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Reflexões em Cabana Isolada na Margem Ocidental do Lago Baikal

O que é a solidão?
Uma companhia que serve para tudo.
Sylvain Tesson

Mais uma narrativa de Sylvain Tesson acompanhou-me na recente viagem à Europa. Outras obras do autor narravam as longas caminhadas pelo planeta ou estágios nômades quando de bivaques em altas árvores ou nas cumieiras de igrejas ou catedrais. O pensamento sempre vivo de Tesson, amante da solidão, foi-se transformando ao longo dos anos. Ainda jovem (1972- ), Sylvain Tesson acumulou uma experiência menos voltada ao que agita a vida do citadino e mais intensamente ao que lhe vai à mente através da observação, que leva também à comparação.

Seria possível supor que as narrativas, comentadas em vários livros e resenhadas nos diversos posts, estivessem sob a direta influência do constante movimento. As prolongadas caminhadas de Sylvain Tesson, sob temperaturas extremas, acima e abaixo de zero, faziam-no narrador do cotidiano premente, metamorfoseado a cada dia através de paisagens as mais variadas, dos costumes de povos diferentes, de personagens que cruzavam seu percurso. Ao resenhar para o blog L’Axe du Loup – De la Sibérie à l’Inde sur les pas des évadés du goulag e Petit Traité sur l’Immensité du Monde (28/05/2011), La Marche au Ciel – 5000 km à pied à travers l’Himalaya – em companhia de Alexandre Poussin – (25/02/2012), Éloge de l’Énergie Vagabonde (16/03/2013) e Sous l’Étoile de la Liberté (12/10/2013), ficaria nítida a vocação do geógrafo, andarilho, wanderer, vagabond que observa o mundo que está a ser percorrido, memorizando e transcrevendo, à medida da trajetória, os mínimos detalhes. A reflexão está presente, mas a necessidade de continuar o percurso leva Sylvain Tesson mais acentuadamente à observação das sucessivas imagens, sejam elas de encantamento, de denúncia ou da desesperança. O ato voluntário desse caminhar solitário já não estaria a apontar para o desencanto da vida urbana?

Em Dans les Forêts de Sibérie (France, Gallimard, 2011), Tesson encontra a sua tebaida, que lhe propiciará a emersão do pensador. Como bem diz meu amigo François Servenière, “Tesson é um pensador de nosso tempo, sobre nosso tempo”. Quando de sua caminhada, durante muitos meses, de gulag siberiano a Calcutá, ao margear o lago Baikal em seus 700km de extensão, teve a convicção de que retornaria um dia. Esse regresso dar-se-ia em contexto outro, pois permaneceria em cabana alugada no sul da Sibéria, na margem ocidental do lago, durante parte de inverno, primavera e metade de verão, ou seja, conheceria as transformações sazonais. Meses a passar como eremita. “Os homens que ressentem dolorosamente o tempo passar não suportam o sedentarismo. Em movimento eles se acalmam. O desfilar do espaço lhes dá a ilusão do controle do tempo e suas vidas adquirem o fascínio de uma dança de São Guido. Eles se agitam. A alternativa é o tempo do eremita”.

A voluntária opção pela pequena cabana de madeira (3×3) teve longa gestação. Isolou-se  a dezenas de quilômetros de quaisquer outras cabanas ou povoações. Levou provimentos indispensáveis para a sobrevivência física e 90 livros para a mental. Enumera autores e títulos das obras, assim como todo o material de que dispôs. Não faltaram as muitas garrafas de vodka, fumo e pimenta. “O Tabasco permite que comamos não importa o que, tendo-se a impressão de estar comendo alguma coisa”. Duas janelas. Em frente àquela voltada para leste instala uma mesa e apreciaria o lago e suas metamorfoses. Serve-lhe para tudo: refeições, leitura, escrita e bricollades. “Fechado em seu cubo de madeira, o eremita não suja a Terra. Observa as estações dançarem a giga do eterno retorno. Privado das máquinas, ele cuida de seu corpo. Cortado de toda comunicação, ele decifra a língua das árvores. Liberto da televisão, descobre que uma janela é mais transparente do que uma tela”. O desprezo pela tela evidencia-se em outro contexto:  “Podemos também fechar os olhos. A pálpebra é a tela mais eficaz entre si mesmo e o mundo”. Não poupa a fotografia: “O mundo, obcecado pela imagem, priva-se de degustar as misteriosas emanações da vida. Nenhuma objetiva fotográfica captará reminiscências que uma paisagem desvela em nossos corações”. A visita de dois amigos pintores, que permanecem curto período, fê-lo refletir sobre “a infinita superioridade da pintura em relação à foto. Esta fixa o ponto preciso do instante em seu fluxo de duração e o apresenta já finalizado. Os antigos não estavam totalmente errados ao entender o clichê fotográfico como um roubo. O quadro propõe uma interpretação histórica do momento, que viverá muito tempo sob as pálpebras de quem o contempla. Ele não interrompe o curso do tempo: sua confecção é fluida, inscrevendo-se num longo intervalo de composição”.

