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Um Modelo a Ser Seguido

“[...] (chegamos) à lamentável conclusão
de que nem os portugueses conhecem nada da música brasileira,
nem os brasileiros têm notícia alguma da música portuguesa,
ou, pior do que isso:
que o que nós conhecemos da música do Brasil se reduz ao samba,
que  o que eles [...] conhecem da música de Portugal se limita ao fado. [...]“
Fernando Lopes-Graça (1906-1994)

As agências internacionais de concertos
apoderaram-se inteiramente da nossa vida musical,
onde colocam (por vezes a peso de ouro) o êxito acumulado do “centro”.
E nem sequer passa pela cabeça das instituições e dos seus “programadores”
que Brasil e Portugal, juntos,
bem podiam criar uma nova dinâmica de efectivo intercâmbio
que se projectasse não só no espaço cultural luso-brasileiro,
mas também para fora dele.
Mário Vieira de Carvalho (1943-  )

Uma das dificuldades da propagação da cultura musical erudita em alto nível reside na superficialidade, despreparo ou razões outras que impedem a confiabilidade do que merece ser transmitido. Revistas, periódicos ou guias tantas vezes meritórios perecem após alguns números, outros mais subsistem fazendo concessões de toda sorte e a realidade mostra-se sombria. Publicações, arbitradas ou não, de música de concerto, erudita, clássica e outras mais designações teriam de apresentar  em seus quadros, preferencialmente, membros da área, conhecedores do que se passa em uma partitura. A experiência da escuta é apenas uma entre tantas e tê-la como única salvaguarda é temeroso. Não se exige conhecimento específico em áreas como a Medicina, Direito, Engenharia? Sob a égide acadêmica, nas poucas revistas existentes no Brasil e em Portugal, a endogenia, esse mal que impede o arejamento das ideias e a comparação que enriquece, é realidade constante. Fato. O compadrio universitário propicia malefícios claros.  

“Glosas” nasceu bem em terras lusíadas.  Inicialmente voltada à cultura musical portuguesa, diversificou-se com o tempo. Recentemente a Direção criou o Conselho Científico Lusófono e três núcleos foram formados: africano/asiático, brasileiro e português. Fazem parte do segundo, por ordem alfabética nos créditos da revista: José Eduardo Martins, Paulo Castagna, Ricardo Tacuchian e Susana Igayara. Destes, Susana pertence ainda ao Grupo de Comunicação e Pesquisa  e, de minha parte, recebi o honroso convite para ter uma coluna em cada número, unicamente a tratar da música portuguesa ou de relacionamentos pátrios a envolver a cultura musical dos dois países. Terá como título “Ecos d’Além Mar”. A Revista é quadrimestral e o nº 7 (Janeiro), recebi-o apenas nestes dias, fruto do atraso de nossos correios, pois outras correspondências vindas d’outros países também têm tardado. Por enquanto, nada a fazer.

O número em questão tem matérias relevantes e entre estas destacamos o núcleo temático (44 páginas) sobre o importante compositor Frederico de Freitas (1902-1980), com várias colaborações que enriquecem o conhecimento ainda pequeno que se tem do músico em Portugal. Lembro ao leitor que, em 2012, minha mulher, a pianista Regina Normanha, apresentou em várias cidades portuguesas a encantadora coletânea de Frederico de Freitas, “O Livro de Maria Frederica”, 36 pequenas peças à la manière do “Álbum para a Juventude”, de Robert Schumann. Na década de 1980 adotei-o, juntamente com “Música de Piano para Crianças” de Fernando Lopes-Graça,  nos meus cursos de piano complementar na Universidade de São Paulo. Não tive seguidores. A registrar.

