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João Gouveia Monteiro e o aprofundamento fulcral

Por estes vos darei hum Nuno fero,
Que fez ao Rei, e ao Reino tal serviço;

Mas mais de Dom Nuno Alvares se arrea.
Ditosa Pátria que tal filho teve!

Luís Vaz de Camões
(Os Lusíadas, Cantos 1º, 12ª estrofe; 8º, 32º estrofe, respectivamente)

As biografias humanizam a História,
conferem-lhe um sentido maior do concreto,
interpelam-nos talvez mais como cidadãos do tempo e do mundo.

Aljubarrota, a mãe de todas as batalhas portuguesas.
João Gouveia Monteiro
(“Nuno Álvares Pereira – Guerreiro-Senhor Feudal-Santo”)

Uma das figuras mais importantes da História de Portugal, se não a mais fascinante, encontramo-la em Nuno Álvares Pereira (1360-1431). Ao longo dos séculos tem sido vivamente cultuado em Portugal.

Curiosamente, meu “contato” com o gigantesco personagem se deu nos meus 15 anos, no longínquo 1953. Meu Pai, natural do Minho, cultuava intensamente os valores portugueses e me presentou em dois anos consecutivos com dois livros que li com vivo interesse àquela altura e que conservo carinhosamente nas estantes, “Os Filhos de D. João I” e “A vida de Nun’Álvares Pereira – história do estabelecimento da dinastia de Avis”, do historiador Oliveira Martins (1845-1894). Juntavam-se a muitos outros que ganhei de meu Pai na juventude, voltados às biografias de compositores, literatos ou desbravadores de tantas áreas. Os de Oliveira Martins deixaram-me forte impressão, mormente porque o autor, sem as fontes multidirecionadas que são primordiais às pesquisas historiográficas na atualidade, compensava essa lacuna com uma escrita sedutora, romantizada, que ficou indelével na mente do jovem que eu fui. Não poucas vezes, em minhas dezenas de peregrinações musicais a Portugal, que remontam a 1959, pensei em saber mais sobre o magistral arquiteto da Batalha de Aljubarrota, que se deu em 1385.

Foi-me prazeroso receber das mãos do notável professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, João Gouveia Monteiro, onde ensina História da Idade Média, História Militar Europeia, História da Antiguidade Clássica, História das Religiões e Cultura Medieval, seu precioso livro “Nuno Álvares Pereira, Guerreiro-Senhor Feudal-Santo – Os três rostos do Condestável” (Lisboa, Manuscrito, 2019). Duas obras de Gouveia Monteiro foram resenhadas neste espaço (vide: “Crônicas de História, Cultura e Cidadania”, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011, 23/12/2011 e, juntamente com três outros professores medievalistas, “Guerra e Poder na Europa Medieval”, Coimbra, IUC, 2015. 11/11/2017).

A imersão do autor sobre Nuno Álvares Pereira fê-lo compartimentar a vida do Condestável em três nítidas fases, a do Guerreiro, do Senhor Feudal e do Santo. Essas fases são nítidas, plenamente vividas, a revelar unidade de caráter. Na essência essencial, Nuno Álvares Pereira, o Condestável, é um só a viver etapas distintas na existência. Gouveia Monteiro apresenta o herói, dissecando-o, caminhando passo a passo com o Condestável e, à medida em que constrói a narrativa, faz desfilar incontáveis fontes fidedignas que remontam da Idade Média às últimas pesquisas sobre o período em que Nuno Álvares Pereira viveu. O livro poderia ter sido demasiadamente exegético não fosse a presença constante do autor para que dúvidas não pairassem. Nesse sentido, Gouveia Monteiro se faz guia, reportando-se às passagens lidas bem anteriormente. Essa atitude constante corrobora o entendimento, pois desfilam no livro em apreço centenas de personagens, mormente os que viveram entre os séculos XIV e XV. O leitor poderia perder-se, não fosse a ação didática do ilustre acadêmico. Fá-lo sempre com precisão, certo de que se assim não agisse impossibilitaria a retenção por parte do leitor. Essa presença do biógrafo possibilita àquele, inclusive, cotejar documentação e interpretar pesquisas de um período pleno de acontecimentos cruciais da História de Portugal.