À medida que os meses passam, Tesson absorve mais acentuadamente os impactos do entorno. A rotina é quebrada por passeios pela neve espessa ou gelo a  -30 no grande inverno; pelos necessários cortes de pequenas árvores para abastecer a lareira da cabana; pela pesca imperiosa; pelas constantes subidas às montanhas da região (1.500, 2.000m). Uma das frases de seu diário apreende a essência do wanderer ora sedentário, mas sempre curioso: “Apraz-me a ideia de subir as colinas para descobrir o que há do outro lado de meus domínios”. Faz o buraco no gelo e espera. Menciona o salvelino, peixe abundante no lago, e essa é sua principal fonte de proteínas. Periodicamente visita, após caminhadas ou deslizando pelo Baikal durante dias, vigilantes das reservas em torno do lago. Raramente, visitantes forasteiros, caçadores ou pescadores, ao verem a cabana, entram e convivem em torno de defumados e vodka, partindo a seguir. A rotina dimensiona a observação e nada escapa ao olhar de lince do autor, lince sempre mencionado, pois o felino deixa as marcas na neve e Tesson entende-as amigas. Admira, durante primavera e verão, a quantidade de pássaros migratórios. Apologia da vida.

Em forma de diário, Dans les Forêts de Sibérie estende-se de 9 de Fevereiro a 28 de Julho de 2010, ininterruptamente. “Tudo que resta de minha vida são as notas. Escrevo um diário íntimo para lutar contra o esquecimento, oferecer um suplemento para a memória. Se não conseguirmos transplantar fatos e gestos, para que viver: as horas passam, cada dia se apaga e o vazio triunfa. O diário íntimo, operação comando empreendida contra o absurdo”.

Permanecer praticamente sedentário propiciaria a eclosão de pensamentos originais. E seria nessa teia criada em torno do pensamento que emanam qualidades maiores de Sylvain Tesson, como a facilidade de associar imagens e situações; realizar, apesar da pouca idade, um balanço da condição humana; estabelecer fronteiras precisas entre o estressar das cidades e o isolamento a que se propôs. Ferramenta essencial para o bom escritor ou poeta, Tesson, ao utilizar-se da metáfora, dá ao processo a volúpia da metamorfose. “O imprevisto do eremita são seus pensamentos. Rompem o curso das horas idênticas. É necessário sonhar para se surpreender”. Eremita dono de uma “usina” de ideias. Paul Brunton, em Un Ermite dans l’Himalaya (vide post 07/12/2007), observava que o eremita vocacionado tem como objetivo chegar ao êxtase ao conseguir ter apenas um pensamento, fazendo evaporar outros simultâneos. Trata-se, segundo Brunton, de missão quase impossível. Pouquíssimos conseguem através da ascese. A mente de Tesson é povoada de ideias e pensamentos, contrariamente ao que escreve Brunton.

A mensagem eletrônica da amada que rompe relação leva Tesson à depressão. Durante dias, seu diário registra o desalento a partir do despertar: “quando acordo, ainda na alvorada, há o momento agradável, instante a preceder a consciência a se lembrar e o coração se contrair”. Refugia-se na leitura: “Os livros são mais confiáveis que a psicanálise. Eles dizem tudo, melhor do que a vida. Numa cabana, misturados à solidão, formam coquetel lítico perfeito”.