Temas de grande interesse para a cultura musical portuguesa estão pouco a pouco sendo tratados. Glosas fornece textos cuidadosos que remetem ao organista e professor Antoine Sibertin-Blanc (1930-2012), nascido em França e figura ímpar no ensino e divulgação do órgão em Portugal; ao notável compositor Marcos Portugal (1762-1830), mercê de homenagens prestadas por ocasião dos 250 anos de nascimento e a partir de iniciativas de exposição e publicações empreendidas pela Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) juntamente com o Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (CESEM); às entrevistas com músicos portugueses atuantes: o grupo “Músicos do Tejo”, aos pianistas Ricardo Vieira e Tomohiro Hata, divulgadores da música portuguesa e japonesa mundo afora; às conversas com compositores de Portugal (Daniel Moreira e Nuno da Rocha); ao debruçamento sobre a música de câmara de Luiz Costa; ao fundamental texto “Introdução à História da Música em Portugal”, de Maria Augusta Barbosa (1912-2012), traduzido do original em alemão por Otto Solano. De 2007 é o substancioso pronunciamento de Rui Vieira Nery sobre a importância da professora Maria Augusta Barbosa, fundadora das Ciências Musicais em Portugal e a primeira portuguesa que se doutorou nessa área. O compositor Sérgio Azevedo analisa com acuidade devida o conto musical de Fernando Lopes-Graça, “A menina do mar” (1958-59). Colaboradores competentes imprimem respeitabilidade a todos os textos inseridos em Glosas.

Em tantos posts tenho ratificado posição crítica ao descaso quase absoluto que nossos meios de divulgação dispensam à música portuguesa de concerto. Quando sempre, colocam estandartes em raros intérpretes portugueses que realmente nada fazem pela música composta em Portugal, sendo pois executantes que se deslocam pelo planeta a apresentar o repertório sacralizado clássico-romântico de países ao norte das terras lusíadas ou da Espanha. Em seus certificados de nascimento consta que são portugueses. Nada mais. E de pensar que tantos são os intérpretes portugueses de valor que interpretam a excelente música erudita do país e que nunca são convidados por nossas sociedades de concerto! Situação vexatória! As atrações para as sociedades que agendam concertos no Brasil e em Portugal são as mesmas. O Sistema conhece bem a manutenção da mesmice. Mantê-la é sobreviver! Também, hélas, nada a fazer, ao menos por enquanto.

Na contramão desse descaso, é de grande relevância o fato de Glosas prestar homenagem a dois compositores brasileiros. Susana Cecília Igayara, em arguto e inteligente artigo, pormenoriza-se em Oscar Lorenzo Fernández  (1897-1948) na preciosa seção “Compositores a descobrir”. Consegue a pesquisadora traçar perfil bem amplo do compositor para os leitores de Glosas. O Diretor da revista, Edward Luiz Ayres de Abreu, por sua vez, esteve no Rio de Janeiro e São Paulo. Na antiga capital entrevistou o compositor Ricardo Tacuchian (1939- ) em recinto emblemático, o Real Gabinete  Português de Leitura. Ayres de Abreu formulou perguntas a abranger a trajetória do ilustre criador, maestro e professor brasileiro. Bem conhecido em Portugal através da apresentação de suas obras, conferências e participação em bancas nas principais universidades portuguesas, Ricardo Tacuchian sentiu-se à vontade e seus depoimentos revestem-se de rico material nessa imprescindível ligação cultural Brasil-Portugal.

A presença do Conselho Científico Lusófono deverá incrementar certamente uma ligação que de há muito se faz necessária entre os países que comungam a língua portuguesa. Inventariar as manifestações musicais e seus partícipes nas mais variadas áreas poderá estabelecer, com o passar dos anos, documentação invejável. Temos muito a dizer. Nossas histórias precisam formar elos de união.

Os próximos números, Maio e Setembro, já têm núcleos temáticos agendados: Clotilde Rosa, conceituada compositora contemporânea portuguesa, e o compositor romântico brasileiro Henrique Oswald, respectivamente.   

 An appreciation of issue nº 7 of Glosas, the music magazine with news, interviews and articles covering the world of classical music in the community of Portuguese language countries.