Dividido em quatro capítulos distintos - “Como contar esta História?”, “O General Invencível e o seu Exército”, “O Senhor Feudal e o seu Patrimônio” e “Um Eremita da ‘Pobre Vida’ no Mosteiro” -, a obra de Gouveia Monteiro na realidade compreende “três” personagens em atuações harmoniosas, diferenciadas sim, mas prenhes de unicidade.

Em “Como contar essa História”, Gouveia Monteiro, após minuciosa pesquisa, perscruta cronistas dos tempos de Nuno Álvares Pereira e, através dessa documentação, possibilita ao leitor o descortino do período. Interessa-lhe não apenas o seu herói, mas igualmente o entorno, e esse caminho pluralizado revela determinados eventos que poderiam estar à margem, mas que têm importância fulcral. Ficamos sabendo essencialidades dos espaços geográficos e humanos em que o Santo Condestável atuou através dessa literatura de antanho. Gouveia Monteiro se posiciona logo de início e entende a dificuldade de escrever sobre um personagem histórico que viveu há 600 anos. Das remotas narrativas, três, entre outras, servem de “amparo” a todos os recentes trabalhos sobre o herói português: A “Crónica do Condestabre”, redigida pouco após a morte de Nuno Álvares Pereira (desconhece-se o autor), as importantíssimas biografias redigidas por Fernão Lopes (século XV) e a bem mais recente “Chronica dos Carmelitas” do Frei José Pereira de Sant’Anna (anterior ao terremoto de 1755). A partir dessas fontes primárias, o medievalista se debruçaria sobre mais de 5.000 páginas em torno do tema.

A respeito de Fernão Lopes, Gouveia Monteiro pormenoriza segmentos de suas crônicas, fornecendo embasamento às suas próprias deduções.

Em “O General Invencível e o seu Exército” tem-se o desvelamento de um dos mais importantes comandantes da história de todas as guerras do planeta. Impressiona a trajetória vitoriosa de Nuno Álvares Pereira frente aos seus exércitos. Tendo a guarida do rei D. João I, o Mestre de Avis (1357-1433), o Condestável elabora estratégias com tropas menos numerosas frente aos embates com o Reino de Castela. Impressiona o fato de que as três principais batalhas em que esteve a comandar foram travadas sendo Nuno Álvares ainda jovem. Em Atoleiros, com seus homens apeados, vence castelhanos montados (Abril de 1384). Em Agosto do mesmo ano, arquitetando tática bélica inusitada, vence a célebre batalha de Aljubarrota. No ano seguinte, em terras de Castela, sai vencedor da não menos famosa batalha de Valverde. Se essas três batalhas basilares ficaram no panteão das grandes contendas, em inúmeras outras “escaramuças” ou enfrentamentos menores, alguns desses reintegrando espaços provisoriamente ocupados pelos castelhanos, Nuno Álvares saiu-se vencedor. Bourbon e Menezes pergunta: “Que teria sido D. João, Mestre de Avis, sem o alento animador deste Galaaz?” (1933). O rei D. João I, reconhecendo todos os méritos de Nuno Álvares Pereira, nomeia-o Condestável.  Entre outras honrarias, vemo-lo fronteiro do Alentejo, mordomo-mor do rei D. João I e triplo conde. Paulatinamente D. João o presenteia com terras e propriedades que “assinalam a consagração de D. Nuno Álvares Pereira como o homem mais rico e poderoso do reino, a seguir ao rei” (Gouveia Monteiro).

