Navegando Posts em Personalidades

Portugal, Aldeias, Vilas e Música Sefardita

Não sei se tenho muita razão:
mas o que é certo é que quase sempre me causa revolta
(e eu já por lá passei pessoalmente) este sacrifício,
esta imolação, que o mundo faz do homem ao artista,
ignorando aquele para egoisticamente se rever na obra deste,
e depois cantar loas à grandeza e à glória do Homem,
do Espírito e não sei que mais coisas escritas com maiúsculas.
Lopes-Graça

Nestes oito anos e meio de existência do blog, inúmeras vezes escrevi posts sobre a música portuguesa, sua importância e divulgação. Fernando Lopes-Graça (1906-1994), o grande compositor português do século XX, tem sido um dos temas preferenciais. Sua criação imensa abordou quase todos os gêneros musicais e sua pena arguta, inteligente e criativa legou cerca de 20 livros realmente preciosos sobre os mais variados temas da área. Em torno de Lopes-Graça nasceria, em fins de 2014, um projeto a visar eventos especiais em São Paulo.

Bruno Assami, competente diretor executivo da Unibes Cultural e adido cultural do Consulado Geral de Portugal em São Paulo, convidou-me para uma reunião em que discutimos a música sefardita em Portugal e a possibilidade da realização de apresentações para promover a difusão dessa manifestação artística. Foi lembrada a coleção dos 12 Cantos Sefardins (1969) para canto e piano de Lopes-Graça, ainda não apresentada em público. Em torno dessa obra um projeto foi montado e, entre os dias 13 e 15 de Outubro próximos, a Unibes Cultural e o Consulado Geral de Portugal em São Paulo sediarão um ciclo de palestras e recitais a abordar a obra e o pensamento de Lopes-Graça, a enfatizar os 12 Cantos Sefardins.

A palavra sefardi, de origem hebraica, aplica-se aos judeus originários de Portugal e Espanha. A tradição remonta, possivelmente, à época dos fenícios e é mais documentada a partir do Império Romano. Os sefaradis mantiveram tradições e sua cultura resistiu às muitas outras culturas majoritárias através dos tempos, como a cristã, a dos bárbaros e a dos mouros. Durante a Inquisição foram perseguidos na Península Ibérica e expulsos nos séculos XV e XVI, estabelecendo-se em comunidades na África do Norte, Brasil, México… Os sefarditas da nação portuguesa também são denominados sefarditas ocidentais. Quanto à sua música, tem ela forte influência das culturas do Médio Oriente.

Abre o ciclo o Prof. Dr. José Maria Pedrosa Cardoso, que realizou extensa pesquisa a respeito dos Cantos Sefarditas compostos por Fernando Lopes-Graça. Foi às origens dos temas escolhidos e encontrou fontes preciosas, que o ajudaram nesse desvelamento. Sua palestra no dia 13 de Outubro versará sobre esse aprofundamento. Extraí alguns pontos do artigo que será publicado brevemente pela revista portuguesa Glosas em Portugal e que será um dos três textos que irão compor um opúsculo a ser distribuído durante o ciclo promovido pela Unibes Cultural. Pedrosa Cardoso dá uma panorâmica da gestação dos Cantos Sefardins.

“Com o título de Cantos sefardins, op. 181, compôs Fernando Lopes-Graça, entre 1969 e 1971, um ciclo de 12 peças  para voz e piano as quais, segundo Romeu Pinto da Silva e outros observadores autorizados, bem como Conceição Correia do Museu da Música Portuguesa, ainda não foram executadas em público.

Em ambos os casos, trata-se de composições importantes, que vale a pena considerar no seu justo valor. Nada se sabe da versão para canto e piano, a não ser que foi alguma vez ensaiada pelo próprio compositor na sua casa  diante de Manuel Cadafaz de Matos, que diz ter recebido o autógrafo   oferecido pelo compositor: ‘Quanto às Canções Sefarditas de Lopes-Graça, informo que o CEHLE é o actual detentor do manuscrito autógrafo do compositor, que por ele nos foi cedido em retribuição de uma (que ele entendeu ser) dádiva de amizade. Tal ocorreu quando – no Verão de 1979 – eu fui o responsável, entre 5 de Abril e 12 de Outubro desse ano, na Rádio Comercial, na Rua Sampaio e Pina, em Lisboa, de um programa semanal (de uma hora cada) intitulado A Linguagem e o Mito na Música Portuguesa.’ (Informação pessoal, que muito se agradece, prestada pelo Prof. Doutor Manuel Cadafaz de Matos).

