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Uma releitura a trazer certezas

A música não é um fenômeno da natureza.
Ela é produzida pelo homem. É uma arte.
Igor Stravinsky

Paulatinamente estou a catalogar meus livros sobre música. Tarefa longa que, felizmente, não realizo isoladamente. Nossa vizinha e amiga Regina Maria, revisora de meus textos semanais e responsável pelos abstracts, tem-me ajudado com eficácia.

A minha faixa etária faz-me enfrentar essa redescoberta, pois muitos livros, apesar de lidos e anotados, não recebiam meu olhar há décadas. Curiosamente, como escreveu meu amigo António Menéres: “Sempre que posso olho os meus livros, quer as lombadas simplesmente cartonadas, a sua cor, os títulos das obras; mesmo sem os abrir adivinho o seu conteúdo e, quando os folheio, reconheço as leituras anteriores, muitas das quais estão sublinhadas, justamente para me facilitar outros e novos convívios” (vide blog “Crônicas contra o esquecimento”, 03/08/2007). Centenas de livros sobre música, a maioria profusamente sublinhada, estão sendo catalogados por ordem alfabética e por categoria. Trabalho lento e que requer atenção redobrada. As primeiras leituras musicais datam do início da década de 1950. Àquela época, música e aventuras por terras e mares desconhecidos eram as minhas preferidas. Somei com o tempo outras preferências.

Ao retirar de uma prateleira os dois primeiros dos quatro volumes de “Plaisir de la Musique” (Roland-Manuel avec la collaboration de Nadia Tagrine – Paris, Aux Éditions du Seuil, 1947-1950), recordei-me da leitura durante os anos parisienses (1958-1962). Folheei-os no presente e instantaneamente os temas voltaram transparentes à memória. Deduzo, sessenta anos após, tratar-se de verdadeiro manancial. “Plaisir de la Musique” é o resultado de entrevistas radiofônicas conduzidas pelo compositor, professor e crítico musical Roland-Manuel (1891-1966), com a colaboração da pianista e professora Nadia Tagrine (1917-2003), durante as quais figuras exponenciais da música em França colocavam suas posições. Os capítulos dos livros seguem uma orientação clara e, basicamente, de maneira agradável e competente, os dois notáveis entrevistadores perpassam parte substancial dos problemas a envolver a Música, sua História, interpretação, instrumentos, técnica e teoria, compartilhando com os ouvintes dos ilustres convidados as conversas sobre música clássica ou erudita transmitidas ao vivo aos domingos. O público participava e os programas eram transmitidos diretamente da Salle Favart, em Paris. A programação estendeu-se de 1944 a 1966. Havia a audição de composições mencionadas durante o decorrer das entrevistas. Ao leitor diria que, entre os entrevistados dessa programação radiofônica, há nomes que perduraram pela excelência: Francis Poulenc, Henri Dutilleux, Arthur Honegger, Jacques Chailley, Marc Pincherle, Claude Rostand, Jean Rivier, Henri Barraud e tantas outras relevantes figuras. Durante as entrevistas, os convidados abandonam o tom professoral, transmitindo ao público, aos ouvintes e aos futuros leitores a essência de temas fulcrais que se tornam bem palatáveis ao se ler os livros em questão. Todavia, há profundidade nas abordagens, a revelar que não há necessidade do discurso tantas vezes enfadonho das Academias, camuflagem a evidenciar a ausência do raciocínio lógico e transparente.

