Amizade que Desafiou Tempo e Distância

Entre um homem e outro homem há barreiras que nunca se transpõem.
Só sabemos, seguramente, de uma amizade ou de um amor:
o que temos pelos outros.
De que os outros nos amem nunca poderemos estar certos.
E é por isso talvez que a grande amizade e o grande amor
são aqueles que dão sem pedir,
que fazem e não esperam ser feitos;
que são sempre voz ativa, não passiva.
Agostinho da Silva

Em Portugal, não por outro motivo, quando se quer grafar o nome do verdadeiro amigo, escreve-se com A maiúsculo. A dádiva da amizade sempre esteve além de uma percepção cotidiana. O Amigo é, existe, e tempo e distância não obliteram a intensidade do afeto.

No capítulo CCXIX de “Citadelle”, de Saint Exupéry, essa obra monumental que, no dizer de sua irmã, Simone de Saint-Exupéry, “aborda todos os problema da destinação humana e do condicionamento do homem”, o autor conta a história de dois amigos jardineiros que trabalhavam com espírito fraterno, encontravam-se sempre para o chá ao entardecer, trocavam confidências e ideias sobre plantas. Diálogo em poucas palavras. Quando passeavam juntos olhavam flores, árvores e o céu. Gestos com a cabeça eram o suficiente para a compreensão da fauna e da vida. Certo dia, um mercador contratou um deles para juntar-se à sua caravana por algumas semanas apenas. Mas vicissitudes mil levaram-no aos confins do mundo. Separados, não tiveram mais contato. Decênios se passaram e o jardineiro sedentário recebeu um dia carta de seu velho amigo. Emocionado, apreende o breve escrito: “Esta manhã podei minhas roseiras”. Três anos se passaram e o jardineiro a pensar na distância separando-o do amigo e em como responder à sua carta. Enfim, seu amo encontra um emissário que poderia ser portador da resposta, que atravessaria desertos e mares até seu amigo ausente. Dias a rabiscar e a rasurar a mensagem, que chega enfim a termo. Feliz, entrega ao amo. Dizia apenas: “Esta manhã, eu também podei minhas roseiras”.

Conheci Gabriel Meirelles de Miranda no final dos anos 1960. Médico e cirurgião em Pouso Alegre, Minas Gerais, Gabriel é uma das mais ilustres figuras da cidade. Foi aos recitais de piano que dei no Conservatório Estadual de Música de Pouso Alegre, a convite da professora Horma Valadares. No início dos anos 1970 prestei vestibular para curso na Faculdade de Direito do Sul de Minas e durante anos, até  a conclusão em 1975, frequentei semanalmente a cidade, pois as aulas eram oferecidas às sextas-feiras à tarde e à noite e aos sábados pela manhã. Ao todo, 18 aulas!!! Viajar de carro naquele período era uma aventura, pois a Fernão Dias oferecia apenas uma pista, curvas mal planejadas, acostamento por vezes inexistente, asfalto pleno de crateras. Como acréscimo, ausência do cinto de segurança que passaria a ser obrigatório a partir de 1994. Todos os anos alguns alunos perdiam a vida nessa perigosa viagem. Optei pelo Direito, pois créditos em música que obtivera em Paris não eram aceitos àquela altura nos recentes cursos universitários em São Paulo. Gostei do curso de Direito que me deu, primeiramente, condição de entrar na Universidade de São Paulo em 1982, lá permanecendo até 2008. Apesar de jamais ter exercido a profissão de advogado, em Pouso Alegre adquiri bases jurídicas que me foram úteis, e dezenas e dezenas de pareceres emiti na USP quando, a convite de vários reitores, integrei algumas das mais importantes comissões da Universidade.

Essa premissa pessoal faz-se necessária. Naqueles anos em que cursei a Faculdade, quase todas as sextas-feiras, após as aulas, por volta das 23h45min, o Dr. Gabriel, como sempre foi chamado em Pouso Alegre, estava a me esperar para irmos comer uma pizza. Tranquilo a fumar seu cigarrinho, andar lento, fala serena, Gabriel ensinou-me, sem o saber, a entender a vida “pausadamente”. Mostrava-me, ao narrar episódios de sua vida desde a infância, uma outra maneira de compreender o outro. Jamais o vi intranquilo. Quantas não foram as vezes em que, na pizzaria, ficávamos silenciosos. Estar juntos era por si só motivo de alegria interior. Nossas confidências tinham o dom da viagem mental. Imaginávamos um mundo ideal.