No terceiro capítulo, “Senhor Feudal”, a preceder as doações realizadas pelo Condestável, o autor salienta as qualidades de seu pai, Álvaro Gonçalves Pereira, já expressas no capítulo anterior em citação constante da “Crônica do Condestabre”: nobre de condição e bom cavaleiro e mui entendido, assim como de ter privado com três reis portugueses: D. Afonso IV, D. Pedro e D. Fernando. Gouveia Monteiro escreve: “Álvaro Gonçalves Pereira é uma figura relevantíssima na vida de Nun’Álvares”. Ao pormenorizar o pai, que inclusive teve meritório desempenho como guerreiro na batalha do Salado e outras mais contendas, ficaria latente a influência de Álvaro Gonçalves Pereira nas escolhas do futuro Condestável desde a juventude.  Tendo fundamental importância junto à Ordem do Hospital, o progenitor de Nuno Álvares teve “…uma capacidade empreendedora e uma energia assombrosa” d’après Gouveia Monteiro, sendo o mandante da construção do Mosteiro de Flor da Rosa (Crato), local onde está sepultado. Tanto Álvaro Gonçalves Pereira como Iria Gonçalves, mãe de Nuno Álvares, esta posteriormente, foram doadores de terras.

Ainda em tempos de combate o Condestável já distribuía entre aqueles que o ajudaram nas batalhas algumas de suas propriedades, mais o fez ao longo de sua vida como Senhor Feudal e despojadamente quando entrou para a Ordem do Carmo. Seguiria, em escala bem mais ampla, as atitudes dos seus progenitores. É notável a presença do homem de fé intensa que desde os tempos como guerreiro, antes das batalhas, permanecia durante bom tempo a rezar. “Estará Fernão Lopes [cronista citado acima] mais próximo da verdade do que até aqui pensávamos, quando comenta o estranho episódio do Condestável, entre penedos, no momento mais apertado de Valverde, passagem em que explica que o Condestável se apartou do resto do seu exército e dos seus mortais inimigos, ‘não como guiador da sua hoste, mas como simples eremitão, fora de todo o negócio’”? (Gouveia Monteiro). Prossegue o autor quanto ao Convento do Carmo: “… legado material mais importante da existência do Santo Condestável: o Convento do Carmo, sem dúvida alguma a obra da sua vida e uma parte importante do seu patrimônio”. Gouveia Monteiro assinala ainda que, apesar das dúvidas concernentes à decisão de edificar o Convento, “a tradição relaciona a decisão com os votos que terá proferido por ocasião da batalha de Aljubarrota ou da batalha de Valverde”.  Entende o historiador que há um mínimo intervalo cronológico entre a construção e a desconstrução patrimonial de Nuno Álvares Pereira, pois ainda em tempos de batalhas e escaramuças o Condestável já tinha o hábito de doar.

Na abertura do quarto capítulo, “Um eremita da ‘pobre vida’ no Mosteiro”, Gouveia Monteiro escreve: “Depois de recordada a longa carreira militar de Nuno Álvares Pereira, resta-me considerar o seu ‘terceiro rosto’: o do homo religiosus, que, aos sessenta e dois anos, decide ir viver para o convento que tinha mandado construir em Lisboa, onde entrará em vida religiosa um ano mais tarde e onde virá a falecer, em 1431”. Será o tema do próximo post. Explico: ao final do livro, João Gouveia Monteiro se posiciona, enumerando cinco pontos relevantes em considerações pessoais de grande interesse. Para tanto, servir-me-ei do seu próprio texto, conciso e fundamental. Compreende-se melhor a intensa religiosidade de Nuno Álvares e, entre outros fatores devocionais, tem importãncia os eremitas e as comunidades eremíticas nos anos derradeiros do Condestável.

An essential contribution to the unveiling of Nuno Álvares Pereira, the Constable (1360-1431), has been made by the remarkable Professor of Medieval History at the University of Coimbra, João Gouveia Monteiro. Consisting of three parts – the Warrior, the Feudal Lord and the Saint -  the researcher’s book, based on reliable  sources basically  dating back to the 14th century, appears to be of absolute importance not only to the  Portuguese culture, as it transcends national borders.