No primeiro volume, os envolvidos debatem em cada programa problemas essenciais relativos à Música: De onde vem a música? Porque a realizamos? A seguir, compartimentam os vários instrumentos e discutem suas características. A cada domingo o convidado especialista expressava suas opiniões profundas, mas de maneira palatável. Como exemplo, ao notável compositor Francis Poulenc foi destinado o Piano como tema. De maneira tranquila Poulenc afirma sua predileção. A uma indagação de Roland-Manuel sobre o compor ao piano de maneira natural, Poulenc diz ser questão de temperamento e que ele sempre o fez desde a infância, como aliás Stravinsky e tantos outros. A conversa a três se prolonga com várias citações históricas, qualidades estilísticas dos compositores que escreveram para piano, capacidade do instrumento, a importância dos pedais como recurso sonoro e a maior dificuldade durante a interpretação representada pelo pianissimo ou as baixas intensidades. Poulenc observa as heranças musicais “transmitidas” por Chopin e Liszt para Debussy e Ravel, respectivamente.

Um tema recorrente em tantos dos meus blogs ao longo de mais de uma década concentra-se no repertório não frequentado. Roland-Manuel abre um de seus programas com frase de Debussy sobre a glória de um autor desconhecido vir a ser redescoberto. A seguir, menciona Georges de Latour (1593-1652), pintor no reinado de Louis XIII, célebre no período e esquecido durante os três séculos subsequentes, mas hoje uma das glórias do Louvre. A partir do exemplo e de intervenções de Nadia Triguine, Roland-Manuel comenta que temos hoje (década de 1940, no caso) “maior curiosidade sobre o passado do que nossos pais. Interessamo-nos pela música dos séculos XV e XVI e temos prazer nesse mister, inclusive na escuta do canto gregoriano”. O ilustre convidado Claude Rostand (1912-1970), musicólogo, musicógrafo e crítico musical, acrescenta realidade tão presente ainda hoje, setenta anos após: “O espírito rotineiro, o medo da aventura são, infelizmente, difundidos, mesmo na juventude. Pude comprovar recentemente a assertiva na Comissão literária das ‘Juventudes Musicais’, empreendimento aliás digno de interesse. Propusemos aos jovens delegados inscrever em seus programas algumas obras distantes da rotina ordinária. Responderam que não seria possível, pois não gostariam de ouvir músicas desconhecidas”. Roland-Manuel acrescenta “Infelizmente! Eis um vício burguês. Hesitamos viajar pelo fato de sermos prisioneiros de nossos hábitos. Amamos a música e nos esquecemos que não há verdadeiro amor sem risco. Amamos Debussy e nos contentamos em ouvir L’Après-midi d’un Faune. Todavia, quem se preocupa em ouvir Gigues?” ( Gigues -1909-1912 – é a primeira peça das Images pour orchestre de Debussy). Entrevistado, o compositor Henri Barraud (1900-1997) observa algo que era bem sentido na sociedade francesa que frequentava concertos “Infelizmente, o francês da classe média considera a música uma coisa morta. Não parece singular que esse mesmo público, que não lê livros antigos e que raramente assiste às tragédias clássicas, limite sua curiosidade musical às grandes obras do romantismo alemão?”

A leitura de “Plaisir de la Musique” provoca momentos de verdadeiro prazer, como bem atesta o título dos livros. Nessas entrevistas, Rolland-Manuel e Nadia Tagrine perpassam a História da Música, os elementos constitutivos da escrita musical, os instrumentos e suas peculiaridades, discutem Estética, Estilo e Sociedade de maneira natural só possível se a competência plena existir, transmitindo autenticidade e confiabilidade. A formação musical e humanística de todos os envolvidos na programação, entrevistadores e convidados, não os faz hesitar. Sob outra égide, as temáticas precisas e por vezes técnicas apenas dimensionam a qualidade dos programas. Felizmente o livro, quando tesouro, torna-se essência essencial para o aprimoramento humanístico. Por maiores que sejam os avanços da tecnologia, o livro deverá permanecer como guardião do conhecimento.

Estou a me lembrar de ter frequentado durante três meses (1º de Fevereiro- 30 de Abril de 1959) curso de Estética Musical ministrado pelo eminente Roland-Manuel no Conservatoire National de Musique, na Rue de Madrid em Paris. Impressionou-me sua vasta cultura multidirecionada. A seguir interessei-me não unicamente pelo piano – fulcro central –, mas por outras áreas musicais e humanísticas, passando a adquirir doravante livros pertinentes, lidos e anotados e que presentemente visito com renovado prazer, a fim da catalogação.

