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O cosmopolitismo e seus comprometimentos

Não admitimos que a tendência à uniformidade de costumes e de gostos
tenha um efeito inelutável de um novo regime civilizatório,
que imponha a todos os países interesses solidários,
uma vida e uma história comum.
Apesar dos sintomas dessas tendências existirem,
acreditamos que não prevalecerão.
Gustave Bertrand (“Les Nationalités Musicales”, 1872)

Como nada entenderam do passado nada podem sonhar com o futuro.
Agostinho da Silva

Entre as muitas mensagens tecendo comentários sobre o último post, três enfatizam o fato de que a decadência dos costumes, moral, artes, política e tantas outras áreas é generalizada, a não poupar os países. Quanto ao nosso vasto torrão, essa degeneração é também acentuada. As mensagens me fizeram lembrar de um livro do escritor e musicólogo Gustave Bertrand “Les Nationalités musicales étudiées dans le drame lyrique” (Paris, Didier, 1872), que adquiri em sua edição original nos anos 1960 em Paris. O autor, àquela altura, já sinalizava circunstâncias que podem ser observadas 150 anos após!!!

Extraio alguns parágrafos do livro, a fim de considerações. Gustave Bertrand observa determinado resultado das célebres Exposições Universais que em Paris têm início em meados do século XIX, sendo que a mais célebre Exposição Universal, em 1889, para a celebração do centenário da Revolução Francesa de 1789, dar-se-ia 17 anos após o livro mencionado. Profeticamente, comenta que “Nessa era de Exposições que começa, a França se pertencerá cada vez menos; pois não se trata de hospitalidade: os estrangeiros marcam os encontros em nossas terras. À força de ser cosmopolita, Paris esquecerá de ser nacional. A honra é grande, sem dúvida, de ser a capital cosmopolita, mas ao invés de aproveitar, findaremos por sofrer. As opiniões são bem divididas nesse assunto. Essa situação pode parecer magnífica para aqueles que acreditam e que ficam felizes sob o aspecto da sociabilidade europeia; todavia, outros tantos veem confusão, promiscuidade de gostos, e temem que o resultado dessa bela química internacional busque finalmente apagar o que há na arte a mais característica, de extirpar uma das fontes essenciais da originalidade, de fazer com que a música seja pasteurizada em todos os países do mundo”.

A seguir, Gustave Bertrand tece comentários a respeito da necessidade de as nações e seus indivíduos guardarem suas características: “Acreditamos que os cidadãos podem se conhecer, ter negócios conjuntos, manter laços estreitos, sem abdicar minimamente dos seus caracteres, fisionomias e personalidades. Eles podem admirar e estudar qualidades alheias numa reciprocidade, assimilar alguma coisa de experiências outras, sem que por isso cessem de viver suas individualidades”. Frise-se que, em 2019, a França tinha 6,7 milhões de imigrantes, o que correspondia a 9,9% da população do país, sendo que 37% se naturalizaram e que 7,4 milhões são considerados estrangeiros, o que perfaz 4,9 milhões de pessoas. Grande parte dessa imigração é oriunda do Magreb, que compreende os países ao norte da África: Marrocos, Argélia, Tunísia, Mauritânia e Líbia (fonte: CIMADE (Comité Inter-Mouvements Auprès Des Évacués).

Essa imigração também se verifica em muitos países europeus. O esquecer de ser nacional, apregoado por Bertrand, é nos nossos dias uma consequência natural e hoje não há mais a necessidade daquelas grandiosas Exposições, pois as práticas ditadas pelos países do propalado primeiro mundo, mercê inclusive do desenvolvimento cotidiano da tecnologia, influem nessa perda do sentimento nacional que, frise-se, ressurge sempre, mormente nos grandes eventos esportivos ou em conflagrações.

Sobre o intercâmbio entre as nações, Bertrand afirma: “É possível que uma nação capte por certo tempo os ensinamentos de uma outra, sem contudo ser condenada a se alimentar da imitação, a viver por reflexo. Que um artista emigre na busca de circunstâncias favoráveis ao seu gênio, isso não se traduz em uma ordem imutável do Destino a regulamentar as coisas de um país a outro”.

