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A observação que conduz à arte inovadora

Mas teria sido Pituba um homem de crença profunda, radical e intransigente?
Um fanático para exagerar a qualificação?
Não cremos, e a redação de uma carta à irmã Martha (24/07/1916)
indica um equilíbrio religioso com crença profunda,
sem crendices nem superstições.
O que se poderia esperar do equilíbrio que transparece em toda sua vida”.
Eduardo Etzel
“Arte Sacra Popular Brasileira”, 1975)

A continuação do post anterior, abordando as inovações práticas que substanciam a criação de uma imaginária sacro-popular de um artista singular, expõe características que surpreendem os admiradores da arte. Dito Pituba seria um santeiro a mais entre tantos que confeccionaram imagens sagradas Brasil afora, não fosse sua incrível capacidade de encontrar em seu ambiente rural soluções surpreendentes. Primou, em sua longa atividade como santeiro, pela acuidade observadora.

Se considerada a arte sacra erudita, verifica-se que basicamente obedece a ditames oriundos da tradição. Ao verificarmos imagens de um determinado santo, nota-se que certos atributos essenciais permanecem inalterados. Pituba, artista da arte sacra popular, teria recorrido não apenas a membros da igreja, como igualmente a fiéis conhecedores dos símbolos representativos. Se mantém a tradição para determinados santos, como São Pedro e as chaves; Santo Antônio, o menino Jesus e um livro; São Benedito e o menino Jesus, quando usa a imaginação tem-se resultados surpreendentes, dado o convívio com o meio citadino-rural observado com argúcia.

Para a imagem inicial deste post, representando São Sebastião (72 cm), Pituba encontrou soluções para os braços, mas sobretudo para os olhos, utilizando-se dos de uma boneca. Fá-lo naturalmente, sem elucubrações. Essa arte singela, criativa, existe a partir do talento inerente.

Santa Catarina (287-305) foi martirizada em uma roda dentada aos 18 anos. Pituba recorreu à roda de ralar mandioca de quatro raios, pois lhe era familiar. Santa Bárbara, protetora contra as tempestades e relâmpagos, tem sobre os braços uma torre onde esteve presa a mando de seu pai. Preservando a fé cristã e condenada à morte, foi decapitada pelo próprio pai, que, reza a lenda, morreu a seguir atingido por um relâmpago;   Santa Luzia (383-204), igualmente martirizada, é representada nas muitas caracterizações de Pituba com uma pequena bandeja e dois olhos arrancados antes do martírio, daí ser conhecida como a Santa da visão. Tantos outros santos martirizados têm, da parte de Pituba, a interpretação que leva ao instrumento de tortura, símbolo que marca o final trágico da existência. Quanto à palma, representativa do martírio do santo ou santa, Pituba recorria a um vizinho sapateiro e suas palmas para as pequenas imagens de madeira eram de couro.

Santa Maria foi muito procurada pelos devotos. Está representada em várias versões, a depender da geografia e das devoções. Há várias representações de Nossa Senhora Aparecida ainda não coroada, fato que se deu em 1904, o que naturalmente posiciona a cronologia da feitura.

O aumento progressivo de fiéis à procura de seu santo ou santa de devoção fazia com que Pituba não apenas ampliasse sua hagiografia, como também tivesse que inovar. E inovou. As soluções encontradas por Dito Pituba foram sempre de ordem prática.

As dimensões das imagens variavam de acordo com os pedidos dos devotos que mantinham oratórios em suas casas rurais. Pituba também os confeccionava, a atender aos pedidos diversos quanto às dimensões solicitadas pelos fiéis. O aumento da demanda fez com que Dito Pituba procurasse soluções práticas. E encontrou.

Para os pequenos Divinos, sempre presentes nos oratórios domésticos, Pituba tem a sua identidade revelada através do corte das asas, frequente em todos os Divinos dessa dimensão.