Continuação do texto de Bóris Pasternak

A experiência interior ou psicológica não constitui
um compartimento particular de experiência ao lado de outras:
é em geral uma experiência espontânea.
Alexandre Scriabine (“Carnets inédits”, nº 1, 1904)

Dando continuação ao testemunho de Bóris Pasternak, neste segundo post o escritor russo, já na maturidade, considera a importância de Alexandre Scriabine na música. Esse olhar, que vem da infância e comunga durante um período da vida de Pasternak com estudos de música e composição, chega a termo quando opta pela literatura, que o consagraria. Não obstante, a música teria substanciado sua formação literária. Seu “distanciamento” em relação às últimas composições de Scriabine, fase em que a ascensão mística do compositor o faz “amalgamar” a nova escrita musical à visionária senda em direção ao Cosmos, ratifica a plena adesão de Pasternak ao gosto romântico majoritariamente aceito pela sociedade do período, este expresso nas criações de Scriabine ainda na juventude da idade madura. Bóris Pasternak demonstra que  dilemas existiram antes da certeza final de uma vocação literária.

“Sempre tivera inclinações místicas e supersticiosas e um ardente desejo de avisos sobrenaturais. Começara a crer num mundo heroico que necessitava de minha participação entusiasta, embora esta fosse fonte de angústia. Quão frequentemente, aos seis, sete ou oito anos, estivera à beira do suicídio! Imaginava-me cercado de toda sorte de mistérios e mentiras. Não havia absurdo em que não acreditasse. Houve momentos na aurora da vida – única época em que tais tolices são concebíveis – em que me imaginei (talvez porque pudesse lembrar minha babá vestindo-me as primeiras camisolas) já me haver vestido como menina, acreditando poder recuperar esta personalidade mais agradável, mais fascinante apertando tanto o cinto até quase desmaiar. Em outras ocasiões, pensava não ser filho de meus pais, mas um enjeitado por eles adotado.

Assim, razões tortuosas e imaginárias – oráculos, sinais, presságios – afetavam minhas desditas como músico. Faltava-me ouvido absoluto, o que era de todo dispensável em meu trabalho, mas considerei a descoberta triste e humilhante, prova de que minha música era rejeitada pelo céu ou pelo destino. Esmoreci, sem forças para enfrentar tais golpes. Por seis anos vivera para a música. Agora, rasguei-a e arremessei-a longe, como alguém a despedir-se de seu mais caro tesouro. Por algum tempo persistiu o hábito de improvisar, mas perdi gradualmente minha habilidade. Decidi-me, então, por um rompimento total: deixei de tocar piano ou de ir a concertos, evitando encontrar-me com músicos.

Scriabine, em sua defesa do super-homem, era extensão de sua Rússia natal, ansiando pelo superlativo. Na verdade a música, como tudo, precisa supera-se para ter algum significado. Deve haver algo ilimitado no ser humano e em sua lida para que ambos tenham definição e caráter.

Diante de minha ruptura com a música e de meu fracasso em acompanhar seu desenvolvimento, o Scriabine de minhas reminiscências – que costumava ser meu pão de cada dia – é aquele do período intermediário, aproximadamente entre sua terceira e quinta sonatas. Para mim, o fogo de Prometeu de seus últimos trabalhos não é alento diário para a alma, mas mera evidência adicional de seu gênio. Isto me é dispensável; acreditei nele desde o início.