Contrapondo à frase mencionada, “À força de ser cosmopolita, Paris esquecerá de ser nacional”, Bertrand observa: “Nenhuma nação é fatalmente deserdada de algumas das grandes faculdades essenciais que constituem a humanidade em si. Eu cito ao acaso: a lógica, a coragem, a atividade industrial, agrícola ou comercial, a eloquência, a fantasia, o espírito filosófico, a observação moral, a imaginação e o sentimento artístico em suas diversas formas, poesia, drama, arquitetura, pintura, música, etc…; somente, cada nação guardará, nas suas diversas aplicações, seu caráter e gosto particulares”.

Entendo bem as posições de leitores sobre a problemática das transformações por que passa a humanidade nos itens elencados no post anterior relacionados a costumes, moralidade, gostos e à nítida decadência qualitativa em áreas como a criação artística. A música de alto consumo, como exemplo, passa por constantes transformações ditadas pela mídia e seus inconfessos interesses voltados à “renovação” sempre mais apelativa. Desse gênero “musical”, determinadas vertentes vindas do hemisfério norte, que produzem barulho “sonoro” ensurdecedor (entorpecedor das mentes), gestualização transloucada (a transição visual sem tréguas), repetição incessante (hipnotismo), “música” desprezível (destruição dos padrões tradicionais), conduzem milhões à alienação. E todo esse “material” é descartado em detrimento de outras apresentações sempre mais aberrantes e ruidosas. A mutação do gosto, calculadamente planejada pela mediação de tantos agentes, anatematiza a durabilidade.

Gêneros “musicais” que levam massas humanas pelo globo ao delírio, tendo como atores figuras amplamente mediáticas, estão em conformidade com “à força de ser cosmopolita…” apregoada por Bertrand. O que se vê é a diminuição brutal dessa juventude frente à arte erudita em detrimento das manifestações mediáticas de gêneros efêmeros, majoritariamente alienígenas, como Rock in Rio ou Lollapalooza, ou então, sob outra égide bem mediática e devastadora, se considerados forem os malfadados exemplos dos reality shows.

Nem falemos sobre a atividade musical erudita, pois estou a me lembrar de que, na nossa longínqua juventude, postávamo-nos em grandes filas frente ao Teatro Municipal para obter bilhetes para as galerias quando da visita dos luminares do gênero ao Brasil. A população de São Paulo era de 3,5 milhões, hoje 12,5 milhões, o que faria supor, para a atualidade, filas intermináveis.

Se outrora jovens instrumentistas pátrios contavam com público numeroso para estimulá-los, hoje os espaços ficaram reduzidos a guetos para todos, jovens e veteranos. A atividade musical erudita, contudo, persiste. A ciência já não provou que a chama de uma vela tem um potencial inimaginável?

Readers have asked for further clarification about the “cultural homogenization” that happens today in so many areas, such as tastes, customs, morals, arts. From the book by the French musicologist Gustave Bertrand, “Les Nationalités Musicales étudiées dans le drame Lyrique” (1872), I have drawn some very interesting ideas.

 

João Gouveia Monteiro e o aprofundamento fulcral

Por estes vos darei hum Nuno fero,
Que fez ao Rei, e ao Reino tal serviço;

Mas mais de Dom Nuno Alvares se arrea.
Ditosa Pátria que tal filho teve!

Luís Vaz de Camões
(Os Lusíadas, Cantos 1º, 12ª estrofe; 8º, 32º estrofe, respectivamente)

As biografias humanizam a História,
conferem-lhe um sentido maior do concreto,
interpelam-nos talvez mais como cidadãos do tempo e do mundo.

Aljubarrota, a mãe de todas as batalhas portuguesas.
João Gouveia Monteiro
(“Nuno Álvares Pereira – Guerreiro-Senhor Feudal-Santo”)

Uma das figuras mais importantes da História de Portugal, se não a mais fascinante, encontramo-la em Nuno Álvares Pereira (1360-1431). Ao longo dos séculos tem sido vivamente cultuado em Portugal.