Nos oratórios feitos antes do aumento natural de pedidos, Pituba se utilizava de madeiras ditas nobres e mais difíceis de serem cortadas para a feitura posterior dos oratórios caseiros. Em determinado momento deve ter concluído que as caixas de bacalhau, bebidas importadas ou óleo para motores, estas oriundas dos Estados Unidos, feitas em madeira mole, seriam adequadas para a realização do trabalho e já vinham “quase prontas” para o seu desiderato de santeiro. Obviamente faltavam-lhe as portas e o frontal, a adequação e a pintura, mas Pituba sabiamente resolveu o problema. Para as portas e o frontal recorria às sobras das caixas. Na ilustração a seguir, veem-se duas portas pintadas adornadas com anjos, únicas peças que subsistiram à ação dos cupins num oratório doméstico. Na inscrição em baixo-relevo, lê-se “Rubi Cognac Cuisinier”, a testemunhar a procedência.

Na foto a seguir, um dos tantos oratórios de autoria de Dito Pituba no qual utilizou a madeira dessas caixas vindas da Europa (bebidas) ou dos Estados Unidos (óleo para motores) para agilizar seu ofício. Veem-se ao fundo arabescos, motivos florais que caracterizam o estilo de pintura para a ornamentação dos oratórios domésticos.

Conheci Lázaro Pituba, filho de Dito Pituba. Naquele último lustro dos anos 1970, Lázaro já era nonagenário. Completamente cego, tinha a mente aberta e diálogo prazeroso. O ilustre pesquisador Eduardo Etzel já obtivera, décadas atrás, inúmeros dados da vida e dos trabalhos de seu pai. Tendo conhecido uma boa quantidade de imagens sacras realizadas por Pituba, colhi de Lázaro Pituba informações adicionais e fotografei-o, pois seria bem possível que o artista popular, vivendo em meio restrito, tivesse em mente personagens de seu meio, subtraindo do tipo físico que cruzava no cotidiano elementos para a feitura das imagens, mormente de seus familiares. Formato da cabeça, nariz, características do corpo eram elementos impregnados em sua mente. O perfil de Lázaro traduzia muito o formato de algumas cabeças de santos criadas por Pituba, assim como o formato do nariz. Tirei a foto e, ao mostrar ao Dr. Eduardo Etzel, ele concordou plenamente com a “teoria”.

As muitas visitas a Lázaro para saber mais de seu pai levaram a uma atitude inusitada. A certa altura, pediu à sobrinha para retirar um cordão de couro de seu pescoço com uma mínima imagem de Santo Antônio em chifre de veado. Portava-o desde a adolescência, presente de seu pai, Dito Pituba. Ofereceu-mo e a foto ilustra a miniatura. Bem desgastada pelas décadas, esse presente tão caro para Lázaro me comoveu.

Causou-nos, ao Dr. Eduardo Etzel e a mim, forte emoção o Voto de Louvor, assinado pelo vereador Eduardo Ribeiro, que recebemos da Câmara Municipal de Santa Isabel aos 28 de Março de 1978. , “pela pesquisa que realizaram a respeito dos trabalhos de arte executados pelo Sr. Benedito Amaro de Oliveira, artista isabelense falecido em 1923, homenageado por esta Casa através da aprovação da Lei nº 1024, de 22 de março de 1978”. Dias após, aos 10 de Abril, o Presidente da Câmara Municipal de Santa Isabel, vereador Levy de Oliveira Lima, ratifica o Voto de Louvor (ofício nº 88/78) e acrescenta: “Por nossa vez, através da Lei nº 1.024, de 22 de março do corrente ano, demos o nome do ilustre artista a duas vias da nossa cidade, como homenagem póstuma ao trabalho ao qual se dedicou com esmero e carinho”. Posteriormente o vereador Eduardo Ribeiro me ofereceu uma placa da rua que conservo com apreço.

Ratifico que, de minha parte, nada teria acontecido não fosse o grande privilégio de ter conhecido e ser orientado pela figura exemplar do Dr. Eduardo Etzel. Devo o que sei a  respeito da arte sacra popular, mormente referente a criada pelo notável Dito Pituba, ao grande mestre que, pneumologista e mais tarde psicanalista, captou a essência dos traços do artista. Indicou-me os caminhos a trilhar nessa vasta região do Alto Tietê e parte do Vale do Paraíba onde poderia encontrar traços deixados por Dito Pituba. Como pneumologista salientava determinados aspectos físicos das imagens, como psicanalista buscou penetrar no de profundis de Dito Pituba, como grande especialista em arte sacra transmitiu-me preciosos ensinamentos relativos à restauração. Dádiva.

