prédio na França, agarrando-se como o mais hábil dos símios a grades e beirais de um edifício, a fim de salvar uma criança dependurada numa sacada e que certamente iria cair, tipificou na essência essencial esse ato heroico que provavelmente jamais teria sido por ele imaginado. Incontáveis exemplos acontecem diariamente e heróis anônimos surgem em catástrofes de todos os tipos. Incêndios, tsunamis, terremotos, desabamentos provocam em tantos cidadãos comuns, que nunca pensaram em situações semelhantes, o impulso que leva ao ato heroico.

Quantos não foram os blogs que escrevi sobre Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), autor que admiro profundamente, tendo como livro de cabeceira seu extraordinário Citadelle. Herói, sobrevoou o Atlântico Sul em um monomotor, a serviço da Aéropostale. Perdeu companheiros e morreria tragicamente no fim da guerra, de maneira misteriosa, com a queda de seu avião não distante de Marselha aos 31 de Julho de 1944, possivelmente abatido por caças alemães. No ano 2000 destroços do avião foram encontrados e livro foi escrito pelo mergulhador Luc Vanrell e o jornalista Jacques Pradel na busca de esclarecer o enigma. Conselhos para que não realizasse a missão de observação a que se propôs não demoveram a obstinação de Saint-Exupéry. O herói em arriscado encontro “voluntário” que o levou à morte. Anteriormente, Jean Mermoz (1901-1936), o extraordinário piloto da Aéropostale, desapareceria no Atlântico Sul em sua 25ª travessia. Henry Guillaumet (1902-1940) estaria presente em um dos livros mais marcantes de Saint-Exupéry, Terre des Hommes, após queda nos Andes em 1930 na sua 92ª travessia sobre a cordilheira, das 393 que realizaria nessa região montanhosa. Caminhou durante sete dias até ser encontrado. Teria dito a Saint-Exupéry: “O que eu fiz, eu te juro, nenhum animal teria feito”. Morreria tragicamente depois de seu avião ter sido abatido por caça italiano sobre o Mediterrâneo. Outros aviadores franceses sucumbiram durante esse período heroico nessa longa viagem da França ao Chile, sempre a serviço.

Quanto a Thor Heyerdahl (1914-2002), entende-se com clareza que a Expedição Kon-Tiki (1947) não foi um capricho (vide blog anterior). A construção do projeto foi longamente arquitetada. Sabia de todos os riscos, mas desafiá-los a fim de provar sua teoria suplantou todas as opiniões, que viam a possibilidade da tragédia na empreitada visando à travessia de 4.300 milhas em precária jangada. Crescia o herói. Todo o esforço preparatório dá a medida da obstinação. Com cinco companheiros chegou a termo numa aventura que ficou consagrada.

Neste espaço já resenhei livros de Sylvain Tesson, que me surpreende sempre, mercê de voluntária necessidade de enfrentar longas marchas a pé através do planeta, não apenas para evidenciar ser possível realizá-las, como no intuito de revelar civilizações outras, possibilidade de sobrevivência em áreas inóspitas ou mesmo denunciar descasos. Passou por perigos que o levariam fatalmente à morte. Num prosaico acidente em Chamonix em 2014, quando “escalava” um prédio de poucos andares, caiu, entrou em coma e subsistiu com graves sequelas que persistem. Parcialmente recuperado, continua com suas aventuras. Teria declarado, logo após sair do hospital, que acredita que irá morrer de maneira violenta. O herói a cumprir sua trajetória.

Esse breve relato sobre alguns heróis modernos tem origem também em minha infância. Aos dez anos de idade, li com avidez “Os Doze Trabalhos de Hércules”, de Monteiro Lobato. Aqueles feitos heroicos encantaram a criança que eu fui e na adolescência e juventude, entre as muitas leituras, as façanhas de personagens intrépidos ficaram na memória. Só para citar três que abordam figuras que permaneceram na história e no imaginário, mencionaria “Haníbal”, de Mirko Jelusich (Porto Alegre, Globo, 1942), “A Conquista da Terra”, de Wilhelm Treue (Rio de Janeiro, Globo, 1945) e “A Vida de Nun’Álvares”, de Oliveira Martins (Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 1944). Aos oitenta anos ainda tenho prazer de ler determinadas aventuras ou feitos que foram vencidos ou tragicamente abortados. Afinidades temáticas fincam raízes e essas só se aprofundam. Parece-me um bom sinal.

This post is a brief consideration about a few modern heroes and their outstanding feats, impossible to be achieved by common mortals. They are: Saint-Exupéry, Jean Mermoz, Henry Guillaumet, Thor Heyerdahl and Sylvain Tesson.