No próximo blog comentarei a participação de dois ilustres compositores, Henry Dutilleux (1916-2013) e Arthur Honegger (1892-1955). Entrevistados por Roland-Manuel e Nadia Triguine, de maneira transparente, debatem temas musicais relevantes.

The post of this week addresses the book “Plaisir de la Musique”, derived from a radio broadcasting that took place every Sunday at the Salle Favart, in Paris, from  1944 to 1966, hosted by composer and critic Roland-Manuel and pianist Nadia Tagrine. The pair has invited prominent figures in French classical music to talk about music: its history, instruments, styles, aesthetics, elements of music writing. Among the personalities invited we can mention Francis Poulenc, Henri Dutilleux, Arthur Honegger, Jacques Chailley, Marc Pincherle, Claude Rostand, Jean Rivier and Henri Barraud. All of them speaking in a language accessible to a l ayperson, without jargon-filled vernacular. Depth without pedantry. Re-reading the book has been a real pleasure that reminded me of Vargas Llosa’s views on the decline of culture.  Radio programs such as “Plaisir de la Musique” do not exist anymore because culture today tends to be just entertainment and frivolity.

Mentira e delação premiada, males com efeitos imprevisíveis

Remédio é para o acidente, não para a essência.
Agostinho da Silva (“Espólio”)

Como sempre, aos sábados pela manhã vou à feira-livre do Campo Belo, limítrofe do meu Brooklin no qual persisto em morar desde 1958. É a teoria de Plínio Marcos, que considerava sua cidade não a natal, mas aquele torrão por ele habitado, Santa Cecília, no coração de São Paulo.

Encontro Marcelo e pergunto-lhe se tem desesperança quanto aos rumos do Brasil. “Não, estou a par de tudo, mas anestesiado, não mais acredito em soluções a médio prazo. Amigos estão pensando o mesmo e enxergam apenas neblina”. Insisti se achava essa atitude a melhor. “O cotidiano maculado diariamente não me possibilita outra maneira de pensar. Percebo que a grande maioria dos políticos está com ficha suja, sobretudo os que estão no poder neste século nada promissor. Estamos mergulhados num pântano”.  Após a feira-livre revisitei as charges de meu saudoso amigo e grande artista plástico, Luca Vitali (1940-2013). Como são atuais seus desenhos!

Nestes últimos anos causa-me perplexidade a insistência de temas precisos do cotidiano, recorrentes nas conversas que mantemos com amigos ou conhecidos. Houve mudança de foco. Se futebol, mormente entre os homens, é tema quase que prioritário, jamais abandonado, consolida-se um nítido desvio para assuntos mais voltados hoje à política e à corrupção. O Brasil sempre soube da corrupção, mas ela mantinha-se em espécie de “banho maria” ou, emprestando outra metáfora, como uma doença crônica sem consequência fatal. Saint-Exupéry, em “Citadelle”, conta a história do mendigo portador de chagas que não as deixava cicatrizarem, pois com elas conseguia a condolência pública.

Assistimos, principalmente a partir do início do século, à ascensão galopante desse flagelo que é a corrupção. Todos a conhecem, da burocracia a mais inferior na hierarquia aos políticos que pululam no Estado brasileiro. A Lava-Jato, surgida ocasionalmente, fixar-se-ia na corrupção programada “cirurgicamente”, sangrando o país, surrupiando verbas que deveriam estar direcionadas para o benefício do povo. É estarrecedor o modo como o Estado foi assaltado. Silente através das décadas, foi sacudido pelos desvarios do Mensalão, Petrolão e tantos outros mais, envolvendo políticos e empresários.