The remarkable Dito Pituba, working in rural areas, was an artist who, when making about 5,000 images, oratories, and divines, had the creative gift that made him find surprising solutions.

 

Um centenário a ser celebrado

Dito Pituba, sem ser um gênio como Aleijadinho,
foi sem a menor dúvida um artista autêntico,
que legou às gerações modernas o exemplo de um espírito inquieto,
buscando, na humildade do isolamento rural em que se desenvolveu,
soluções que podem hoje servir de exemplo e de inspiração.
Eduardo Etzel
(“Arte sacra popular brasileira”, 1975)

Neste ano comemora-se o centenário da morte de Benedito Amaro de Oliveira, apelidado Dito Pituba, extraordinário e profícuo santeiro popular nascido em Santa Isabel.

Deve-se ao notável Eduardo Etzel (1906-2003) o excepcional trabalho de investigação que o levou à pesquisa de campo, redescobrindo a arte de Dito Pituba (vide blogs: Eduardo Etzel I e II, 17 e 25/08/2007). Foi ele o responsável pela criteriosa coleta de dados e da recolha de centenas de imagens, hoje fazendo parte do acervo do Museu de Arte Sacra de São Paulo.

(261) Uma Assinatura na Arte Anônima: dito Pituba – YouTube

Etzel legou vários livros sobre arte sacra, mormente aquela produzida por artistas populares das cidades fronteiriças à região metropolitana de São Paulo e Alto Tietê, como Santa Isabel a preponderar, mas também Arujá, Parateí, Igaratá, Nazaré Paulista, Itaquaquecetuba, Guararema, Jacareí e localidades menores. Em todas foram encontradas imagens criadas por Pituba. Seu livro “Arte Sacra popular brasileira” é obra fundamental que faz emergir, entre vários temas, a figura de Benedito Amaro de Oliveira.

De alta valia as pesquisas de Eduardo Etzel se considerarmos a busca da origem campesina do santeiro em região que, no século XIX, tinha poucos recursos, a resultar nas escassas referências disponíveis. Escreve: “A esta camada rural pobre pertenceu Pituba, daí ser evidente a dificuldade de se colherem dados biográficos de maior interesse, já que eles simplesmente não existem na vida anônima do pobre. Ressuscitar um morto humilde e desconhecido é tarefa árdua e quase impossível. É como procurar a tumba de um pobre na vala comum do esquecimento. Requer paciência, tenacidade e, sobretudo, uma atenção permanente a nonadas que se ouvem aqui e ali nas ocasionais conversas com contemporâneos”.

Eduardo Etzel, pneumologista consagrado e, nas últimas décadas da existência, psicanalista, foi imenso pesquisador. Tive o privilégio de um longo convívio, que resultou em oportunidades raras nas quais mestre Etzel transmitiu-me conhecimentos extraordinários quanto à pesquisa da arte de Dito Pituba. Incentivou-me a continuar seus aprofundamentos devido à sua faixa etária, que praticamente o impedia de prosseguir as pesquisas de campo. Entre os anos 1970-1980, dezenas de vezes visitei a vasta região cercada por serras, esparsas propriedades rurais, estradas de terra batida e um povo acolhedor. Realizava essas incursões aos sábados, sistematicamente. Após cada viagem visitava-o e aprendi a arte da restauração de imagens sacras. Juntos realizamos uma Exposição no Museu de Arte de São Paulo em 1977, “Dito Pituba – um santeiro paulista”, que teve expressivo incentivo por parte de seu diretor, o notável Pietro Maria Bardi (1900-1999).

Seguindo os passos de Eduardo Etzel, partia sempre de Santa Isabel, cidade natal de Dito Pituba. É certo que o santeiro viveu pouco tempo em três outras cidades, Arujá, Nazareth Paulista e Guararema, localidades onde atendeu à demanda dos devotos, produzindo incansavelmente suas imagens.

O artista isabelense, tendo trabalhado com seu pai em uma olaria, aprendeu a manusear o barro que se transformaria em telhas, tijolos, manilhas e utensílios domésticos. Nascia, sob outra égide, o gosto pela arte sacra criada em barro cru ou cozido e, posteriormente, em madeira (vide blog “Pesquisa de Campo”, 27/09/2008).