Na cabana não se tem a obrigação de reagir a tudo. Evita-se, segundo o autor, a resposta às questões. Entende o caráter agressivo de uma conversação. Ser obrigado a responder ao interlocutor. Afirma que “todo diálogo é uma luta”. O isolamento e os poucos contatos com russos, que habitam outras moradias distantes, fê-lo atento à característica por ele entendida como fundamental à alma russa, “o acolhimento resignado de qualquer coisa”. Tesson  designa esse estado de alma como pofigisme, sem tradução em francês, tampouco, ao que saiba, em português.

Dois cães fizeram-lhe companhia nas derradeiras semanas. Terá de deixá-los em lugar seguro antes do retorno à França. A eles se afeiçoa. Três dias antes da partida (26 de Julho), deposita em seu diário suas mais íntimas confissões. Refletem o metamorfose após a longa estadia. Profissão de fé.

“Eu vim até aqui sem saber se teria força para ficar e parto a saber que voltarei. Descobri que habitar o silêncio é rejuvenescer. Apreendi duas ou três coisas que muitos sabem sem recorrer ao isolamento. A virgindade do tempo é um tesouro. O desfilar das horas é mais trepidante que o devorar quilômetros. O olhar não se cansa jamais de um espetáculo esplendoroso. Mais conhecemos as coisas, mais elas se tornam belas. Encontrei dois cães, alimentei-os, um dia eles me salvaram. Falei aos cedros, pedi perdão aos salvelinos e pensei nos meus. Fui livre, pois, sem o outro, a liberdade não conhece limites. Contemplei o poema das montanhas e bebi chá enquanto o lago tintava cores. Matei o desejo do futuro. Respirei o suspiro da floresta e segui o arco da lua. Penei na neve e esqueci minha pena no alto das montanhas. Admirei a velhice das árvores, cativei mésanges (passarinho),  entendi que tudo que não faz reverência à beleza é vaidade. Dirigi o olhar para a outra margem. Conheci semanas de neve silenciosa. Amei ter calor em minha tebaida enquanto a tempestade descarregava seu rancor. Saudei o retorno do sol e dos patos selvagens. Tirei a carne de peixes fumegantes e senti a gordura dos ovos de salvelinos refrescando minha garganta. Uma mulher me disse adeus, mas as borboletas pousaram sobre mim. Vivi as mais belas horas de minha vida até a recepção de uma mensagem e as mais tristes após. Inundei a terra com minhas lágrimas. Perguntei-me se seria possível obter a nacionalidade russa, não pelo sangue, mas pelas lágrimas vertidas. Assoei sobre o musgo. Esvaziei litros de veneno a 40º e gostei de urinar em frente da Buriácia. Aprendi a sentar-me diante de uma janela. Fundi-me ao meu reino, sentindo o odor do líquen, comi alho selvagem e cruzei com ursos pelos caminhos. Minha barba cresceu, o tempo a desfiou. Deixei a cova das cidades e vivi seis meses na igreja das taigas. Seis meses como uma vida. É bom saber que, numa floresta do mundo, bem longe, há uma cabana onde qualquer coisa é possível, situada não muito distante da alegria de viver”. Tradução: JEM.

O leitor poderá assistir a um longo documentário abordando a temática de Dans les Forêts de Sibérie. Sylvain Tesson narra sua saga solitária e a sobrevivência nesses meses de isolamento. Vale a pena conferir.

Comments on the book “Dans les Forêts de Sibérie” (translated into English as “The Consolations of the Forest: Alone in a Cabin on the Siberian Taiga”), written by the French geographer and explorer Sylvain Tesson. He gives an account of his six-month exile to a wooden cabin on the banks of Lake Baikal in a sub-zero temperature. Alone with his books and two dogs, he reads, fishes, collects logs, drinks vodka, wanders around in communion with nature and writes the book, a thought-provoking study of vanity, ultimate solitude and the pleasures of being the master of his own time.