Mais importante do que as vicissitudes da estreia ou não estreia de Cantos sefardins é a questão de saber-se o motivo que levou Lopes-Graça a escrever sobre música sefardim, isto é, música de tradição judaica hispano-portuguesa. Parece certo que nunca o compositor escreveu nada que fosse sobre música tradicional judaica. Donde lhe veio o interesse por tais assuntos? Segundo o musicólogo Sérgio Azevedo, ‘a música popular dos judeus sefarditas não podia deixar de interessar Lopes-Graça, nascido (muito próximo da Sinagoga local) numa terra de grandes tradições judaicas: Tomar’ (encarte da gravação da versão para canto e orquestra de seis dos doze cantos sefardins em questão). Por sua vez, Mário Vieira de Carvalho refere-se às raízes de uma tradição hebraica ‘a que a casa natal do compositor bem como as suas origens familiares também se encontram ligadas’ (2006).

Todavia, e partindo deste pressuposto, poder-se-ia conjecturar apenas que Lopes-Graça se tenha imbuído de alguma tradição judaica vivida na sua infância ou até que alguma fímbria judaizante lhe corresse no sangue, o que ele jamais confessou. Nada seria de estranhar que o avô paterno de Lopes-Graça, de nome Elisiário da Graça, para além de sempre ter vivido ‘na Judiaria, mais tarde Rua Nova (actual Rua Dr. Joaquim Jacinto)…’ (cf. António de Sousa, A Construção de uma Identidade: Tomar na vida e obra de Fernando Lopes-Graça, Chamusca, Edições Cosmos, 2006), aparentemente na mesma casa onde nasceu o compositor, não devesse o seu nome uma efectiva filiação judaica.

Para se explicar o interesse de Lopes-Graça pela música sefardim poderíamos ainda invocar amizades com judeus que lhe marcaram a vida, um dos quais foi Louis Saguer. O que é certo é que o compositor, por volta de 1969, se interessou seriamente pela música tradicional judaica. Como tomou conhecimento daquelas melodias sefardins? Neste momento, é possível declarar que foi através de um livro da colecção de M. Giacometti: Chants Sephardis, uma colecçao recolhida e notada pelo célebre judeu francês, Léon Algazi, e publicada em 1958 pela World Sephard Federation. Ali foi possível encontrar, nas pp. 27, 45, 48, 52, 55, 56, 57,65, 66, 74, 75 e 79, as 12 peças que constituem o cancioneiro sefardim de Lopes-Graça, a saber, pela ordem mencionada: Un Cavritico, Cuando el Rey Nimrod, A la Nana, Noches, Noches, Una Noche yo me armi, A la una naci yo, Durmo la Nochada, Arvolera, Arvoles yoran, Morenica sos, El sasento e Si savias gioya mía.  Pode ser que M. Giacometti tenha recomendado estas, e não outras, canções, razão pela qual Lopes-Graça lhe dedicou as suas composições.

É certo que Lopes-Graça se dedicou de alma e coração, escrevendo, entre 1969 e 1971, as 12 peças de antologia que constituem o seu op. 181. Segundo Sérgio Azevedo, ‘nada nestas peças se fica pela banal harmonização, mera roupagem erudita de cantos populares simples. Ao invés, é um ciclo de poderosos lieder, por vezes próximos das vanguardas da época (podemos compará-los com as obras semelhantes de Berio, ou do último Britten), cujo sabor oriental e complexa profusão polifónica e orquestral fazem por vezes lembrar Szymanowski, na sua fase de fascínio arábico. Fechando o ciclo, o rítmico, obsessivo e quase salmódico el cavriti (o cabrito) transforma tudo numa dança popular desenfreada, de uma virtuosidade orquestral  (e vocal) estonteante.’