Segundo cálculos hipotéticos a mim transmitidos pelo Dr. Etzel, Dito Pituba enriqueceu a hagiografia com cerca de 5.000 peças de arte, divinos, crucifixos e oratórios e, a preponderar, imagens dos santos mais cultuados na região.

Na esfera da criação musical enfatizo sempre que o compositor de talento deixa suas impressões digitais. “O estilo é o homem”, frase do pensador conde de Buffon (1707-1788), aplica-se exemplarmente no caso de Dito Pituba. Sua arte foi se moldando, adaptada aos modestos conhecimentos da arte sacra erudita que aprendia através da oralidade clerical, de raras publicações que lhe serviam de modelo, de sugestões de fiéis que a ele recorriam para a confecção de imagens de seus santos de devoção. Não obstante essas circunstâncias, Pituba, a fim de atender à demanda dos devotos, buscou soluções práticas na elaboração de suas peças destinadas ao culto doméstico. Criou um estilo personalíssimo.

Impressiona em Dito Pituba a sua imensa capacidade para chegar aos resultados. Nada o detinha quando da confecção de uma imagem de santo cultuado encomendada por algum fiel, mas fora do seu habitual criativo, que focalizava aqueles mais venerados. Somava-se a experiência a outras tantas e, a partir de uma imagem sacra inédita para ele, a repetição daquele determinado santo ou santa de devoção tornava-se familiar, o que facilitava a tarefa de santeiro.

Durante a longa existência de Pituba é possível detectar as várias fases criativas através dos materiais empregados. Após o início confeccionando imagens em barro cru, cedo aprendeu, através do conhecimento que lhe vem dos trabalhos na olaria, a moldar suas imagens em barro queimado ou terracota, sendo que a denominada paulistinha, imagem em terracota majoritariamente a variar entre 12 e 18 cm e que tem origem em Portugal, passou a preponderar em sua produção. Vazada no interior para não rachar durante a queima, a paulistinha foi em período extenso o veio criativo preponderante de Pituba e outros santeiros. Seria mais acentuadamente nas fronteiras dos séculos XIX-XX que Pituba produziria com mais afinco as suas imagens em madeira. Já tendo um belo acervo hagiográfico, encontrou em determinada espécie mais mole e fácil de ser manuseada, a caixeta, o veículo propício para a produção de imagens, divinos e oratórios, todos com as suas impressões digitais a não deixar dúvidas da autenticidade do autor. Excepcionalmente empregou para oratórios maiores madeira dura encontrada na região.

Do oratório da imagem abaixo foram retiradas quatro camadas de tinta, pois o campesino devoto da região, ao ver enegrecido um oratório, mercê da fuligem do forno caseiro, repintava-o. Vê-se nas portas a pintura original bem apagada, ilustrada com dois divinos. A imagem do Cristo foi elaborada em terracota, mas tem também tecido nos braços e dele foi retirada uma pintura. Oratório e crucifixo datam das últimas décadas do século XIX, e um dos detectores é a presença de cravos no alto da porta direita, pois já no século XX Pituba se utilizaria de pregos industriais. Quanto  à imagem de Nª Senhora da Expectação na abertura do blog, foi ela encontrada em uma santa cruz à beira de uma estrada de terra batida. Quebrada em vários pedaços e tendo sido repintada três vezes, após a restauração, é uma das mais expressivas imagens de Dito Pituba.

Sem a sofisticação das imagens eruditas de madeira nas quais o artista, antes da aplicação das tintas, empregava uma camada de gesso por toda a peça, Pituba simplificou o processo no desiderato de atender aos numerosos devotos. Após a confecção, aplicava diretamente as camadas de tinta, o que não garantia basicamente a perenidade. Felizmente centenas de imagens de terracota e de madeira foram preservadas. Estou a me lembrar de ter constatado, em casa de moradores rurais, um número expressivo de pequenas imagens de madeira completamente enegrecidas pelo picumã. Quanto às cores preferidas por Dito Pituba, destacam-se a azul anil e a alaranjada.

Eduardo Etzel comenta: “Ao examinar a arte do santeiro, veremos diferentes fases de produção, que indicam a maleabilidade com que soube adaptar sua arte às contingências externas, do meio ambiente e suas próprias, com o caldeamento de sua experiência até a idade avançada”. A premência na feitura das imagens fê-lo desenvolver uma invejável habilidade manual e adaptar às suas criações a sua visão do cotidiano. Em tantas delas há a expressividade do santo.