Curiosamente, meu “contato” com o gigantesco personagem se deu nos meus 15 anos, no longínquo 1953. Meu Pai, natural do Minho, cultuava intensamente os valores portugueses e me presentou em dois anos consecutivos com dois livros que li com vivo interesse àquela altura e que conservo carinhosamente nas estantes, “Os Filhos de D. João I” e “A vida de Nun’Álvares Pereira – história do estabelecimento da dinastia de Avis”, do historiador Oliveira Martins (1845-1894). Juntavam-se a muitos outros que ganhei de meu Pai na juventude, voltados às biografias de compositores, literatos ou desbravadores de tantas áreas. Os de Oliveira Martins deixaram-me forte impressão, mormente porque o autor, sem as fontes multidirecionadas que são primordiais às pesquisas historiográficas na atualidade, compensava essa lacuna com uma escrita sedutora, romantizada, que ficou indelével na mente do jovem que eu fui. Não poucas vezes, em minhas dezenas de peregrinações musicais a Portugal, que remontam a 1959, pensei em saber mais sobre o magistral arquiteto da Batalha de Aljubarrota, que se deu em 1385.

Foi-me prazeroso receber das mãos do notável professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, João Gouveia Monteiro, onde ensina História da Idade Média, História Militar Europeia, História da Antiguidade Clássica, História das Religiões e Cultura Medieval, seu precioso livro “Nuno Álvares Pereira, Guerreiro-Senhor Feudal-Santo – Os três rostos do Condestável” (Lisboa, Manuscrito, 2019). Duas obras de Gouveia Monteiro foram resenhadas neste espaço (vide: “Crônicas de História, Cultura e Cidadania”, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011, 23/12/2011 e, juntamente com três outros professores medievalistas, “Guerra e Poder na Europa Medieval”, Coimbra, IUC, 2015. 11/11/2017).

A imersão do autor sobre Nuno Álvares Pereira fê-lo compartimentar a vida do Condestável em três nítidas fases, a do Guerreiro, do Senhor Feudal e do Santo. Essas fases são nítidas, plenamente vividas, a revelar unidade de caráter. Na essência essencial, Nuno Álvares Pereira, o Condestável, é um só a viver etapas distintas na existência. Gouveia Monteiro apresenta o herói, dissecando-o, caminhando passo a passo com o Condestável e, à medida em que constrói a narrativa, faz desfilar incontáveis fontes fidedignas que remontam da Idade Média às últimas pesquisas sobre o período em que Nuno Álvares Pereira viveu. O livro poderia ter sido demasiadamente exegético não fosse a presença constante do autor para que dúvidas não pairassem. Nesse sentido, Gouveia Monteiro se faz guia, reportando-se às passagens lidas bem anteriormente. Essa atitude constante corrobora o entendimento, pois desfilam no livro em apreço centenas de personagens, mormente os que viveram entre os séculos XIV e XV. O leitor poderia perder-se, não fosse a ação didática do ilustre acadêmico. Fá-lo sempre com precisão, certo de que se assim não agisse impossibilitaria a retenção por parte do leitor. Essa presença do biógrafo possibilita àquele, inclusive, cotejar documentação e interpretar pesquisas de um período pleno de acontecimentos cruciais da História de Portugal.

Dividido em quatro capítulos distintos - “Como contar esta História?”, “O General Invencível e o seu Exército”, “O Senhor Feudal e o seu Patrimônio” e “Um Eremita da ‘Pobre Vida’ no Mosteiro” -, a obra de Gouveia Monteiro na realidade compreende “três” personagens em atuações harmoniosas, diferenciadas sim, mas prenhes de unicidade.

Em “Como contar essa História”, Gouveia Monteiro, após minuciosa pesquisa, perscruta cronistas dos tempos de Nuno Álvares Pereira e, através dessa documentação, possibilita ao leitor o descortino do período. Interessa-lhe não apenas o seu herói, mas igualmente o entorno, e esse caminho pluralizado revela determinados eventos que poderiam estar à margem, mas que têm importância fulcral. Ficamos sabendo essencialidades dos espaços geográficos e humanos em que o Santo Condestável atuou através dessa literatura de antanho. Gouveia Monteiro se posiciona logo de início e entende a dificuldade de escrever sobre um personagem histórico que viveu há 600 anos. Das remotas narrativas, três, entre outras, servem de “amparo” a todos os recentes trabalhos sobre o herói português: A “Crónica do Condestabre”, redigida pouco após a morte de Nuno Álvares Pereira (desconhece-se o autor), as importantíssimas biografias redigidas por Fernão Lopes (século XV) e a bem mais recente “Chronica dos Carmelitas” do Frei José Pereira de Sant’Anna (anterior ao terremoto de 1755). A partir dessas fontes primárias, o medievalista se debruçaria sobre mais de 5.000 páginas em torno do tema.