Gilberto Mendes e o Romance

O que interessa na vida não é prever os perigos das viagens;
é tê-las feito.
Agostinho da Silva

O nosso grande compositor Gilberto Mendes, nos seus 90 anos de idade, continua a causar impacto. A composição flui viva em sua pena clara, sem subterfugios, direta, a expor sua mensagem sonora rica e diversificada. O compositor tem suas preferências nítidas que não ficam enclausuradas unicamente na criação de seus ilustres ascendentes musicais, mas viajam para outras latitudes e o cinema, o jazz band, o mar de sua Santos eterna servem de subsídios que, transfigurados, aportam em seu vasto catálogo. É surpreendente seu interesse por tudo que o cerca. Hoje não mais viaja para o Exterior. Entende o seu tempo físico, que, apesar de não o desapontar, tem regras inexoráveis. Ideia e criação desafiando o tempo implacável. Gilberto personaliza o pulsar vulcânico controlado, mas constante. As lavas são jorradas das entranhas de seu criar, em absoluta concordância com o outro Gilberto, o do cotidiano, que merece a admiração e o carinho de todos os que têm o privilégio de com ele conviver.

Em meados do ano passado fui visitá-lo em Santos. Com regularidade estamos em contato, mormente por telefone. Durante o almoço, a saborear ostras em restaurante da maior confiança de Gilberto, confessou-nos, à minha mulher e a mim, que estava a finalizar um romance. Romance? – perguntei-lhe pasmo. Dois posts dedicados à sua obra literária, na qual Gilberto narra sua odisséia musical vivida sem alterações fantasiosas, testemunham minha sempre admiração pelo colega e amigo (vide posts de 13/10/2007 e 04/04/2009). A viagem literária do compositor, a brotar da imaginação, surgiu-me no instante como fato inédito. E é. Aos 90 anos!!! Gilberto disse-me à altura que procurou divertir-se ao criar personagens para Danielle em Surdina, Langsam (São Paulo, Algol, 2013). E como se diverte. Mas se é fim deste post o conhecimento desse talento que desabrocha, não o é, entretanto, o panegírico tout court.  Lembraria que “langsam” é palavra germânica bem utilizada na terminologia musical e tem correspondentes em outras línguas: lento, lent, slow. Enigmático en surdine… Como não pensar em Paul Verlaine  (Fêtes Galantes) ou Charles Baudelaire? 

O romance de Gilberto Mendes não tem o manejo linguístico e formal de especialistas do ofício. Nem poderia tê-lo. Seria pedir muito àquele que destinou sua vida às sonoridades, à palavra que serviria aos seus desideratos musicais e à cena teatral em função de uma adequação à mensagem musical e estética. Danielle… sintetiza muitos dos devaneios gilbertianos, que percorrem dezenas de títulos em suas composições. Nestes, Gilberto é insólito, desconcertante, divertido ou trágico. Quem neste país fez o mesmo com tanta naturalidade?  O pente de Istanbul; Ulysses em Copacabana surfando com Doroty Lamour e James Joyce; Um Estudo?  Eisler e Webern caminham nos mares do sul;  Santos Football Music; a tragédia em Cubatão, Vila Socó meu amorVers les joyeux tropiques, avec une musique vivante, théatrale! e tantos outros revelam o observador da vida em sua acepção. Dir-se-ia que o criador de imagens sempre esteve definido. Sob outra égide, sua pena firme e crítica comentou durante decênios concertos e denunciou irregularidades a contagiar a sociedade. O homem em sua convicta ideologia de esquerda não se furtaria a apontar descasos culturais e sociais de variadas origens. Mas jamais com o ranço que caracteriza tantos adeptos.

Danielle em Surdina, Langsam, passa-se em dois tempos, numa espécie de forma bipartida,  mas com alternâncias geográficas. O “tempo” de Danielle… obedece ao presente (Alemanha) e ao passado (Santos). Em todo o curto romance o personagem central,  Mathias Emmanuel, se vê frente à reminiscência. A realidade é o instante do acontecido. Fundem-se os tempos e o presente renascido encontra final surpreendente.