Clique para ouvir, de Scriabine, Estudo op. 65 nº 1 (1912), criação da última fase scriabiniana, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=5fc96yVOXgQ

Homens que morreram cedo, como Andrey Bely e Khlebnikov, passaram os últimos anos de suas vidas buscando novos meios de expressão, sonhando com uma nova linguagem, tateando por suas vogais, consoantes e sílabas. Nunca entendi a necessidade desse tipo de pesquisa. Acredito terem sido as mais surpreendentes descobertas feitas no momento em que o artista estava de tal forma possuído pelo espírito de sua obra que, sem tempo para pensar, foi levado por sua urgência a dizer palavras novas na língua antiga, sem se perguntar se era jovem ou velha. Foi como Chopin, usando o velho idioma de Mozart e Field, disse tantas coisas novas em música que, com ele, ela parece ter tido um novo começo. E também assim foi que Scriabine, muito cedo em sua carreira e usando quase nada além dos métodos de seus antepassados, mudou e renovou o clima da música. Desde os Estudos Opus 8 e os Prelúdios Opus 11, seu trabalho já era totalmente contemporâneo, tendo uma correspondência interna, em termos musicais, com o mundo lá fora, com o modo como as pessoas pensavam, sentiam, viviam, vestiam-se e trabalhavam naquele tempo.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine. o Estudo op. 8 – nº 12 (Patetico), criação de 1894, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=6H_T5I4BYn0

Naquelas composições, as melodias começam como lágrimas aflorando a nossos olhos e, como essas, resvalam por nossa face até os cantos da boca. Fluem através de nossos nervos e coração, nascidas não de pesar, mas de assombro por haver sido o caminho para nossa emoção tão completamente desvelado. Súbito, irrompe no fluxo da melodia uma resposta a isso, uma objeção com outro timbre, mais alto, feminino e num tom mais simples, coloquial. O argumento fortuito resolve-se imediatamente, deixando atrás de si a lembrança, opressivamente perturbadora, daquela simplicidade da qual em arte tudo depende.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, a Valsa op. 38 (1903), na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=97MoXq2KWig

A arte é plena de verdades consagradas que, embora ao alcance de todos, raramente são aplicadas com propriedade. Uma verdade bem conhecida necessita, para ser posta em prática, de um acaso feliz, do tipo que acontece uma vez em cada século. Scriabine foi esse acaso. Como Dostoievsky foi mais do que mero escritor e Blok, mais do que mero poeta, assim Scriabine foi mais do que simplesmente um compositor – ele é motivo eterno para júbilo e congratulação, uma festa, uma celebração na história da cultura russa”.

No próximo post publicarei meu texto “Bóris Pasternak e Alexandre Scriabine”, também inserido no “Nanico – homeopatia cultural” nº 13, Junho 1996, editado por Cláudio Giordano. Nele teço considerações sobre o sensível depoimento de Pasternak, entre outros posicionamentos de interesse.

Going on with Boris Pasternak’s account of his acquaintance with Alexander Scriabine, the author of Dr. Zhivago discusses — among other things — his preference for the early works of his fellow countryman.

 

Prática comum em todas as áreas

Toda representação ou reprodução integral ou parcial
feita sem o consentimento do autor [...] é ilícita.
O mesmo ocorre em relação à tradução,
à adaptação ou transformação,
ao arranjo ou à reprodução por uma arte ou um processo qualquer.
(Definição do plágio. Artigo L122-4 do Código francês de propriedade intelectual).

Um leitor atento, Álvaro Aparecido, escreveu-me em Agosto sugerindo um post sobre o plágio. Fez-me regressar, após muitos anos, a um tema que tem recrudescido. Particulariza a música, mormente a música de alto consumo e majoritariamente efêmera, mas pode-se estender a considerações para todas as áreas. Lembraria um post publicado bem anteriormente, no qual comentava a larga utilização dos termos imitação e plágio (vide: “Imitação, Plágio, Inspiração”. 19/09/2009). Plágio e imitação são palavras que, apesar de diferenciações, se coadunam.