A respeito de Fernão Lopes, Gouveia Monteiro pormenoriza segmentos de suas crônicas, fornecendo embasamento às suas próprias deduções.

Em “O General Invencível e o seu Exército” tem-se o desvelamento de um dos mais importantes comandantes da história de todas as guerras do planeta. Impressiona a trajetória vitoriosa de Nuno Álvares Pereira frente aos seus exércitos. Tendo a guarida do rei D. João I, o Mestre de Avis (1357-1433), o Condestável elabora estratégias com tropas menos numerosas frente aos embates com o Reino de Castela. Impressiona o fato de que as três principais batalhas em que esteve a comandar foram travadas sendo Nuno Álvares ainda jovem. Em Atoleiros, com seus homens apeados, vence castelhanos montados (Abril de 1384). Em Agosto do mesmo ano, arquitetando tática bélica inusitada, vence a célebre batalha de Aljubarrota. No ano seguinte, em terras de Castela, sai vencedor da não menos famosa batalha de Valverde. Se essas três batalhas basilares ficaram no panteão das grandes contendas, em inúmeras outras “escaramuças” ou enfrentamentos menores, alguns desses reintegrando espaços provisoriamente ocupados pelos castelhanos, Nuno Álvares saiu-se vencedor. Bourbon e Menezes pergunta: “Que teria sido D. João, Mestre de Avis, sem o alento animador deste Galaaz?” (1933). O rei D. João I, reconhecendo todos os méritos de Nuno Álvares Pereira, nomeia-o Condestável.  Entre outras honrarias, vemo-lo fronteiro do Alentejo, mordomo-mor do rei D. João I e triplo conde. Paulatinamente D. João o presenteia com terras e propriedades que “assinalam a consagração de D. Nuno Álvares Pereira como o homem mais rico e poderoso do reino, a seguir ao rei” (Gouveia Monteiro).

No terceiro capítulo, “Senhor Feudal”, a preceder as doações realizadas pelo Condestável, o autor salienta as qualidades de seu pai, Álvaro Gonçalves Pereira, já expressas no capítulo anterior em citação constante da “Crônica do Condestabre”: nobre de condição e bom cavaleiro e mui entendido, assim como de ter privado com três reis portugueses: D. Afonso IV, D. Pedro e D. Fernando. Gouveia Monteiro escreve: “Álvaro Gonçalves Pereira é uma figura relevantíssima na vida de Nun’Álvares”. Ao pormenorizar o pai, que inclusive teve meritório desempenho como guerreiro na batalha do Salado e outras mais contendas, ficaria latente a influência de Álvaro Gonçalves Pereira nas escolhas do futuro Condestável desde a juventude.  Tendo fundamental importância junto à Ordem do Hospital, o progenitor de Nuno Álvares teve “…uma capacidade empreendedora e uma energia assombrosa” d’après Gouveia Monteiro, sendo o mandante da construção do Mosteiro de Flor da Rosa (Crato), local onde está sepultado. Tanto Álvaro Gonçalves Pereira como Iria Gonçalves, mãe de Nuno Álvares, esta posteriormente, foram doadores de terras.

Ainda em tempos de combate o Condestável já distribuía entre aqueles que o ajudaram nas batalhas algumas de suas propriedades, mais o fez ao longo de sua vida como Senhor Feudal e despojadamente quando entrou para a Ordem do Carmo. Seguiria, em escala bem mais ampla, as atitudes dos seus progenitores. É notável a presença do homem de fé intensa que desde os tempos como guerreiro, antes das batalhas, permanecia durante bom tempo a rezar. “Estará Fernão Lopes [cronista citado acima] mais próximo da verdade do que até aqui pensávamos, quando comenta o estranho episódio do Condestável, entre penedos, no momento mais apertado de Valverde, passagem em que explica que o Condestável se apartou do resto do seu exército e dos seus mortais inimigos, ‘não como guiador da sua hoste, mas como simples eremitão, fora de todo o negócio’”? (Gouveia Monteiro). Prossegue o autor quanto ao Convento do Carmo: “… legado material mais importante da existência do Santo Condestável: o Convento do Carmo, sem dúvida alguma a obra da sua vida e uma parte importante do seu patrimônio”. Gouveia Monteiro assinala ainda que, apesar das dúvidas concernentes à decisão de edificar o Convento, “a tradição relaciona a decisão com os votos que terá proferido por ocasião da batalha de Aljubarrota ou da batalha de Valverde”.  Entende o historiador que há um mínimo intervalo cronológico entre a construção e a desconstrução patrimonial de Nuno Álvares Pereira, pois ainda em tempos de batalhas e escaramuças o Condestável já tinha o hábito de doar.