No próximo blog comentarei diversos achados de Dito Pituba ao criar suas imagens, assim como a sua captação do entorno, seja ele humano ou relativo àquilo que lhe era apresentado.

This year marks the death centennial of one of the most important artists of popular sacred art, Benedito Amaro de Oliveira, known as Dito Pituba (1848-1923), born in Santa Isabel, not far from the city of São Paulo. He bequeathed us around 5,000 terracotta and wood images, as well as oratories.

A transformação vertiginosa da sociedade em direção ao impasse

Para que ame alguém a Humanidade,
se sinta disposto a guiar os mais pequenos no caminho do futuro
e não duvide da eficácia do esforço,
é sobretudo preciso que possua a longa perspectiva
que só dá o conhecimento das grandes realizações humanas
em todos os domínios.
Agostinho da Silva
(“Considerações”)

Recebo habitualmente a sábia coluna de Flávio Viegas Amoreira, escritor, crítico literário e poeta de valor. Publicada em A Tribuna de Santos, o texto de Amoreira é uma das poucas colunas realmente culturais de nossa imprensa. Seus livros de poesia e de análise literária estão entre os melhores neste país em que a cultura erudita, ao receber a “alcunha” de elitista, tem sido vilipendiada, para gáudio de extremistas sociais mediáticos. Soma-se a essa leitura mensagem de Gildo Magalhães, ilustre professor titular da História da Ciência (FFLECH-USP), que comenta o último post sobre excepcionalidades.

Ao longo de quase 16 anos tenho apontado em meu blog o desmonte progressivo da atividade cultural erudita em nosso solo. Décadas atrás, habitualmente escrevia para um respeitado Suplemento Cultural de São Paulo, que mantinha uma equipe altamente qualificada para a análise das temáticas a serem abordadas. Em princípio, reuníamo-nos duas vezes ao ano para debater conteúdos, primordialmente sobre artes e literatura. Estou a me lembrar de que durante 10 anos colaborei com artigos sobre música, principalmente, e tantos deles tinham três páginas!!! Resultaram em livro publicado em 1990 (Belém, Cejup) sob o título “Encontros sob Música”, com prefácio do saudoso e ilustre acadêmico Nilo Scalzo. A certa altura, um comunicado da direção aos colaboradores – entre estes havia figuras referenciais na literatura e nas artes da cidade – rezava que os artigos teriam de ser mais econômicos e que o jornal poderia, se necessário, diminuir a dimensão de determinadas contribuições. Escrevi à direção desligando-me e argumentando que não poderia admitir interferência nos artigos enviados, pois nunca antes tinha havido ingerência do editor-chefe; pelo contrário, apenas estímulo. Progressivamente o Suplemento descaracterizou-se. Jamais voltei a ler o Jornal que o mantinha e realmente não sei se ainda existe aquele veículo cultural, referência na cidade.

No incisivo artigo “Sem férias de ti”, Flávio Viegas Amoreira evidencia a importância sempre fulcral da literatura. A inspirar o texto, o atual período de férias. Focaliza um autor emblemático, Michel de Montaigne (1533-1592), e faz vários questionamentos cujas respostas, na atualidade, estão explícitas nos “Essais” do notável filósofo, escritor, humanista e moralista francês.

A anteceder a justa louvação a Montaigne, Amoreira insere posicionamento claro e objetivo sobre a decadência sempre em ascensão de valores antes cultuados. Essa colocação vem ao encontro de temática que insistentemente integra meus posts nesses já quase 16 anos de blogs hebdomadários e ininterruptos. Escreve Flávio Viegas Amoreira: “Visito sites e, quando abro a homepage de algumas plataformas de notícias, sou bombardeado por informações insólitas, o que só reforça a necessidade de um jornal impresso ou eletrônico que me dê nexo e credibilidade interpretativa em meio a tanta fadiga digital. Vivemos na era da euforia. Tudo precisa causar e bombar. A moda diz mais que estilo. Euforia, originária do grego, é isso: reagir a tudo, extrapolar do seu eixo, o eu para fora, aloprar para ser mais atual”. Acrescentaria que um dos mais importantes sites de notícias do país, já na homepage, entre várias chamadas sobre política, sempre ideologicamente construídas, e a respeito do cotidiano bem duvidoso, exibe imagens e anúncio da mais abjeta pornografia, só para assinantes abrirem e, logicamente, há aqueles que acessam. Todavia, a simples exibição das imagens já traduz a decadência moral que invade as colunas noticiosas, uma verdadeira blasfêmia. Chegamos ao impasse referente à preservação de costumes e moralidade.