E agora que o mundo se prepara para escutar pela primeira vez a versão original para canto e piano, tal como se encontra depositada no Museu da Música Portuguesa, no dia 15 de Outubro p.f., em São Paulo, na Unibes Cultural, pela voz de Rita Morão Tavares e pelas mãos de José Eduardo Martins, apeteceria passar a pente fino o conteúdo musical das 12 melodias eleitas por Lopes-Graça da tradição sefardim. É o que será apresentado antes, no dia 13 de Outubro e no mesmo local, pelo signatário deste artigo em conferência com o título de ‘Os Cantos sefardins de Lopes-Graça: origem e panorâmica analítica’. Aquelas melodias, recolhidas maioritariamente em Paris por Léon Algazi, são as que o compositor português, prestando preito aos seus possíveis antepassados e, de qualquer modo, gloriosos filhos enjeitados de Portugal, revestiu sacralmente de uma arte pianística de  eleição. Sem o fazer, por simples premura de espaço, seja lícito salientar que, para além do respeito intocável pelas melopeias, já langorosas e cheias de saudade, já alegres e mesmo jocosas, Lopes-Graça colocou nelas o seu estilo inconfundível, que faz das mesmas modelo de virtuosismo e, ao mesmo tempo, de um tratamento musical absolutamente ímpar, que lhe merece, certamente, ser inscrito no quadro dos maiores compositores de música judaica dos tempos modernos”.

No próximo post apresentarei excertos de minha palestra “Em torno de ‘Canto de Amor e de Morte’ de Lopes-Graça – Mors Certa Hora Incerta“, em que o compositor evidencia nítida atração pelo tema desde Epitáfio para o Autor, terceiro dos três epitáfios compostos em 1930. Interpretarei essa obra, duas das nove Músicas Fúnebres e Canto de Amor e de Morte. Igualmente, postarei segmentos do terceiro texto que compõe o pequeno opúsculo a ser distribuído durante o ciclo e que aborda Viagens na Minha Terra, obra fundamental de Lopes-Graça, cujo título, homônimo ao do romance de Almeida Garrett, testemunha afeições às terras lusíadas. A execução das 19 peças das Viagens na Minha Terra será substanciada pelo datashow preparado pelo prof. Pedrosa Cardoso que visitou nestes últimos meses as aldeias, freguesias e vilas contempladas pelas Viagens… Na segunda parte do programa do dia 15 teremos a esperada primeira audição mundial dos 12 Cantos Sefardins do grande mestre nascido em Tomar. Também apresentarei no blog testemunhos referentes à recepção do valioso repertório a ser interpretado.

This post addresses the cycle of lectures and recitals sponsored by Unibes Cultural – a non-profit organization – and the Portuguese Consulate-General, addressing the work and thought of the composer Fernando Lopes-Graça, with focus on the world premiere of his 12 Sephardic songs for voice and piano. The event will take place from October 13 to 15 in São Paulo, with the participation of the Portuguese musicologist José Maria Pedrosa Cardoso, the Portuguese mezzo soprano Rita Morão Tavares and myself.

 

 

 

 

Quando a amizade Transcende

Aquele é bom,
tudo reza bem dele.
Adágio popular açoriano (Faial)

Foram vários os e-mails. Geralmente breves, traduziam a apreensão da mensagem contida no blog anterior. Uma pergunta merece resposta: “Qual a razão de um distanciamento tão grande durante tanto tempo?” Respondo a Rafael da Silva. São tantas as circunstâncias que nos tornam reféns de determinados bloqueios!!! Ao acabar o curso de Direito, sabia que não iria advogar, pois não tinha vocação, apesar de ter captado tantos ensinamentos. Minha vida é a música, desde a tenra infância, e sabia que um difícil caminho iria trilhar. Família constituída, tive que, por longo período, dedicar-me simultaneamente à atividade outra de sustento, sem declinar de estudos pianísticos, pesquisas e apresentações públicas. Ao entrar na Universidade de São Paulo, a dedicação foi exclusiva à Música. Esse longo período “sedentário” – viagens ao Exterior eram de curta duração, mas sempre ligadas à atividade musical – distanciou-me de Amizades essenciais, sem que, porém, deixasse de nelas pensar com afeto.