Na abertura do quarto capítulo, “Um eremita da ‘pobre vida’ no Mosteiro”, Gouveia Monteiro escreve: “Depois de recordada a longa carreira militar de Nuno Álvares Pereira, resta-me considerar o seu ‘terceiro rosto’: o do homo religiosus, que, aos sessenta e dois anos, decide ir viver para o convento que tinha mandado construir em Lisboa, onde entrará em vida religiosa um ano mais tarde e onde virá a falecer, em 1431”. Será o tema do próximo post. Explico: ao final do livro, João Gouveia Monteiro se posiciona, enumerando cinco pontos relevantes em considerações pessoais de grande interesse. Para tanto, servir-me-ei do seu próprio texto, conciso e fundamental. Compreende-se melhor a intensa religiosidade de Nuno Álvares e, entre outros fatores devocionais, tem importãncia os eremitas e as comunidades eremíticas nos anos derradeiros do Condestável.

An essential contribution to the unveiling of Nuno Álvares Pereira, the Constable (1360-1431), has been made by the remarkable Professor of Medieval History at the University of Coimbra, João Gouveia Monteiro. Consisting of three parts – the Warrior, the Feudal Lord and the Saint -  the researcher’s book, based on reliable  sources basically  dating back to the 14th century, appears to be of absolute importance not only to the  Portuguese culture, as it transcends national borders.

Continuação do texto de Bóris Pasternak

A experiência interior ou psicológica não constitui
um compartimento particular de experiência ao lado de outras:
é em geral uma experiência espontânea.
Alexandre Scriabine (“Carnets inédits”, nº 1, 1904)

Dando continuação ao testemunho de Bóris Pasternak, neste segundo post o escritor russo, já na maturidade, considera a importância de Alexandre Scriabine na música. Esse olhar, que vem da infância e comunga durante um período da vida de Pasternak com estudos de música e composição, chega a termo quando opta pela literatura, que o consagraria. Não obstante, a música teria substanciado sua formação literária. Seu “distanciamento” em relação às últimas composições de Scriabine, fase em que a ascensão mística do compositor o faz “amalgamar” a nova escrita musical à visionária senda em direção ao Cosmos, ratifica a plena adesão de Pasternak ao gosto romântico majoritariamente aceito pela sociedade do período, este expresso nas criações de Scriabine ainda na juventude da idade madura. Bóris Pasternak demonstra que  dilemas existiram antes da certeza final de uma vocação literária.

“Sempre tivera inclinações místicas e supersticiosas e um ardente desejo de avisos sobrenaturais. Começara a crer num mundo heroico que necessitava de minha participação entusiasta, embora esta fosse fonte de angústia. Quão frequentemente, aos seis, sete ou oito anos, estivera à beira do suicídio! Imaginava-me cercado de toda sorte de mistérios e mentiras. Não havia absurdo em que não acreditasse. Houve momentos na aurora da vida – única época em que tais tolices são concebíveis – em que me imaginei (talvez porque pudesse lembrar minha babá vestindo-me as primeiras camisolas) já me haver vestido como menina, acreditando poder recuperar esta personalidade mais agradável, mais fascinante apertando tanto o cinto até quase desmaiar. Em outras ocasiões, pensava não ser filho de meus pais, mas um enjeitado por eles adotado.