Corroborando as precisas palavras de Amoreira, transcrevo posição de Gildo Magalhães relativa a um de meus últimos posts, em que comento excepcionalidades: “São constatações justas, embora pareçam duras. Podem-se aplicar a todos os ramos de atividade, desde intérpretes e compositores até pintores, professores, marceneiros, etc. Naturalmente surge ademais a questão do reconhecimento através das premiações. Estas em si têm certa dose de relativismo – vide, por exemplo, o prêmio Nobel. De quantos agraciados com o Nobel de literatura poderíamos dizer que sua obra sobrevive? Novamente seria uma minoria. Isto para não dizer que o prêmio ignora luminares que, apesar de não ganharem, têm uma perenidade desconcertante. Creio que isto se aplica até mesmo aos prêmios relativos à ciência, como a física ou  a química. Para contrariar aquilo que foi a contemporaneidade, vez por outra um talento especial é resgatado do oblívio da História, como acontece com algum compositor do passado, por exemplo. É este um dos meus incentivos para o ofício de historiador, de reavaliar aquilo que vem rotulado com a estampilha do Sic transit gloria mundi” (assim transita a glória do mundo).

Não pude deixar de pensar em Mário Quintana (1906-1994), notável poeta, jornalista e tradutor, mencionado em “Sem férias de ti” e que, nos comentários de Flávio Viegas Amoreira, tem seu perfil delineado: “Mário Quintana – que viveu para os livros, celibatário, solitário feliz e mestre respeitado nacionalmente – pouco saiu de Porto Alegre. Tradutor de Proust, erudito modesto que foi rejeitado pela Academia Brasileira de Letras, nunca se insurgiu: era leitor de Montaigne”. Repetia-se na ABL o que ocorre entre os agraciados com o Nobel, mormente na literatura, a inobservância por vezes do pleno mérito, privilegiando-se as figuras mediáticas sob fortes holofotes e desprovidas de obra literária consolidada. Nada a fazer, pois premiações e condecorações estão sujeitas a tantos outros interesses!!!

Nos termos do tema do último post sobre excepcionalidades, em que coloquei como requisito essencial o denodo, a aplicação, a disciplina e a concentração, Gildo Magalhães tece relevante comentário sobre figuras excelsas que percorreram a existência breve ou longamente dedicando-se a várias atividades com perseverança. Escreve: “São notáveis mesmo estes exemplos de talentos múltiplos, entre eles o de Paderewski, como você mesmo discorreu em outro excelente blog (vide Ignaz Jan Paderewski, 19/03/2022). E sobre o trabalho febril e ao mesmo tempo genial, a ciência também tem exemplos. Um deles é o de Évariste Galois, que morreu em 1832 aos 20 anos, num duelo. Ele passou a noite anterior ao encontro fatal escrevendo e fazendo cálculos para uma memória, que acabou ao amanhecer e mandou entregar ao amigo Cauchy, ‘caso morresse’ – funesta premonição. Esse trabalho resolveu um problema secular e se demonstraria com o tempo a peça basilar para a criação de um novo ramo da álgebra, com desdobramentos até os dias de hoje”.

Os argumentos de Flávio Viegas Amoreira e de Gildo Magalhães corroboram posicionamentos de tantas personalidades conscientes dessa hecatombe dos valores culturais, dos costumes e da moralidade. Vozes que, não obstante, não influenciam os detentores do poder, a mídia atual e, principalmente, aqueles que manipulam essas tendências que levam à degeneração e que visam sempre ao lucro como desiderato final. Hélas, trois fois hélas, como bem reza a língua francesa para designar com ênfase a nossa tão presente palavra infelizmente.

An incisive article by writer and critic Flávio Viegas Amoreira agrees with positions that I have been putting forward in my posts, the decadence of values accepted for centuries. The full professor of the University of São Paulo Gildo Magalhães, for his part, comments on the previous post, emphasizing that awards not always honor the right figures in history.