A tragédia brasileira é a absoluta destruição da ética e da moral. A mentira como verdade, a delação como “princípio final”. Machado de Assis já vaticinava que “a mentira é tão involuntária como a respiração”. A desgastada, mas tristemente real, frase de Joseph Goebbels – “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade” – tem sido a “regra” daqueles, que por motivos vis, não querem e por vezes não podem (sic) confessar práticas ilícitas. Essa nefasta atitude de fuga da verdade é sempre e invariavelmente a resposta dos envolvidos, políticos, empresários e figuras dentro ou próximas ao poder quando atos de desvios de conduta a eles atribuídos são descobertos. Jamais confessam de imediato. Em entrevista publicada no dia 17, o coordenador-geral da força-tarefa da Operação Lava-Jato, Procurador Deltan Dallagnol, afirmou: “Existe um mundo de corrupção para ser investigado. Puxam-se penas e não vêm apenas galinhas, mas granjas inteiras….” (https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2017/07/17/classe-politica-a-espreita-de-uma-oportunidade-para-se-livrar-da-prisao).

Quanto à delação premiada, ela nunca é aceita em prol do Brasil pelo implicado em crimes de enriquecimento ilícito de toda a ordem, mas sim para o abrandamento da pena. A delação premiada está aí escancarada, a revelar escândalos que arrepiam a todos desvinculados de militâncias fanatizadas. A delação é uma das mais abjetas atitudes do homem. Paradoxalmente, revela a dimensão das entranhas apodrecidas pela corrupção. Sem a delação premiada como saberíamos de grande parte dos ilícitos? Estarrece o cidadão cumpridor de seus deveres e obrigações. Estou a me lembrar de minha tenra infância. Tinha eu não mais de dez anos quando entrei na sala de casa para dizer ao meu pai que irmãos tinham feito peraltices próprias da idade, mas que certamente o desagradariam. Imediatamente meu pai se retirou para reprimendas e eu ia segui-lo. Na sala estava Monsieur Keller, agente para a América Latina da firma francesa que meu pai representava em São Paulo. Com serenidade pediu que sentasse ao seu lado. Disse-me que a delação era a mãe de todos os males. Inocentemente perguntei-lhe qual a razão. Levantou a barra da calça e mostrou-me a perna mecânica. Assustado, indaguei-lhe o porquê. Falou-me então que, durante a primeira grande guerra, um desertor delatara aos alemães o esconderijo onde estava com outros soldados. Na escaramuça, a explosão de uma granada destruiu sua perna. Nunca mais me esqueci dessa história. Lição de vida.

A situação no Brasil estaria muito mais tranquila se julgamentos de políticos, empresários e figuras outras ligadas ao governo tivessem por parte do Judiciário maior rapidez. Impressiona no mundo ocidental a demora para que figuras proeminentes no cenário político brasileiro sejam julgadas, sentenças proferidas e penas cumpridas. Em meu blog sobre “A Justiça” (29/10/2009) comentava que pessoas das várias gradações da classe média por mim abordadas opinaram sobre a credibilidade da nossa Justiça. As vinte e tais questionadas responderam sem titubear que não acreditavam na Justiça de nosso país. Presentemente indaguei a um igual número de pessoas menos favorecidas e a unanimidade vinha carregada de certa irritação. Hoje a maioria desses trabalhadores de serviços ou de empresas tem algum dos muitos tipos de celular e contato direto com a notícia. Não são idiotas e facilmente percebem que nem todos são iguais perante a lei. Pessoas simples me responderam saber que presidentes ou ex foram presos após sentenciados na Coreia do Sul e no Peru, mas que o mesmo não ocorre no Brasil. Estão cientes da quantidade de políticos envolvidos com a Justiça. Quando mencionei a Lava-Jato, alguns disseram temer sua estagnação por forças estranhas. Aqueles com quem falei desconhecem a quantidade de recursos que tramitam nos muitos tribunais e prazos que, “legalmente” esticados, impedem a celeridade. Sem contar a quantidade absurda de processos engavetados à espera de resoluções sine die.