No post mencionado citava frases basilares de Francisco Mignone: “Todos os grandes artistas de todas as artes foram enormes plagiários. O plágio só é condenável quando feito com a intenção de roubar o sucesso alheio”. Outra frase bem incisiva: “Originalidade está na lógica da criação e se Debussy é feito de uma parte de franceses (até de Massenet), e uma terça parte de Moussorgsky, lhe bastou botar uma terça parte de Debussy na sua criação para ser original e chefe de escola” (Francisco Mignone, “A Parte do Anjo – autocrítica de um cinquentenário”. São Paulo, Mangione,1947). Acredito que “a intenção de roubar o sucesso alheio” torna-se algo que deve ser insistentemente combatido. Não obstante, apesar de a internet ser a cada dia mais atuante e detectora, o plágio persiste, velado ou não. O célebre Dicionário Moraes, no século XIX, já assinalava fraude como um sinônimo de plágio.

Os vários estilos musicais que se sucederam durante séculos possibilitaram aos compositores coevos manterem linguagens bem próximas, a lembrar ao ouvinte ser determinada criação pertencente ao século XVII, XVIII ou XIX, como exemplos, guardando-se, é evidente, as características próprias de cada compositor. A forma e o conteúdo obedeciam a ditames que eram seguidos como normas. Determinadas formas, como FugaSonata, obedeciam às regras. Sob o aspecto subjetivo, dir-se-ia que uma espécie de prana “sobrevoava” diversos estilos de época e tornava-se pouco provável a ausência de eflúvios penetrando as mentes. O mesmo se daria com os costumes, indumentárias, gostos e preferências…

Em outra abordagem, como não associar lembranças que, desde a infância, abastecem a imaginação dos autores. Estou a me lembrar de algo sugestivo, pois ao apresentar em Paris ao insigne musicólogo François Lesure (1923-2001), então curador do Departamento de Música da Bibliothèque Nationale, um texto que seria publicado posteriormente, disse-me ele que um dado que apresentei era um verdadeiro ovo de Colombo (“La vision de l’univers enfantin chez Moussorgsky et Debussy”, in “Cahiers Debussy”. Paris, Centre de Documentation Claude Debussy, nouvelle série nº 9, 1985). Reminiscências de cantos e contos da “niania”, (babá) de Moussorgsky, ficaram gravados indelevelmente, e o tema da “Grande Porta de Kiev”, um quase segundo hino russo, última peça dos célebres “Quadros de uma Exposição”, continha lembrança sensível da célebre canção francesa “Frères Jacques”, exibida magistralmente nessa criação lúdica do grande compositor russo.

Clique para ouvir, de Modest Moussorgsky, os “Quadros de uma Exposição” na interpretação de J.E.M. É tão nítida a alusão a Frères Jacques no último Quadro (29:00)!

https://www.youtube.com/watch?v=dDr75RcRNDw

Respondo ao Álvaro Aparecido que, nesse caso específico, não há plágio, mas sim retorno consciente ou não a tema que ficou perene na mente do compositor.

Outro aspecto a ser considerado é a citação. Seria evidente a existência de citações explícitas de temas que ganharam ampla aceitação pública. Um compositor, ao fazer uma citação de autor, ou então de algum tema anônimo ou não pertencente ao hinário pátrio, ao cancioneiro popular ou mesmo aos cantos da Igreja, fá-lo conscientemente. O tema de Dies Irae (Dia da Ira), datado do século XIII, foi exaustivamente utilizado por inúmeros compositores através da História, preferencialmente nos Réquiens. Entre eles poderíamos citar os Réquiens de Mozart, Liszt, Verdi, Bruckner, Gounod e outros mais. Hector Berlioz também utilizará o tema do Dies Irae na sua célebre Sinfonia Fantástica. Tchaikovsky, na celebrada Abertura 1812, serve-se do tema da Marselhesa e de um outro da época czarista, Deus Salve o Czar. Debussy inúmeras vezes se lembrará de algum tema, pátrio ou não, e La MarseilleseGod save de queenMarcha nupcial de Mendelssohn, Fanfan la  tulipe e tantos mais surgem rapidamente e se esvaem.