Meu colega na Universidade de São Paulo, o ilustre professor Gildo Magalhães, escreveu algo fundamental. “Crônica tocante, suspeito que mais velhos, como eu, podem apreciá-la na sua inteira singeleza e sinceridade”. Realmente, foi da geração que já ultrapassou o cinquentenário que mensagens chegaram. Observação aguda.

Já mencionei que meu dileto amigo, há tempos partner de tantos blogs, o compositor e pensador francês François Servenière, tem olhar de lince. Ao ler na Normandia, na manhã do último sábado, o blog recém-publicado, transmitiu mensagem significativa. Em torno de Gabriel Meirelles de Miranda, Servenière ergue um hino ao entendimento. Ei-lo:

“Magnífica a frase ‘Nós, homens, verdadeiros deuses’. Concordo inteiramente com as palavras de seu amigo Gabriel. Deus, na minha concepção, é a metáfora forjada pelos homens desde a antiguidade para expressar a riqueza interior que cada um de nós pode atingir através da corajem, da fé na existência, do trabalho, da empatia, do amor, da amizade…

Lendo o seu magnífico texto, dedicado ao seu amigo distante no tempo e no espaço, mas tão próximo no coração, pensei nos membros de minha família, ilustres farmacêuticos ou médicos, do campo ou de hospitais parisienses, que dividiam os mesmos valores e as mesmas práticas relacionadas à clientela de várias camadas sociais. O blog me fez lembrar de meu avô, Rémy, que, jovem farmacêutico, esteve no hospital de Verdun entre 1914 e 1918, em plena primeira Grande Guerra, tornando-se assistente de cirurgia e, após, cirurgião, por falta de pessoal e forçado pela lei, pois os estropiados tombavam aos milhares. Os mortos não eram o problema maior, centenas de milhares – milhões, no final da guerra -, mas os feridos que, ultrajadamente impossibilitados, tinham de ser ‘reabilitados’ para, talvez, retornar à frente do combate.

Ouvi de meu médico, Dr. Jean-Paul le Cam, especialista em medicina tropical, tendo exercido a função na África do Sul e na Inglaterra, que foi nesses lugares, verdadeiros açougues de guerra, que se forjou a técnica de cirurgia reparadora da qual o mundo de hoje é tributário. Quando li seu texto pensei nesses heróis da medicina. Meu pai foi um desses, pois doentes deslocavam-se 30km, na alta madrugada, dirigindo-se à sua farmácia, única onde podiam obter socorro ou medicamentos. Nada comparado aos pósteros que têm sobretudo vocação para cifras e  otimização do tempo de trabalho. Desgraçadamente, a Idade de Ouro desse espírito está bem longe da visão monetarista de hoje. E, garanto-lhe, ela existiu e teve ilustres representantes.

Chamou-me a atenção um outro trecho de seu texto. A sua formação em Direito na Faculdade de Pouso Alegre, que lembrou-me a que tive em Ciências Econômicas. Não seria esse outro olhar humanístico a permitir a reflexão sobre a sociedade e nossa arte, fruto das ciências humanas fundamentais que tivemos de abordar nessas Escolas? Para mim, foi um desvio – um pouco para provar que nessa área não encontraria meu caminho – antes de aprofundar-me no objeto vocacional, a música. Aliás, recebi todo o apoio familiar para a escolha definitiva. Certamente você o recebeu ambém.

Desde minha infância tive contato intenso com a prática médica. O amor e a empatia pela humanidade, encontráveis em tantos médicos abnegados, é um bálsamo e eu senti essa atmosfera nos anos que se estenderam pela juventude. Para mim, um engenheiro matemático que não fala ao coração dos homens é um mau profissional. Mesmo um mecânico que ama o ofício compreende melhor o motor do carro quando este começa a funcionar.