Impressiona a vitalidade imaginativa de Gilberto Mendes. O personagem Mathias Emmanuel é músico e o autor o acompanha dos primórdios pianísticos em Santos até o porto final,  Alemanha, no qual estaria definitivamente radicado como compositor alemão. O alerta já se apresenta no peristilo do livro. Há, no personagem criado por Mendes, um misto de alter ego e de ecos dos anos 1930-1940. Lugares caros a Gilberto em sua cidade berço, situações vividas e encontráveis nas sua “biografias” reais, mas metamorfoseadas, a depender das circunstâncias, a lembrança lúdica da infância e adolescência em que a música para Mathias Emmanuel estaria amalgamada à descoberta do perfil feminino em sutilezas por vezes sensuais,  “olhar os joelhos e pernas das colegiais”, a libido a confundir-se com amor, mas a propiciar o conhecimento. Pureza, temor, arrojo, concretude, seja nos braços de uma prostituta que se parecia com Hedy Lamarr, seja no observar  uma estudante adolescente, Danielle, paixões mensuráveis em contextos diferentes. Essas situações provocam no leitor a indagação, deixando-o estupefato, tal  é o jogo de palavras. Surpresa acompanhar a lista de sinônimos que Mathias elabora na Alemanha para termos como meretriz e casa de tolerância. Gilberto parece se divertir nessas recordações, que todo adolescente ao menos conhece em parte. Mathias Emmanuel, em noite insone em Dresden, recorda-se da quantidade de agências de vapores que adentram pela Ponta da Praia. Enumera-os, assim como o nome dos navios que aportavam, lentamente. Gilberto converte essa listagem na transcendência humana do observar. A matéria banal a volatizar-se na poética imaginação.

Danielle… encanta pelos instantes fantasiosos, trágicos, libidinosos, puros. Os personagens flutuam como névoas nessa viagem através das décadas. Desfilam pelo romance, esporadicamente, nomes que marcaram a música no século XX, tanto a erudita como a popular, e Mathias “julgava as músicas populares norte-americanas e alemãs como as duas faces de uma mesma moeda, algo de certo modo também erudito. As outras seriam músicas populares propriamente ditas”. Devaneia num universo lúdico-sonoro-sensorial.

A guardar as muito devidas contextualizações, Romain Rolland, no belo e caudaloso romance Jean-Christophe, não sacraliza Beethoven jovem? A seguir, na continuação da saga do personagem até a morte, não realiza essa simbiose música-destino, esperança e amor estiolados, sendo a música a única fiel companheira? No breve Danielle em surdina, langsam, Mathias Emmanuel ratifica a imagética de Gilberto e sonha como Jean-Christophe. Se este tem final solitário, Mathias tem surpresas.

É deliciosa a leitura do romance de Gilberto Mendes, mormente ao sabê-lo pleno de entusiasmo pela vida em história reveladora de alguns de seus segredos. Desvelados? Não diria. Há mistérios insondáveis em Gilberto Mendes. Mathias Emmanuel e “Danielles” encantam, e o desdobramento final surpreende. Leitura prazerosa. Gilberto…

Gilberto Mendes, one of the most prominent Brazilian composers, has just published a novel called “Danielle en Surdine, Langsam”. This post is about his book, a light and engaging reading in which fiction and Mendes’ own experiences are intertwined: the hero is a young musician who has spent his childhood and adolescence in Santos and later became a compositor in Germany. Now with 90 years old, instead of enjoying a quiet life in retirement the great Gilberto Mendes is still surprising us.