Marcelo, pertencente à classe média, asseverou-me também que hoje acredita ainda menos na Justiça do que em 2009, quando formulei-lhe a mesma pergunta. Citou-me com profundo desprezo decisões recentes do STE e STF. “Podemos confiar em nossos togados?”, perguntou-me. Realmente passamos por situação complexa também no âmbito do Judiciário, motivo pelo qual o descrédito existe.

O leitor que me acompanha desde Março de 2007 sabe bem que alguns temas abordados desagradam-me. Não fazem parte de minha respiração, o que não me impede de raramente tê-los em pauta. Esperemos que o Brasil não sofra tanto nas mãos de quantidade infindável de figuras mergulhadas em atividades ilícitas.

Revisiting illustrations made by my friend and painter Luca Vitali (1940-2013), I was led to reflect on the issue of corruption and dispensation of justice in Brazil and on the reasons why the common man has always had a distrust of our judiciary, tending to regard it as an exclusive reserve of the elites.

 

Tema que pode aplicar-se a inúmeras áreas


Acredito que o piano traduz uma confidência,
e esta não se grita sobre o telhado.
Désiré N’Kaoua

Há temas que extrapolam os limites de determinada área. Métodos podem diferenciar-se, mas a essência temática torna-se coesa e doutrinária a partir do enfoque abrangente que se lhe queira dar . A pedagogia relacionada a uma área do conhecimento tem com frequência vertentes que se aplicam em campos do conhecimento por vezes antagônicos.

Ao tratar, no post anterior, da crise do recital de piano solo, mormente para os intérpretes sem o abrigo de patrocinadores e das luzes dos holofotes, tópicos outros foram apreendidos nos textos que inseri anteriormente e de autoria dos notáveis músicos franceses Désiré N’Kaoua e François Servenière, pianista e compositor, respectivamente.

Primeiramente, há um aspecto que se torna mais sensível à medida que a tecnologia avança em seus multifacetados meios de comunicação. Paradoxalmente, há o progressivo desinteresse pelos padrões culturais que foram a base sólida da cultura ocidental. Désiré N’Kaoua comenta, com profunda agudeza e, hélas, ceticismo, vários dos muitos problemas que atingem o cerne da denominada música clássica ou de concerto, nas várias entrevistas concedidas recentemente para o site www.pianodoux.fr: “A história do piano ensina-nos que, no começo do século XX, a chegada de um virtuose numa capital era anunciada bem antecipadamente como um evento, as senhoras pensavam no que vestir ou mesmo encomendavam uma nova toilette para a ocasião. E hoje, é isso que ocorre?” Lembraria que Alfred Cortot (1877-1962), ao realizar tournée pelo Japão, ganhou da imperatriz uma ilha, Cortoshima, oferta rigorosamente impossível de ser dada na atualidade. Continua N’Kaoua:  “Paralelamente ao rush de novos pianistas, o público reduziu-se consideravelmente. A seguir a segunda grande guerra, a maioria dos melómanos europeus não supunha sequer a ideia de inserir, no interior do vocábulo ‘música’, outra coisa que as obras de grandes criadores como Mozart, Beethoven, etc… assim como algumas belas canções populares. O jazz, já existente há decênios no outro lado do Atlântico, veio (por que não?) a ser aceito até por aficcionados sectários e a ter abrigo no vocábulo ‘música’. Evitando-se um casamento misto, tomou-se o devido cuidado de delimitar fronteiras, qualificando-se de ‘clássica’ as obras escritas pelos grandes compositores incensados através da História. Sessenta anos após, o que nós chamamos de música, e que acreditamos ser eterna, mendiga um espaço restante, drenando um público cada vez mais restrito. Os amorosos dessa música, qualificada erroneamente de elitista, encontram-se confinados em um gueto e a mídia (cuja ambição é expandir seus índices) tem dúvidas sobre o concerto, e não se aflige sobre o fato de o Requiem de Mozart ser utilizado para suporte de uma publicidade”. E sobre a alienação da juventude frente à música clássica: “Os jovens que crescem hoje são ‘acalentados’ pelos ritmos primários, que desconhecem o sentido da música. Quem virá amanhã aos concertos? Sob outro enfoque, qual a porcentagem de crianças chegadas à adolescência que continuará a estudar um instrumento, sabedores que aprender é sinônimo de esforço? É fato que os vídeos são tão mais atraentes!!!”.