 

 

 

Visita que Marcou

Poema Breve
Como um céu protector
a pequena buganvília
estende seus ramos em flor

Beleza pura
e silenciosa
bebendo
as gotinhas de chuva
desta tarde misteriosa
Idalete Giga (Para José Eduardo e Regina, 03/Fev/2014)

Ao longo destes quase sete anos de convívio com o leitor inúmeras foram as oportunidades em que escrevi sobre Idalete Giga, não apenas mencionando-a quando de minhas viagens a Portugal para atividades musicais, mas também inserindo algumas poesias e contos da amiga alentejana.

Foi em casa da notável musicóloga portuguesa Júlia d’Almendra (1904-1992) que conheci Idalete, no longínquo 1981. Admirava sua competência quando, por vezes, substituía a grande mestra na condução do coro gregoriano durante as missas aos domingos na Igreja de Santo Antônio, em Lisboa. Fidelíssima aluna de Júlia d’Almendra, permaneceu sempre a seu lado, a receber ensinamentos e a reconfortá-la quando injusto golpe de ordem ético-moral atingiu a professora que fundara o Instituto Gregoriano de Lisboa. Júlia já adentrara largamente os 80 anos. É Idalete que, após a morte de Júlia d’Almendra, preside com rara dedicação o Centro Ward de Lisboa, dirigindo também, desde 1997, as Semanas de Estudos Gregorianos, tradicional encontro de aprofundamento fundado pela mestra.

Até a morte de Júlia, sempre que me deslocava a Portugal encontrava-a, e inúmeras foram as vezes em que Júlia, Idalete e eu almoçamos ou jantamos no Ribadouro, tradicional restaurante situado na Av. Liberdade, junto ao metrô Avenida. Até presentemente, a cada viagem jantamos, ao menos uma vez, no Ribadouro, hoje acompanhados de Regina e fiéis amigos, entre os quais o notável musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso e sua esposa Manuela.

Alguns dados tornam-se necessários. Natural do Ciborro, freguesia do Concelho de Montemor-o-Novo, essa alentejana da gema tem percurso musical que a recomenda. Licenciada em Ciências Musicais pela Universidade Nova de Lisboa e doutoranda em Ciências da Educação pela Universidade de Évora, Idadele Giga lecionou de 1991 a 2007 no Departamento de Pedagodia e Educação desta universidade. A docência não impediria sua intensa participação na atividade coral, uma de suas especialidades. Considere-se que atuou durante 35 anos como coralista do afamado Coro da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Inúmeros artigos escreveu a abordar suas áreas de atuação e traduziu, adaptando para a Língua Portuguesa, várias obras referentes à pedagogia musical de Justine Ward (1879-1975), pedagoga e pianista americana que criou o conhecido Método Ward, tão eficaz no ensino da Música para crianças do período escolar.

Amante das tradições alentejanas, Idalete participou de livro no qual descreve, entre outras figuras femininas ilustres, o perfil da consagrada poetisa Florbela Espanca (vide post “Mulheres do Alentejo na República”, 28/01/2012). Sonhadora, escreve lindos poemas e, atenta, não perde a oportunidade para a crítica arguta à degeneração ético-moral dos condutores políticos em terras lusíadas, no Brasil e no mundo. Enfim, uma empolgada defensora dos valores que estão, de há muito, estiolando-se.

Quando de minha penúltima viagem a Portugal, em Setembro último, dizia-me Idalete de um curso que ofereceria em fins de Janeiro em Nova Friburgo, no Estado do Rio de Janeiro, a abordar o canto gregoriano, entre outros temas. Regressaria a seguir ao seu país. Convidei-a na oportunidade a passar uma semana em nossa casa, na cidade-bairro Brooklin-Campo Belo. Aquiesceu. Uma grande alegria.