 

 

 

“Rôle et Responsabilités de l’interprète aujourd’hui”

Fazer justiça a uma obra,
é também conjugar  sua compreensão e liberação de suas forças.
Só uma disciplina englobando a leitura justa,
assimilação paciente, gesto circunstanciado,
pode dar ao intérprete a liberdade e permitir-lhe insuflar vida à obra
- canalizando envolvimento emocional, intelectual, energético,
sem aos quais, mesmo uma obra prima permaneceria letra morta.
Pierre-Laurent Aimard

A interpretação musical foi tema de muitos posts nestes últimos seis anos. Em sendo o elo intermediário da criação-interpretação-recepção, fica reservada ao executante a difícil tarefa da decodificação da escrita musical contida na partitura e transmissão da maneira a mais autêntica e digna. Nesse desiderato, literatura foi escrita por historiadores, musicógrafos e intérpretes ao longo do tempo, mormente a partir do século XX, quando determinados instrumentos, eleitos como solistas, e mais conjuntos orquestrais e corais, tendo à frente um regente, passaram a despertar interesses precisos.

Como sempre faço, a cada viagem ao Exterior não deixo de buscar literatura musical e de outras áreas. Percorrendo prateleira reservada a Debussy em livraria especializada, encontrei um pequeno livro que me interessou de imediato. A leitura apenas ratificou minha primeira boa impressão.

Pierre-Laurent Aimard é pianista renomado internacionalmente. Seu vasto repertório e sólida discografia estendem-se de J.S. Bach à música contemporânea, mormente a mais ventilada entre os adeptos.  Admitido no tradicional Collège de France, Instituição fundada em 1530, Aimard seria responsável pela cátedra de criação artística nos anos 2008-2009. A aula inaugural do músico seria publicada e tem profundo interesse, pois a abordar problemas tangíveis não apenas da interpretação, como repertório, cultura, apresentação pública, gravação, recepção (Pierre-Laurent Aimard. Rôle et responsabilités de l’interprète Aujour’hui. France, Collège de France/Fayard, 2009, 46 pgs.).

Apesar de destinada aos intérpretes, preferencialmente pianistas, a aula inaugural evidencia posições claras do autor, que incluem rigor repertorial, fidelidade à partitura, compromisso com a música presente e preocupação com tendências que proliferam.

A respeito do intérprete que navega em mares imensos, do barroco à contemporaneidade, o autor classifica-o como arqueólogo e explorador e é nesses vastos espaços que Aimard busca realizar suas buscas repertoriais. Sob outra égide, entende que o executante infesso, que encontra no amplo leque histórico o seu repertório, corre o risco de não se aprofundar, pois o todo necessitaria de tempo. Superespecialização e ecletismo desmesurado podem, assim, ser  obstáculos ao pleno desenvolvimento do intérprete. Este teria de ser o homem de intuição, de estudo e de transmissão que atuará no palco, no estúdio de gravação ou na pedagogia “num universo em mutação extremamente rápida”,  afirma Aimard. Tem consciência da prevalência massacrante do repertório consagrado e mais antigo frente ao contemporâneo dos últimos decênios. Observa que, se a interpretação tende a impecabilidade, sob outra égide é hoje menos inspirada.