O desvio de intenções, voltado às “geringonças” sempre in progressiPad, iPod, iPhones - e seus infindáveis aplicativos, está a retirar das gerações mais novas a reflexão necessária. Colados às telinhas, multidões em compulsão fixam-se nas mensagens que proliferam nessa via em expansão, o WhatsApp. Essa distração globalizada impede a concentração, a disciplina e N’Kaoua, ao mencionar que “aprender é sinônimo de esforço”, aponta para uma realidade sem retorno. Tornar-se-ia evidente que o estudo sério de um instrumento musical, independente da apreensão de toda uma estrutura contida na partitura e além dela, requer disciplina espartana para que objetivos concretos se realizem. E estariam as gerações que surgem dispostas ao “sacrifício”, quando um totus se apresenta tão mais fácil? Não teria a pianista Eudóxia de Barros, no seu livro “Valeu a Pena?”, enfatizado incontáveis vezes a necessidade do estudo diário imprescindível?

O compositor e pensador François Servenière comenta: “admiro a dimensão geopolítica de Désiré N’Kaoua (post anterior). O que mais me chamou a atenção foi justamente a análise sobre a predominância da cultura europeia, que estancaria frente à mundialização, correlativamente à predominância de um de seus instrumentos culturais e burgueses mais emblemáticos, o piano”. Servenière escreve sobre os impostos do Estado taxando abusivamente a arte. “A arte era justamente a última coisa, individual, introspectiva, íntima, talvez reputada pelos invejosos como pertencente à burguesia – nada é menos seguro -, que poderia fazer supor estar fora da soberana e implacável tutela do Estado, da lei, muitas vezes oriunda geneticamente da violência cruel e injusta dos senhores ou príncipes de antanho contra seus povos. E por que não impor as garras sobre lápis, pincéis, cadernos, cores? Violência soberana, que provocou, há não muito tempo, nossa ensanguentada revolução francesa, com suas chagas jamais cicatrizadas e que se podem abrir a qualquer momento”. Não seriam os tentáculos do Estado a taxar a Cultura como um todo, como o faz com produtos banais de consumo, uma das formas do desvio de intenções? Sob outro ângulo, a grande maioria dos dirigentes culturais desconhece o sentido da palavra Cultura, entendendo-a como entretenimento, apenas. Assim não agiu o prefeito eleito João Dória ao convidar inicialmente Boni Sobrinho para a Secretaria da Cultura, que acabaria declinando o convite, ele um nome emblemático do… entretenimento? E a Cultura erudita, que não pertence aos índices mediáticos estratosféricos, mas que é base essencial para que não percamos o norte? Teria o futuro alcaide a noção ao menos potável da abrangência da Cultura?  Servenière continua: “Pode-se entender a mundialização como parâmetro evidente da decadência do recital de piano face às grandes máquinas espetaculares, que fazem lembrar um verdadeiro Barnum nos estádios para 80.000 lugares. Como lutar contra a potência dos decibéis, dos astros do rock e da canção? Pela inteligência. Na França, país de ponta no progresso e nos excessos, temos o rap, as mídias e a televisão invasora, a vulgarização do pensamento, seja ele artístico ou político, literário ou filosófico. Os códigos milenares da pintura e da escultura foram pisoteados pelos aprendizes de Fausto, teóricos da ideologia fecal encurralados e a levar a arte à sua vibrante dimensão do caos original, o menos digno que se possa imaginar. Não, não estou a metamorfosear artificialmente, nessa atualidade consumista que não sabe a diferença entre o universal e o banal, entre a escatologia e a coprologia. Um mundo de m—- gera o que promete e idealiza”. Para tanto, Servenière apresenta link com obras tidas como “arte”, fecais gigantescas que ocupam espaços em jardins,  parques e museus do Ocidente. Mario Vargas Llosa não teria mencionado exposição em Londres onde a “obra de arte” era representada pelo material constituído por fezes de elefante?

