Buscando Responder a Indagações

O destino é muito curioso das liberdades que se tomam.

Crê com todo o teu ser;
só assim terás atingido o máximo da dúvida.
Agostinho da Silva

O post anterior resultou em recepção interessada no conhecimento mais amplo do pensamento de Sylvain Tesson e nas razões de ter eu feito analogias com determinadas condições do intérprete frente ao repertório.

Deixaria claro que tais considerações estariam mais próximas da maneira como Tesson – wanderer, vagabond, andarilho – entende as empreitadas longas, preferencialmente solitárias, mas a buscar intensamente horizontes desconhecidos. Se por motivos tantos transita esporadicamente em terras já percorridas, não seria o mesmo caminho a ser traçado, mas  convergências de sendas que o levam, por vezes, ao entroncamento. É o caso do lago Baikal, na Sibéria, quando da longa travessia do escritor, de um gulag à Calcutá, e, mais tarde, a servir de diversificada paisagem nas várias estações, pois Tesson fixa-se durante muitos meses em pequena cabana de madeira a noroeste do grande lago. A primeira impressão, sete ou oito anos antes da longa estadia, “inocula em mim a certeza de que voltaria a ver esses lugares”. Não seria essa a impressão bem próxima àquela do intérprete “andarilho repertorial” quando tem a premonição de que regressará um dia à obra já visitada, mas sob outro contexto? Em se tratando da música, técnica e repertório são acúmulos de conhecimento. Aperfeiçoa-se a primeira, alarga-se a segunda. Contudo, se a mente de certos intérpretes está sempre a vislumbrar novos horizontes, mercê da criatividade de tantos compositores quase desconhecidos ou daqueles divulgados amplamente, mas com inúmeras outras preciosas composições mergulhadas no esquecimento, essa viagem “sedentária” se realiza, e a obra adquire o sentido para que a meta seja atingida. Horizonte transposto jamais esquecido, doravante incorporado.

Nos quase dez livros de Tesson lidos nestes últimos anos tenho tentado harmonizar algumas de suas reflexões através de comparações com a atividade do intérprete, ávido do desconhecido. Dizer que não gostaria também de realizar essas caminhadas tão longas ou estágio prolongado, como o do lago Baikal, seria fugir à verdade. Compenso essa impossibilidade real através da viagem mental e, para citar só Portugal, apenas uma vez repeti programas pianísticos entre dezenas apresentados, grande parte deles inéditos em terras lusíadas. O mergulho tem de acontecer voluntariamente, pois, para qualquer atividade a que o homem se propõe, teria ele de estar, in conditio sine qua non, sob a égide amorosa. Meu dileto amigo, compositor e pensador François Servenière, admirador igualmente da obra de Sylvain Tesson, escreveu-me ao ler o último post: “Tem ele a felicidade de assim viver, carreira brilhante e magnífico percurso. Escreve extraordinariamente bem. Tem razão de continuar. Tesson abre trilhas na cabeça dos leitores. Sempre admirei os grandes viajantes. É esse também meu destino, o mais caro, e minha vocação inseparável da música. Ele é um grande pensador de nosso tempo, sobre nosso tempo”. Não estou só, pois, nessa associação que faço permanentemente com a atividade sonora.

Apraz-me, na obra literária de Sylvain Tesson o universo metafórico exemplar. As comparações nascem a cada parágrafo, fazendo-me lembrar aquelas de Saint-Exupéry, estas sob o manto estelar, assim poderia definir. A metáfora é uma das ferramentas mais paradoxais utilizadas na literatura. Se o talento bafejou o escritor, as analogias e o imaginário ganham dimensão. Se não, há pieguice que beira o ridículo. Acredito que, para a interpretação condizente de uma partitura, o universo metafórico é elemento essencial. “A música é poesia incorpórea”, segundo Guerra Junqueiro. Grandes pianistas do século XX souberam captar o subjetivo que sobrevoa a partitura, promovendo a leitura que expressa a recriação – supondo-se sempre a fidelidade ao texto -, a transmissão que atinge o ouvinte. Um deles foi Alfred Cortot (1877-1962), que, ao realizar edição das obras de Chopin, Liszt e Schumann para as Edições Salabert,  em Paris, fê-la inserindo textos, frutos de longo debruçamento e a estimular o pianista nessa viagem metafórica rumo ao universo musical.

A música programática, como exemplo, em que o compositor insere frases sobre o discurso musical sugerindo o amálgama, pode, sob outra égide, levar à metáfora, a depender da imaginação do intérprete. Contudo, o que se ouve mais e mais é a interpretação a desviar-se desse campo subjetivo, tornando-se tantas vezes pasteurizada ou robotizada. Em reiteradas posts frisei que se torna fundamental o conhecimento além da partitura e o estudo de um autor, seus textos, cartas, entrevistas, gostos, preferências artísticas como fontes indispensáveis, que devem ser apreendidas pelo intérprete. Ajuda-o na edificação de uma obra.

As narrativas de Sylvain Tesson a partir de suas viagens a lugares inóspitos fizeram com que extensas áreas geográficas, conhecidas preferencialmente a partir de mapas, fossem divulgadas através de seus personagens, habitantes dessas plagas. Tem-se reflexões de um meticuloso observador. Ou seja, há ainda muito a se contar sobre terras e habitantes de nosso minúsculo planeta. Não ocorre situação semelhante frente às partituras que nos são inéditas? Importa estar atento e não esmorecer diante do constante desafio, pois como bem dizia a grande pianista Marguerite Long, “nada resiste ao trabalho”.

Dedicar-me ao generoso passado ignoto e estudar também a contemporaneidade já não é gratificante missão? A alegria maior é saber que, a certa altura, outros músicos, conhecedores de algumas obras desveladas nessas últimas décadas, procuram-me, solicitando informações ou partituras pouco frequentadas. Diria que é apenas um grão de areia, pois pelo mundo há inúmeros intérpretes que buscam fugir da mesmice repertorial, apesar de dominarem as obras mais conhecidas do grande público.

Como bem avalia Sylvain Tesson, em todas as áreas é possível a abertura. Para tanto, só haveria um eficiente remédio: arejar a mente.

Analogies between Sylvain Tesson’s role as a pathfinder, traveling to remote areas of the globe and unveiling to the public local culture and customs, and the work of an interpreter who devotes his life to bring to light little known works of talented composers.