O convívio nesse período serviu para inúmeros gestos de pleno congraçamento com Regina, filhas, netas, genro e  amigos, que tiveram algum tipo de contato com Idalete ao longo dos anos. Apesar da canícula que nos assolou, não faltou alusão ao conhecido verão na planura alentejana, tão intenso quanto o que sofremos ultimamente. Música, tradições de sua região, literatura foram temas debatidos com entusiasmo. A ilustre especialista em canto gregoriano mostrou talentos por mim desconhecidos. Comprou um bandolim em São Paulo, trouxe consigo a sua gaita de boca, instrumento que lhe é caro desde a mais tenra idade, escreveu poemas e instigante texto para jograis. Minhas filhas e eu, em reunião familiar a contar também com poucos amigos da maior estima, recitamos o texto. Um enorme prazer a leitura de Zoprotikaviform e o Reino da Quantidade (sátira para três jograis), em que Idalete, com arguto senso de humor, faz a crítica a medicamentos que, lançados, têm de ser retirados do mercado por apresentar problemas graves à saúde, mas que logo a seguir são substituídos por outros.

A dileta amiga, nessas horas passadas no convívio amistoso, tocou bandolim e gaita de boca. Exímia executante,  brindou-nos com uma série de peças do folclore alentejano, valsas, melodias amorosas e uma polca que, à medida  que acelerava, levou netas, filhas, genro e eu à dança.

Idalete Giga continuará a visitar meus posts, assim como acontece com François Servenière e outros leitores. Eles têm sempre muito a dizer e, quando se faz oportuno, é com alegria que insiro opiniões pertinentes.

A amizade e o congraçamento não continuam a ser esteios que nos levam a ainda acreditar? Em Portugal,  quando amigos são sinceros, escreve-se a palavra com A maiúsculo. Significa tanto…

Idalete Giga and I have been friends since 1981. We first met  at the house of her teacher, the renowned Portuguese musicologist Julia d’Almendra. Both have impressive résumés in the area of pedagogy and choral direction. After giving a seminar in the city of New Friburgo, she spent a few days in my house in São Paulo. After all these years of friendship, she still surprised us with her knowledge of folk music from Alentejo and hidden talents in singing and playing the harmonica and the mandolin.

 

 

 

 

 

 

Buscando Responder a Indagações

O destino é muito curioso das liberdades que se tomam.

Crê com todo o teu ser;
só assim terás atingido o máximo da dúvida.
Agostinho da Silva

O post anterior resultou em recepção interessada no conhecimento mais amplo do pensamento de Sylvain Tesson e nas razões de ter eu feito analogias com determinadas condições do intérprete frente ao repertório.

Deixaria claro que tais considerações estariam mais próximas da maneira como Tesson – wanderer, vagabond, andarilho – entende as empreitadas longas, preferencialmente solitárias, mas a buscar intensamente horizontes desconhecidos. Se por motivos tantos transita esporadicamente em terras já percorridas, não seria o mesmo caminho a ser traçado, mas  convergências de sendas que o levam, por vezes, ao entroncamento. É o caso do lago Baikal, na Sibéria, quando da longa travessia do escritor, de um gulag à Calcutá, e, mais tarde, a servir de diversificada paisagem nas várias estações, pois Tesson fixa-se durante muitos meses em pequena cabana de madeira a noroeste do grande lago. A primeira impressão, sete ou oito anos antes da longa estadia, “inocula em mim a certeza de que voltaria a ver esses lugares”. Não seria essa a impressão bem próxima àquela do intérprete “andarilho repertorial” quando tem a premonição de que regressará um dia à obra já visitada, mas sob outro contexto? Em se tratando da música, técnica e repertório são acúmulos de conhecimento. Aperfeiçoa-se a primeira, alarga-se a segunda. Contudo, se a mente de certos intérpretes está sempre a vislumbrar novos horizontes, mercê da criatividade de tantos compositores quase desconhecidos ou daqueles divulgados amplamente, mas com inúmeras outras preciosas composições mergulhadas no esquecimento, essa viagem “sedentária” se realiza, e a obra adquire o sentido para que a meta seja atingida. Horizonte transposto jamais esquecido, doravante incorporado.