Servenière, em sua longa mensagem, retoma o item relativo à “geopolítica ligada ao desaparecimento do recital de piano e do piano… Pode-se invocar essa posição, pois nenhuma forma de expressão tem na essência validade universal para a eternidade. A moda e os instrumentos passam. Contudo, a sociedade humana é feita de ciclos, de avanços e recuos, de fases de excessos e, como contradição, de temperança, o que me leva a lembrar frases de Franz Liszt: “Fecundar o passado pensando no futuro, eis para mim o sentido do presente”, e de Nietzsche: “O homem do futuro será aquele que terá a mais vasta memória”. Que significam essas duas frases magistrais, pensadas por dois grandes mestres do passado? Simplesmente que o indivíduo que não tem memória (histórica, artística, cultural, semântica, visual, sonora, linguística, filosófica…) não terá futuro. Vivemos atualmente um dos grandes cismas psicosociológicos da história”.

Em artigo publicado nos anos 1980 (“As mortes do intérprete”, Cultura, O Estado de São Paulo, 24/12/1988), mencionava que a gravação é a aparência da perpetuação. Escrevia: “Pense-se no piano Bösendorfer-Computer ‘SE-Grandpiano’, capaz de dar ao registro fonográfico o real absoluto, onde a inexistência física do intérprete – ou o seu fantasma – , após gravação fixada, restitui à obra exata fidelidade da execução no instrumento mesmo em que o registro se verificou”. Tive a oportunidade de gravar uma peça de Rameau num desses pianos, em demonstração numa Feira de instrumentos no Anhembi, em São Paulo, ouvindo-a após, exatamente como se estivesse a tocar, ou seja, as teclas abaixavam durante a execução e eu, em pé, só observava atônito a minha interpretação tal qual a tinha realizado. Disse-me o representante da empresa que, doravante gravada e arquivada, em qualquer momento alguém no planeta poderia ouvi-la, desde que em instrumento similar. Atônito também fiquei ao sentir a “digitação” de grandes mestres mundiais do piano em obras fantásticas, teclas sendo acionadas, por vezes em velocidades à la Usain Bolt, como no caso do fantástico pianista de jazz Oscar Peterson. Teclado em seus movimentos naturais, mas sem a figura humana, e o som real transmitiam uma estranha sensação presencial. Servenière menciona o Diskklavier da Yamaha, inventado em 1980, e vê no processo dessa “família” tecnológica, próxima à do piano Bösendorfer, um caminho distinto, “o piano do recital solo a entrar no futuro neste século XXI !!! Muitos poderão urrar, voltados que estão ao purismo. Não eu. Para mim a cultura do piano se difunde, e as performances dos mais ilustres contemporâneos estão gravadas. A geração passada recusa o processo, mas ela também recusou a informatização eletrônica décadas atrás para o órgão instrumento, processo que pode manter todos os dados arquivados pelo organista. Os puristas que não concordam utilizam em suas casas aparelhos de microondas, celulares, computadores e televisão. Doravante, o piano tem mais esse caminho e as performances dos grandes pianistas (do presente e do futuro) poderão ser escutadas em tempo real, tranquilamente, em casa. Não falo dos meios de difusão da música, graças aos aparelhos domésticos que conquistaram o mundo inteiro. A Cultura sempre teve opções outras em seu baú… Nada há que comprove a sua morte, pois, acredito, o inverso está a se produzir. Como sempre, há cumeeiras e abismos, ciclos, recuos, renascimento, novos meios de difusão, desaparecimento de modismos, novos processos artísticos. Haverá uma triagem natural no que concerne à cultura. Os povos, mesmo enclausurados em campos de concentração e de morte, sabem o que é importante ou não. Depois da enxurrada de idiotices musicais que inunda o planeta, o ouvinte retorna aos lugares onde ele sabe que encontrará a qualidade, mais do que a absurda quantidade de furor e barulho ensurdecedor. Os povos, naturalmente, sabem o que é necessário salvaguardar ou não, mesmo nos períodos de caos. Enfim, seu último post permite essas digressões filosófico-histórico-pragmáticas. Há a necessidade de retorno ao trabalho manual, necessário para certas qualidades e experiências valorizadas no passado e, como escrevia Rousseau, ‘é necessário cultivar nosso jardim’. A tecnologia virtual evolui sem limites… mas sem o contato com a terra, com o real, essa inteligência ‘retorna ao caos’. De maneira cíclica”. Não por acaso, Désiré N’Kaoua observa em sua entrevista plena de reflexões: “Ao chegar à idade próxima de meus mais de 80 anos, dividi meu tempo ora dedicado ao piano, ora à jardinagem cotidiana e aí, como faço ao ler uma obra musical, a menor folha morta sobre a terra é para mim como uma mancha sobre uma bela partitura”. (traduções: J.E.M.)