Admiro os que praticam farmácia e medicina, pois são eles engenheiros do corpo (e do espírito, tantas vezes) tendo a capacidade de captar pelo simples olhar e transmitir ao paciente os cuidados necessários a serem tomados bem antes da decisão de um receituário. Quando entro num consultório médico ou farmácia – sei que é sensação generalizada dos pacientes -, sinto-me já quase diagnosticado pela escuta e pela capacidade do médico vocacionado de sentir vibrações. Tudo lá está. A empatia é a vibração que se sente do outro, seu pulsar, sua energia e suas ondas. Sensações que podem ser negativas. Os músicos conhecem bem a simpatia, essa maravilha da ressonância que permite a todos os instrumentos ressoarem entre eles. A orquestra é um exemplo, tão dificilmente podendo ser reproduzida pela informática, quase impossível, artificialmente. Não somos diferentes dos instrumentos, mas somos sim, instrumentos de comunicação viva. Simpatia, empatia, quantas semelhanças! Consequência direta, o efeito placebo. O verdadeiro médico generalista é assim. Inocula confiança no corpo do paciente e este deve encontrar muitas vezes seus medicamentos ‘internos’ para salvar-se.

Artistas, filósofos e místicos são médicos da alma. Salvam os seres pela beleza e pela evocação do melhor da alma humana, materializada pela frase de seu amigo Gabriel Meirelles de Miranda: ‘Nós, homens, verdadeiros deuses’. Tudo está dito. Tudo está no fundo de nosso coração, no nosso de profundis capaz de criar compartimentos encantadores, desses que corroboram o salvamento do espírito e da alma nos momentos mais sombrios: ‘a beleza salvará o mundo’ (Dostoievsky, certamente).

Quando li seu texto pensei em meus ascendentes, que disseminaram esse mesmo estado de espírito nas suas regiões de influência, tal qual seu amigo Gabriel. Leva-me a pensar na sábia frase do cantor Sting, que eu espero não trair nesta mensagem: ‘Para mudar o mundo, é necessário começar ao seu redor’. Essas personagens públicas de que falamos são exemplos. A nós retomarmos essa flama e a herança como nossos meios e ferramentas. Mas sempre com o mesmo espírito. Atitude absolutamente contrária à mentalidade que dissemina o ódio, a discórdia e a guerra.

A medicina também tem seus aspectos sombrios, desenvolve formas de pesquisa para necessidades militares com o desiderato precípuo de matar o mais rapidamente possível o maior número de indivíduos. Parte dessa sombra da humanidade devemos combater a partir de nosso espírito positivo em  nossas atividades musicais. O compositor armênio Aram Khatchaturian tem fabulosa e célebre citação, que considera como objetivo ‘uma música que seja bela em si, nem grande nem pequena, mas simplesmente bela, aberta, expansiva, que traduza a felicidade de viver. Há muita feiura e desesperança no mundo para que não as deixemos invadir nossa arte’.

Finalmente, não há acaso em nossos posicionamentos artísticos respectivos, desenvolvidos comumente em nossas linhas hebdomadárias. Fomos influenciados, numa vasta comparação, pelos mesmos tipos de pessoas, pelos mesmos professores, pelos mesmos artistas e os mesmos praticantes da medicina… Todos eles nos falaram simplesmente de uma empatia pela vida e pela humanidade. Generosidade, amor, amizade. Valores que prazerosamente compartilhamos.

O que de mais precioso do que essa prática que também comungamos, o elogio da lentidão!!! Gostaria de terminar meu e-mail semanal a comentar seus blogs por uma observação desses dois rostos na foto do post sobre seu grande amigo Gabriel e que exprimem, simplesmente, felicidade e bondade. Eis o que é ‘realizar-se na vida’ “. (tradução: J.E.M.)

The last post about friendship received much feedback. This week I mention some e-mails from readers on the subject and transcribe passages of a long e-mail from the French composer François Servenière about friendship and also about his family, reminding us that he was born into a family of altruistic doctors and pharmacists, so distant from the business-minded approach of today’s professionals.

 

 


Amizade que Desafiou Tempo e Distância

Entre um homem e outro homem há barreiras que nunca se transpõem.
Só sabemos, seguramente, de uma amizade ou de um amor:
o que temos pelos outros.
De que os outros nos amem nunca poderemos estar certos.
E é por isso talvez que a grande amizade e o grande amor
são aqueles que dão sem pedir,
que fazem e não esperam ser feitos;
que são sempre voz ativa, não passiva.
Agostinho da Silva

Em Portugal, não por outro motivo, quando se quer grafar o nome do verdadeiro amigo, escreve-se com A maiúsculo. A dádiva da amizade sempre esteve além de uma percepção cotidiana. O Amigo é, existe, e tempo e distância não obliteram a intensidade do afeto.