Nos quase dez livros de Tesson lidos nestes últimos anos tenho tentado harmonizar algumas de suas reflexões através de comparações com a atividade do intérprete, ávido do desconhecido. Dizer que não gostaria também de realizar essas caminhadas tão longas ou estágio prolongado, como o do lago Baikal, seria fugir à verdade. Compenso essa impossibilidade real através da viagem mental e, para citar só Portugal, apenas uma vez repeti programas pianísticos entre dezenas apresentados, grande parte deles inéditos em terras lusíadas. O mergulho tem de acontecer voluntariamente, pois, para qualquer atividade a que o homem se propõe, teria ele de estar, in conditio sine qua non, sob a égide amorosa. Meu dileto amigo, compositor e pensador François Servenière, admirador igualmente da obra de Sylvain Tesson, escreveu-me ao ler o último post: “Tem ele a felicidade de assim viver, carreira brilhante e magnífico percurso. Escreve extraordinariamente bem. Tem razão de continuar. Tesson abre trilhas na cabeça dos leitores. Sempre admirei os grandes viajantes. É esse também meu destino, o mais caro, e minha vocação inseparável da música. Ele é um grande pensador de nosso tempo, sobre nosso tempo”. Não estou só, pois, nessa associação que faço permanentemente com a atividade sonora.

Apraz-me, na obra literária de Sylvain Tesson o universo metafórico exemplar. As comparações nascem a cada parágrafo, fazendo-me lembrar aquelas de Saint-Exupéry, estas sob o manto estelar, assim poderia definir. A metáfora é uma das ferramentas mais paradoxais utilizadas na literatura. Se o talento bafejou o escritor, as analogias e o imaginário ganham dimensão. Se não, há pieguice que beira o ridículo. Acredito que, para a interpretação condizente de uma partitura, o universo metafórico é elemento essencial. “A música é poesia incorpórea”, segundo Guerra Junqueiro. Grandes pianistas do século XX souberam captar o subjetivo que sobrevoa a partitura, promovendo a leitura que expressa a recriação – supondo-se sempre a fidelidade ao texto -, a transmissão que atinge o ouvinte. Um deles foi Alfred Cortot (1877-1962), que, ao realizar edição das obras de Chopin, Liszt e Schumann para as Edições Salabert,  em Paris, fê-la inserindo textos, frutos de longo debruçamento e a estimular o pianista nessa viagem metafórica rumo ao universo musical.

A música programática, como exemplo, em que o compositor insere frases sobre o discurso musical sugerindo o amálgama, pode, sob outra égide, levar à metáfora, a depender da imaginação do intérprete. Contudo, o que se ouve mais e mais é a interpretação a desviar-se desse campo subjetivo, tornando-se tantas vezes pasteurizada ou robotizada. Em reiteradas posts frisei que se torna fundamental o conhecimento além da partitura e o estudo de um autor, seus textos, cartas, entrevistas, gostos, preferências artísticas como fontes indispensáveis, que devem ser apreendidas pelo intérprete. Ajuda-o na edificação de uma obra.

As narrativas de Sylvain Tesson a partir de suas viagens a lugares inóspitos fizeram com que extensas áreas geográficas, conhecidas preferencialmente a partir de mapas, fossem divulgadas através de seus personagens, habitantes dessas plagas. Tem-se reflexões de um meticuloso observador. Ou seja, há ainda muito a se contar sobre terras e habitantes de nosso minúsculo planeta. Não ocorre situação semelhante frente às partituras que nos são inéditas? Importa estar atento e não esmorecer diante do constante desafio, pois como bem dizia a grande pianista Marguerite Long, “nada resiste ao trabalho”.

Dedicar-me ao generoso passado ignoto e estudar também a contemporaneidade já não é gratificante missão? A alegria maior é saber que, a certa altura, outros músicos, conhecedores de algumas obras desveladas nessas últimas décadas, procuram-me, solicitando informações ou partituras pouco frequentadas. Diria que é apenas um grão de areia, pois pelo mundo há inúmeros intérpretes que buscam fugir da mesmice repertorial, apesar de dominarem as obras mais conhecidas do grande público.

Como bem avalia Sylvain Tesson, em todas as áreas é possível a abertura. Para tanto, só haveria um eficiente remédio: arejar a mente.

Analogies between Sylvain Tesson’s role as a pathfinder, traveling to remote areas of the globe and unveiling to the public local culture and customs, and the work of an interpreter who devotes his life to bring to light little known works of talented composers.