Todas essas observações de ilustres músicos e pensadores nos levam à reflexão sobre o futuro do piano. Salientaria que a tecnologia mecânico-sonora dos pianos Bösendorfer e Yamaha, mencionada acima e datada das décadas de 1980, ocupou poucas salas de concerto, mas aponta para o futuro. Sob outro aspecto, aperfeiçoamentos acrescentados aos pianos Steinway, assim como a qualidade indiscutível dos instrumentos Fazioli, levam-nos a pensar. Se, por um lado, as grandes marcas são basicamente destinadas às grandes salas de concerto espalhadas pelo planeta, mercê dos preços altíssimos, os recitais de piano solo nas pequenas salas continuarão colocando, mormente no Brasil, o pianista sempre em alerta, pois jamais saberá a qualidade do instrumento que terá de enfrentar. Um recitalista experiente poderá não se lembrar dos melhores pianos, mas jamais se esquecerá de um mau piano.

Continuo pleno de esperanças, friso.

Resuming the subject of last week’s post, I transcribe excerpts of an interview given by the French pianist Désiré N’Kaoua and of an e-mail message from the composer François Servenière, both musicians giving their views on the issue of shrinking spaces for piano solo performances.

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Chapecoense (In Memoriam)

Nada sabemos a respeito de determinados desígnios. A tragédia que se abateu sobre a valorosa equipe de futebol da Chapecoense só ocorreu graças ao contrário absoluto, instantâneo, fruto do mais preciso reflexo. Ao defender com o pé direito uma bola certeira endereçada ao gol da Chapecoense, chutada por jogador do San Lorenzo, Danilo, o goleiro salvador, “São Danilo”, doravante aclamado pelos milhares de torcedores que acorreram à Arena Condá, em Chapecó, eliminava a equipe argentina e entregava a caneta àquele que redigiria, uma semana após, o atestado de óbito de praticamente toda a gloriosa equipe da aprazível e congraçadora cidade. Assisti pela Fox Sports aos dois jogos inteiros entre a Chapecoense e o San Lorenzo, esta a equipe do Papa Francisco. No instante do acontecido, o brilhante narrador Deva Pascovicci, em locução apaixonada, exaltou o milagre da defesa de Danilo, o goleiro “salvador”. Lógico, também vibrei. Pascovicci, Danilo e mais 69 atletas, dirigentes, jornalistas e tripulantes da aeronave sucumbiram.

Como sempre o faço, não me inclino a escrever imediatamente após qualquer acontecimento. Fá-lo-ei na próxima semana. A decantação elimina incertezas.