No capítulo CCXIX de “Citadelle”, de Saint Exupéry, essa obra monumental que, no dizer de sua irmã, Simone de Saint-Exupéry, “aborda todos os problema da destinação humana e do condicionamento do homem”, o autor conta a história de dois amigos jardineiros que trabalhavam com espírito fraterno, encontravam-se sempre para o chá ao entardecer, trocavam confidências e ideias sobre plantas. Diálogo em poucas palavras. Quando passeavam juntos olhavam flores, árvores e o céu. Gestos com a cabeça eram o suficiente para a compreensão da fauna e da vida. Certo dia, um mercador contratou um deles para juntar-se à sua caravana por algumas semanas apenas. Mas vicissitudes mil levaram-no aos confins do mundo. Separados, não tiveram mais contato. Decênios se passaram e o jardineiro sedentário recebeu um dia carta de seu velho amigo. Emocionado, apreende o breve escrito: “Esta manhã podei minhas roseiras”. Três anos se passaram e o jardineiro a pensar na distância separando-o do amigo e em como responder à sua carta. Enfim, seu amo encontra um emissário que poderia ser portador da resposta, que atravessaria desertos e mares até seu amigo ausente. Dias a rabiscar e a rasurar a mensagem, que chega enfim a termo. Feliz, entrega ao amo. Dizia apenas: “Esta manhã, eu também podei minhas roseiras”.

Conheci Gabriel Meirelles de Miranda no final dos anos 1960. Médico e cirurgião em Pouso Alegre, Minas Gerais, Gabriel é uma das mais ilustres figuras da cidade. Foi aos recitais de piano que dei no Conservatório Estadual de Música de Pouso Alegre, a convite da professora Horma Valadares. No início dos anos 1970 prestei vestibular para curso na Faculdade de Direito do Sul de Minas e durante anos, até  a conclusão em 1975, frequentei semanalmente a cidade, pois as aulas eram oferecidas às sextas-feiras à tarde e à noite e aos sábados pela manhã. Ao todo, 18 aulas!!! Viajar de carro naquele período era uma aventura, pois a Fernão Dias oferecia apenas uma pista, curvas mal planejadas, acostamento por vezes inexistente, asfalto pleno de crateras. Como acréscimo, ausência do cinto de segurança que passaria a ser obrigatório a partir de 1994. Todos os anos alguns alunos perdiam a vida nessa perigosa viagem. Optei pelo Direito, pois créditos em música que obtivera em Paris não eram aceitos àquela altura nos recentes cursos universitários em São Paulo. Gostei do curso de Direito que me deu, primeiramente, condição de entrar na Universidade de São Paulo em 1982, lá permanecendo até 2008. Apesar de jamais ter exercido a profissão de advogado, em Pouso Alegre adquiri bases jurídicas que me foram úteis, e dezenas e dezenas de pareceres emiti na USP quando, a convite de vários reitores, integrei algumas das mais importantes comissões da Universidade.

Essa premissa pessoal faz-se necessária. Naqueles anos em que cursei a Faculdade, quase todas as sextas-feiras, após as aulas, por volta das 23h45min, o Dr. Gabriel, como sempre foi chamado em Pouso Alegre, estava a me esperar para irmos comer uma pizza. Tranquilo a fumar seu cigarrinho, andar lento, fala serena, Gabriel ensinou-me, sem o saber, a entender a vida “pausadamente”. Mostrava-me, ao narrar episódios de sua vida desde a infância, uma outra maneira de compreender o outro. Jamais o vi intranquilo. Quantas não foram as vezes em que, na pizzaria, ficávamos silenciosos. Estar juntos era por si só motivo de alegria interior. Nossas confidências tinham o dom da viagem mental. Imaginávamos um mundo ideal.

Descende de notáveis médicos que permaneceram na história mineira: seu avô, Olinto Deodato dos Reis Meirelles, foi um dos fundadores da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte e prefeito da capital mineira de 1910 a 1914; seu pai, médico ilustre também, Custódio Ribeiro de Miranda, responsável pela construção do hospital Samuel Libânio em Pouso Alegre e prefeito da cidade de 1951 a 1956.