O plágio acadêmico, não mencionado no post citado, é algo grave a ser combatido, mas, hélas, muitas vezes de difícil aferição, mercê das inúmeras fontes bibliográficas nem sempre do conhecimento das bancas examinadoras. Impossível tudo conhecer. Todavia, quem assim age com o desiderato de “roubar o sucesso alheio” poderá até progredir na atividade acadêmica, mas, a exemplo daquele que pratica um crime e a ele tende a retornar, dificilmente passará incólume em sua carreira, pois certamente voltará a praticar plágios outros.

A internet fez recrudescer a utilização de vários aplicativos fornecedores de amplo material, geralmente sucinto e majoritariamente sem a profundidade que se faz necessária. A prática provoca, inclusive, colagens tiradas de um sem número de sites que, no caso de falta de seriedade acadêmica, são de difícil detecção por parte de bancas examinadoras de dissertações e teses. Se artigos são destinados às revistas ou publicações científicas, passam por comitês de redação especializados nas diversas áreas, frise-se, e a detecção se torna facilitada, devido inclusive à menor dimensão do artigo acadêmico e à almejada originalidade em texto de síntese.

Sob aspecto outro, já há sistemas internéticos que detectam se determinado segmento de um trabalho acadêmico foi plagiado. O decoro de um pesquisador faz com que, sempre que conceito ou citação não lhe pertença, a nomeação da fonte dignifique a pesquisa. Estou a me lembrar de que, fazendo parte de banca julgadora de um doutorado na FFLCH da USP nos anos 1990, uma meritória tese possuía mais de mil notas de rodapé. Exagero, indagará o leitor. Todavia, a bem fundamentada tese, apesar de quantidade de citações ou esclarecimentos pertinentes, possuía um alto grau de criatividade. Importante considerar que nem sempre a abundância significa sapientia, pois a quantidade pode representar a necessidade de um postulante mostrar-se “senhor da matéria”, possibilidade de camuflar conhecimento, aparência da verdade.

Acredito firmemente que dissertação e tese não envolvem apenas a presença ocasional do plágio. Geralmente essa prática não vem isolada, pois acompanhada de uma redação eivada de problemas. Um bom orientador normalmente conduz o postulante a resultados positivos. Um orientador menos gabaritado não atenta por vezes à quantidade não despicienda de equívocos e falhas de um orientado. Durante minha já distante vida universitária, observava bem a origem originária, o nome daquele que orientou tal candidato ao trabalho acadêmico. Trata-se de uma garantia, sem dúvida.

O plágio se estende igualmente às traduções de parágrafos sem menção ao autor ou mesmo às adaptações possíveis, ausentando-se a citação das fontes que deram origem a um determinado texto.

Álvaro Aparecido menciona em sua mensagem o autoplágio. É ele condenável? Pergunta complexa, pois é possível entender o autoplágio de diferentes olhares. Se considerarmos o genial Mozart (1756-1791), em sua obra para piano ou solo concertante são inúmeras as recorrências às passagens “semelhantes”, mormente as rápidas, que proliferam ao longo de sua existência. Trata-se de seu estilo e o desenrolar da obra evidencia a maestria mozartiana. Poderíamos enumerar um sem número de compositores que assim agiram. No caso acadêmico, a não citação explícita de pesquisa própria bem anterior ou mesmo frases basilares pode sinalizar desvio pouco saudável.

Há legislação que defende o direito do autor e que é acessada principalmente pelas áreas extra-acadêmicas. Plágio e imitação devem ser combatidos. Todavia, camuflados, podem passar despercebidos. Infelizmente, é o mínimo que se pode afirmar.

A reader suggested I write about plagiarism. I reminded him of a previous post in which I addressed the subject (2009). In the present post I give further consideration to this matter.