Trinta e tais anos após

Quer-me parecer que um compositor deve ser,
antes de mais, um homem de cultura
que saiba traçar grandes linhas de força sobre o tempo.

Eurico Carrapatoso

Surpreendi-me ao receber e-mail de uma ex-aluna dos anos 1980 que esteve sob minha orientação na universidade. Jovem, aplicada, após a conclusão de seus estudos nunca mais tivemos contato. Ao ler a entrevista publicada pelo Jornal da USP (vide blog “Entrevistas e entrevistas”, 23/07/2023), obteve meu endereço eletrônico e escreveu.

A razão do contato foi motivada pelos estudos pianísticos que sua filha, hoje com 17 anos, está a realizar. Tem ela imensas dúvidas quanto ao repertório para piano, escolhas a serem feitas, níveis de dificuldade das obras e penetração junto ao público. Esses questionamentos revelam inicialmente um aspecto que considero fulcral, a curiosidade, senda que leva à vontade de saber, independentemente das palavras do seu orientador.

Prometi à minha antiga aluna que escreveria oportunamente um blog sobre o tema, que serviria mais como sugestão, dado o fato de o repertório para piano ter dimensão oceânica. Não obstante, há obras para cravo que se perenizaram, compostas a partir do século XVII, penetrando com ênfase o séc. XVIII, mas que são interpretadas ao piano e que hoje fazem parte do seu imenso repertório. Entre os meus 25 CDs gravados no Exterior, cinco foram dedicados a compositores daquele período glorioso, Johann Kuhnau (1660-1722), Jean-Philippe Rameau (1683-1764) e Carlos Seixas (1704-1742). Considere-se também as criações da segunda metade do século XVIII ao império do piano no século XIX a avançar pelo século XX, períodos em que o piano reinou entre todos os instrumentos. Apesar da imensidão do repertório para piano, parte substancial qualitativa a ele destinada está submersa, poucas vezes ou nunca visitada e fatores claros mostram-se presentes.

Teria a considerar que há basicamente três caminhos quanto à escolha repertorial. Uma, tradicional, em que o intérprete se fixará, e que corresponde ao grandioso repertório exaustivamente visitado. A maioria dos pianistas a ele se dedica. O notável compositor Gilberto Mendes (1922-2016) é incisivo ao criticar “…parte dos pianistas rotineiros, que já se tornaram como que mecânicos datilógrafos de um repertório burocrático”. Estes o fazem em detrimento de uma infinidade de outras criações dos luminares da composição, mas que, por motivos tantas vezes desconhecidos, não alcançam a graça do intérprete, seja por desconhecimento, pela própria exigência do mercado que prefere as obras já sedimentadas no gosto do público e pelo empresário que, na opinião do ilustre musicólogo argentino Juan Carlos Paz (1897-1972), só visa ao lucro. No que concerne aos concursos para piano que proliferam pelo planeta, a repetição ad nauseam das mesmíssimas, mas extraordinárias obras, diga-se, serve de efeito comparativo entre os concorrentes e desfaz seus prováveis interesses pelo desconhecido ou novo repertório. Administradores desses concursos, empresários, professores, patrocinadores e o jovem executante se satisfazem com essa engrenagem. Findas essas etapas de concursos, uma extensa maioria de concorrentes persistirá, durante a existência, a reverenciar em público o mesmo repertório hiperdivulgado.

Uma segunda escolha, sem desprezar o repertório tradicionalmente oferecido, embrenha-se na criação do passado que permanece oculta. Diria que se tem nesse compartimento a parte submersa de um iceberg. Nele, composições extraordinárias dos grandes compositores, possivelmente o volume maior de suas criações, lá se insere pelo fato de não ter havido, no momento histórico preciso, a divulgação necessária. Partituras depositadas em arquivos ou publicadas em edições urtext, aguardam a redescoberta. Somam-se, às criações sepultas de compositores bem aceitos, outras, de músicos qualitativos que jamais tiveram desvelamentos por motivos os mais diversos. Apenas a curiosidade que conduz ao aprofundamento motiva essa opção.

Uma terceira alternativa seria a da música contemporânea. Nesse item há de se ter cautela, mas se o aluno for bem orientado, encontrará criações excelsas. Necessária a prospecção e, a depender da orientação, o repertório contemporâneo pode ser uma opção de grande interesse. A proliferação de compositores das mais variadas tendências na atualidade exige do intérprete atento um espírito seletivo. O notável compositor francês Serge Nigg (1924-2008) afirmaria que “Quando um Festival especializado anuncia, como exemplo, ’80 criações mundiais’, tem-se frio na espinha”.

Antolha-se-me que, desde jovem, o intérprete deve saber ouvir as interpretações relevantes que, mercê da tecnologia, estão à inteira disposição através dos aplicativos. A escuta dos grandes mestres do teclado enriquece o gosto, aperfeiçoa o estilo e desperta o espírito crítico, pois quase todas as obras basilares compostas para piano têm várias gravações à disposição.

Se as três opções básicas mencionadas evidenciam vasto repertório e possibilidade de aprofundamentos, imperioso se faz, inicialmente, a dedicação ao repertório tradicional. Dele se extrairão as bases seguras para a visita às duas outras alternativas elencadas neste espaço e a escolha de um caminho. Todavia, de suma importância a atenção à Cultura Geral, como apregoa o autor da epígrafe, o notável compositor português Eurico Carrapatoso (1962-).

O questionamento de minha ex-aluna direcionava-se ao repertório. Contudo, consideraria ainda que, durante a formação, iniciada para muitos ainda na idade edipiana, há a imperiosa necessidade da formação daquilo que se considera como “técnica do piano”. Dezenas e dezenas de métodos, que partem da técnica mais elementar às formulações arrojadas, existem há mais de dois séculos. Não obstante, o jovem, tão logo tenha o domínio do teclado, deve ater-se às formulações técnico-pianísticas que se apresentam nas obras do repertório. Jean Doyen, um dos meus grandes mestres e inefável pianista (1907-1982, http://www.musimem.com/Doyen_Jean.htm), dizia que as fórmulas que foram essenciais no aprendizado, perpassando tantas vezes todas as tonalidades com a utilização do mesmo dedilhado, não serão empregadas durante a existência, mas sim cada desafio técnico exposto nas composições estudadas.

Disciplina, perseverança, dedicação, concentração e amor à Música são elementos basilares para que a evolução nos estudos se concretize de maneira harmoniosa.

Meus sinceros votos à minha ex-aluna e à sua filha que está a escolher uma atividade plena de sacrifícios, mas que traz resultados extraordinários não apenas musicais. Considero uma dádiva ser músico.

A former student writes to me asking for repertoire advice for her 17-year-old daughter. I consider three basic categories possibilities concerning the solo piano repertoire.