Na cidade mineira, Gabriel Meirelles de Miranda teve toda uma vida dedicada à medicina. Inicialmente, trabalhou com seu pai no hospital Samuel Libânio, onde não apenas exerceu a atividade, como foi diretor durante cinco anos.  Especialista em cirurgia geral, clínica geral, pediatria e obstetrícia, seu diagnóstico preciso granjeou-lhe reputação inconteste. Na Faculdade de Medicina da Fundação de Ensino Superior do Vale do Sapucaí assumiu a cadeira de cirurgia geral. Sua dedicação à medicina fê-lo continuar até fins de 2010 o ensino na cadeira de professor de Ginecologia!!!

Estou a me lembrar de que Gabriel atendia pacientes no consultório montado em sua casa. Causava-me admiração a diversidade daqueles que o procuravam, dos vários níveis sociais. Gabriel dispensava a mesma atenção, não se importando com patamares sociais. E sempre com a mesma serenidade. Ele, como bom samaritano, a atender tantos doentes sem buscar a menor remuneração. Sim, ela existia na única forma de gratidão dessa gente simples: um frango, ovos, legumes, frutas, uma lágrima. Confessava-me que essas oferendas simbólicas representavam o que de mais precioso o sofrido paciente podia oferecer. Eu, já naqueles anos de reestruturação, contava-lhe meu desiderato voltado à divulgação de obras excelsas, mas escondidas. Dizia-lhe, nos meus trinta e poucos anos, que tinha consciência de um tributo a pagar, mas correria o risco. E corri sem me arrepender, apesar do preço saldado. Gabriel encorajava-me.

Convivi com sua esposa, a saudosa Aparecida, e com seus cinco filhos adoráveis. Regina acompanhou-me algumas vezes e a amizade familiar frutificaria. Aos sábados, antes de regressar a São Paulo, passava por sua casa para me despedir e não foram poucas as oportunidades em que almocei junto aos seus. Sob outro aspecto, quando, por motivos vários – a ausência de um professor ou a infausta morte de um colega na fatídica estrada – não havia aula, ia à sua morada e estudava no piano da edícula.

Findo o curso de Direito, retornaria à Pouso Alegre para o casamento de sua encantadora filha, Maria Leonor, com o jovem médico José Carlos, hoje professor e diretor do Instituto de Patologia José Carlos Corrêa. Umas poucas vezes mais encontrei-me com Gabriel, quando vinha a São Paulo visitar um de seus filhos. Almoçávamos e trocávamos confidências, como sempre. Passaram-se decênios e um silêncio se fez. Não é raro o fato entre grandes Amigos. Distância, atividades tantas não provocaram névoas. Restaria para sempre o afeto da amizade inquebrantável.

O acaso tornou possível o acesso de seu telefone em Pouso Alegre através de bom amigo que mora em Jaguariúna, Mário Sérgio Mariottoni, pois seu irmão é médico na cidade mineira. Após uma distância temporal incomensurável, cerca de 40 anos, telefonei-lhe. Imediatamente Gabriel, com firmeza, disse meu nome. Dupla emoção. Tanto para dizer… vontade mútua de um encontro. Deu-se. Seus netos marcaram jantar em São Paulo, na morada de um deles. Encontrei Gabriel nos seus 92 de idade. Nossos olhares traduziram no silêncio bem mais do que as palavras. Muita comoção. Noite mágica a não ser esquecida. Uma certeza ficou desse “primeiro” encontro. Naquela noite, juntos, nós dois podamos nossas roseiras.

P.S. Ao acessar dois links o leitor poderá conhecer essa figura extraordinária, simplesmente Gabriel, como sempre quis ser chamado.

Dr.Gabriel – “Nós, homens, verdadeiros deuses”

TVFuvs: Homenagem ao Dr. Gabriel Meirelles de Miranda

On the priceless gem of friendship and my bond with Gabriel Meirelles de Miranda, a doctor I knew in the city of Pouso Alegre in the sixties, a deep relationship that time and distance did nothing to diminish.