Assim, razões tortuosas e imaginárias – oráculos, sinais, presságios – afetavam minhas desditas como músico. Faltava-me ouvido absoluto, o que era de todo dispensável em meu trabalho, mas considerei a descoberta triste e humilhante, prova de que minha música era rejeitada pelo céu ou pelo destino. Esmoreci, sem forças para enfrentar tais golpes. Por seis anos vivera para a música. Agora, rasguei-a e arremessei-a longe, como alguém a despedir-se de seu mais caro tesouro. Por algum tempo persistiu o hábito de improvisar, mas perdi gradualmente minha habilidade. Decidi-me, então, por um rompimento total: deixei de tocar piano ou de ir a concertos, evitando encontrar-me com músicos.

Scriabine, em sua defesa do super-homem, era extensão de sua Rússia natal, ansiando pelo superlativo. Na verdade a música, como tudo, precisa supera-se para ter algum significado. Deve haver algo ilimitado no ser humano e em sua lida para que ambos tenham definição e caráter.

Diante de minha ruptura com a música e de meu fracasso em acompanhar seu desenvolvimento, o Scriabine de minhas reminiscências – que costumava ser meu pão de cada dia – é aquele do período intermediário, aproximadamente entre sua terceira e quinta sonatas. Para mim, o fogo de Prometeu de seus últimos trabalhos não é alento diário para a alma, mas mera evidência adicional de seu gênio. Isto me é dispensável; acreditei nele desde o início.

Clique para ouvir, de Scriabine, Estudo op. 65 nº 1 (1912), criação da última fase scriabiniana, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=5fc96yVOXgQ

Homens que morreram cedo, como Andrey Bely e Khlebnikov, passaram os últimos anos de suas vidas buscando novos meios de expressão, sonhando com uma nova linguagem, tateando por suas vogais, consoantes e sílabas. Nunca entendi a necessidade desse tipo de pesquisa. Acredito terem sido as mais surpreendentes descobertas feitas no momento em que o artista estava de tal forma possuído pelo espírito de sua obra que, sem tempo para pensar, foi levado por sua urgência a dizer palavras novas na língua antiga, sem se perguntar se era jovem ou velha. Foi como Chopin, usando o velho idioma de Mozart e Field, disse tantas coisas novas em música que, com ele, ela parece ter tido um novo começo. E também assim foi que Scriabine, muito cedo em sua carreira e usando quase nada além dos métodos de seus antepassados, mudou e renovou o clima da música. Desde os Estudos Opus 8 e os Prelúdios Opus 11, seu trabalho já era totalmente contemporâneo, tendo uma correspondência interna, em termos musicais, com o mundo lá fora, com o modo como as pessoas pensavam, sentiam, viviam, vestiam-se e trabalhavam naquele tempo.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine. o Estudo op. 8 – nº 12 (Patetico), criação de 1894, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=6H_T5I4BYn0

Naquelas composições, as melodias começam como lágrimas aflorando a nossos olhos e, como essas, resvalam por nossa face até os cantos da boca. Fluem através de nossos nervos e coração, nascidas não de pesar, mas de assombro por haver sido o caminho para nossa emoção tão completamente desvelado. Súbito, irrompe no fluxo da melodia uma resposta a isso, uma objeção com outro timbre, mais alto, feminino e num tom mais simples, coloquial. O argumento fortuito resolve-se imediatamente, deixando atrás de si a lembrança, opressivamente perturbadora, daquela simplicidade da qual em arte tudo depende.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, a Valsa op. 38 (1903), na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=97MoXq2KWig

A arte é plena de verdades consagradas que, embora ao alcance de todos, raramente são aplicadas com propriedade. Uma verdade bem conhecida necessita, para ser posta em prática, de um acaso feliz, do tipo que acontece uma vez em cada século. Scriabine foi esse acaso. Como Dostoievsky foi mais do que mero escritor e Blok, mais do que mero poeta, assim Scriabine foi mais do que simplesmente um compositor – ele é motivo eterno para júbilo e congratulação, uma festa, uma celebração na história da cultura russa”.

No próximo post publicarei meu texto “Bóris Pasternak e Alexandre Scriabine”, também inserido no “Nanico – homeopatia cultural” nº 13, Junho 1996, editado por Cláudio Giordano. Nele teço considerações sobre o sensível depoimento de Pasternak, entre outros posicionamentos de interesse.

Going on with Boris Pasternak’s account of his acquaintance with Alexander Scriabine, the author of Dr. Zhivago discusses — among other things — his preference for the early works of his fellow countryman.