Descende de notáveis médicos que permaneceram na história mineira: seu avô, Olinto Deodato dos Reis Meirelles, foi um dos fundadores da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte e prefeito da capital mineira de 1910 a 1914; seu pai, médico ilustre também, Custódio Ribeiro de Miranda, responsável pela construção do hospital Samuel Libânio em Pouso Alegre e prefeito da cidade de 1951 a 1956.

Na cidade mineira, Gabriel Meirelles de Miranda teve toda uma vida dedicada à medicina. Inicialmente, trabalhou com seu pai no hospital Samuel Libânio, onde não apenas exerceu a atividade, como foi diretor durante cinco anos.  Especialista em cirurgia geral, clínica geral, pediatria e obstetrícia, seu diagnóstico preciso granjeou-lhe reputação inconteste. Na Faculdade de Medicina da Fundação de Ensino Superior do Vale do Sapucaí assumiu a cadeira de cirurgia geral. Sua dedicação à medicina fê-lo continuar até fins de 2010 o ensino na cadeira de professor de Ginecologia!!!

Estou a me lembrar de que Gabriel atendia pacientes no consultório montado em sua casa. Causava-me admiração a diversidade daqueles que o procuravam, dos vários níveis sociais. Gabriel dispensava a mesma atenção, não se importando com patamares sociais. E sempre com a mesma serenidade. Ele, como bom samaritano, a atender tantos doentes sem buscar a menor remuneração. Sim, ela existia na única forma de gratidão dessa gente simples: um frango, ovos, legumes, frutas, uma lágrima. Confessava-me que essas oferendas simbólicas representavam o que de mais precioso o sofrido paciente podia oferecer. Eu, já naqueles anos de reestruturação, contava-lhe meu desiderato voltado à divulgação de obras excelsas, mas escondidas. Dizia-lhe, nos meus trinta e poucos anos, que tinha consciência de um tributo a pagar, mas correria o risco. E corri sem me arrepender, apesar do preço saldado. Gabriel encorajava-me.

Convivi com sua esposa, a saudosa Aparecida, e com seus cinco filhos adoráveis. Regina acompanhou-me algumas vezes e a amizade familiar frutificaria. Aos sábados, antes de regressar a São Paulo, passava por sua casa para me despedir e não foram poucas as oportunidades em que almocei junto aos seus. Sob outro aspecto, quando, por motivos vários – a ausência de um professor ou a infausta morte de um colega na fatídica estrada – não havia aula, ia à sua morada e estudava no piano da edícula.

Findo o curso de Direito, retornaria à Pouso Alegre para o casamento de sua encantadora filha, Maria Leonor, com o jovem médico José Carlos, hoje professor e diretor do Instituto de Patologia José Carlos Corrêa. Umas poucas vezes mais encontrei-me com Gabriel, quando vinha a São Paulo visitar um de seus filhos. Almoçávamos e trocávamos confidências, como sempre. Passaram-se decênios e um silêncio se fez. Não é raro o fato entre grandes Amigos. Distância, atividades tantas não provocaram névoas. Restaria para sempre o afeto da amizade inquebrantável.

O acaso tornou possível o acesso de seu telefone em Pouso Alegre através de bom amigo que mora em Jaguariúna, Mário Sérgio Mariottoni, pois seu irmão é médico na cidade mineira. Após uma distância temporal incomensurável, cerca de 40 anos, telefonei-lhe. Imediatamente Gabriel, com firmeza, disse meu nome. Dupla emoção. Tanto para dizer… vontade mútua de um encontro. Deu-se. Seus netos marcaram jantar em São Paulo, na morada de um deles. Encontrei Gabriel nos seus 92 de idade. Nossos olhares traduziram no silêncio bem mais do que as palavras. Muita comoção. Noite mágica a não ser esquecida. Uma certeza ficou desse “primeiro” encontro. Naquela noite, juntos, nós dois podamos nossas roseiras.

P.S. Ao acessar dois links o leitor poderá conhecer essa figura extraordinária, simplesmente Gabriel, como sempre quis ser chamado.

Dr.Gabriel – “Nós, homens, verdadeiros deuses”

TVFuvs: Homenagem ao Dr. Gabriel Meirelles de Miranda

On the priceless gem of friendship and my bond with Gabriel Meirelles de Miranda, a doctor I knew in the city of Pouso Alegre in the sixties, a deep relationship that time and distance did nothing to diminish.