O discurso de Aimard, ao referir-se à contemporaneidade, poderia conter determinado paradoxismo. Entende, como Serge Nigg (vide post  Serge Nigg “Captar o passado, apreender o presente, pressentir o futuro”, 04/03/2011), que quantidade de compositores na atualidade, independentes e  individualistas, “pensa ir mais longe do que nunca, sem que sintamos  efeitos na própria criação”. Nigg argumenta que só se deparava com compositores, pois “todos” almejavam esse patamar. Aimard comenta que os “criadores de peso do século XXI são os mesmos do século precedente”. Independentemente do repertório visitado pelo pianista, que se estende de J.S.Bach à música dos últimos cem anos, constata-se em sua discografia a atração preferencial por Debussy, Stravinsky, Messiaen, Berg, Bartok, Ligeti, Marco Stroppa, Elliott Carter,  sem contar suas  performances de obras de Boulez e Stockhausen. A guardar as precauções devidas, não estaríamos diante de uma “reiteração” repertorial movida pelo interesse de grandes gravadoras, no caso, que buscam nomes mais divulgados da música dos últimos decênios? Aquilo que Aimard nomeia, entre determinados criadores da música da atualidade, como “território que é ocupado por músicas comerciais ou revisionistas”, não seria a crítica às tendências não comprometidas com aquelas que são hoje consagradas e que têm seus profetas que se fazem ouvir pelos acólitos? Pierre Boulez não se teria pronunciado sobre a importância da ligação do músico à Instituição? Não estaria esta a financiar ad eternum, de preferência, friso, nomes consagrados na Europa e alhures? A mídia a dar guarida às obras musicais e o pensar incisivo desses compositores não influenciaria o todo? O certo, hélas, é que se de um lado temos “legião de jovens compositores”, grande parte sem ideias coerentes, há um número qualitativo de valores reais, jovens e nem tanto, que não conseguem penetrar num círculo fechado já sedimentado. Pareceria – a partir da discografia valiosa de Aimard – que o pianista de excelência especializou-se nesse compartimento sacralizado contemporâneo de grande importância, mas não o único, pois há outros compositores que não têm suas obras mais divulgadas, mas que mereceriam tal espaço. A pergunta de Aimard sobre o lugar reservado à  criação dos intérpretes  - para a obra contemporânea consagrada, mais precisamente  -  está a merecer, de há muito, que o leque se abra de vez, com o apoio de mídia e… gravadoras.  Subjetivamente ou não, o peso dos notáveis sobrepõem-se à realidade existente. A menção de Aimard a Elliott Carter (1908-2012) não estaria a expor o sacralizado: “não é flagrante, para citar apenas um caso, que o maior compositor americano vivo seja um dos mais europeus, e que esse criador centenário nos surpreenda por sua vitalidade criativa e seu frescor, preferencialmente a tantos jovens lobos”?

Cônscio da pluralidade de estilos composicionais do barroco aos nossos dias, Aimard entende determinadas proximidades interpretativas, no caso de Haydn idoso, Mozart e Beethoven, este na juventude. Contudo “uma das atribuições do intérprete é a caracterização das diferentes maneiras de agir para fazer jus à originalidade de cada compositor no seio de um mesmo estilo. No coração de nossa Torre de Babel, ao contrário, o intérprete é levado a descobrir constantemente estéticas e técnicas novas; torna-se um linguista experimentador… e poliglota”, afirma.

Aimard faz duras críticas à educação superior, na qual o Sistema de ensino permanece basicamente o mesmo desde o final do século XIX para instrumentos como piano, violino e canto, tomados como exemplos. Vê com preocupação os holofotes projetados sobre jovens não suficientemente maduros e o mal que o fato acarreta. Todo um sistema a dar guarida sempre aos “novos talentos” criaria situações que desestabilizam precocidades, pois substituídas logo após por nova leva de candidatos ao estrelismo. Creio que poderíamos acrescentar os concursos nacionais e internacionais, principalmente para os instrumentos mencionados por Aimard, quando meteoros tendem a desaparecer, tantas vezes para sempre, mercê do desvio sistemático do foco de luz.    

Sobre a popularização da música clássica, entende com reservas essa ascensão. O que poderia servir de alerta residiria na maneira de ela ser configurada para atender as massas: “Quando esse fenômeno se produz no coração do sistema, sem que distinção seja feita entre divertimento populista e música com outras exigências, o risco de confusão é grande”. A assertiva viria ao encontro de manifestações, que têm se acentuado atualmente, de uma mescla da chamada música clássica com várias tendências populares de intensa divulgação. Tem-se o simulacro da primeira e apenas mais uma aparição de gênero que preferencialmente, esse sim, faz concessão ao se acoplar ao erudito.

Preocupa-se Aimard com a montagem dos repertórios, que não se deve basear na cópia de modelos tradicionais que não atenderiam à atualidade multicultural. Afirma “O repertório de cada intérprete é o reflexo artístico de suas convicções profundas. Essa teia de obras é uma manifestação da sua identidade (diga-me o que tocas e eu te direi quem és), mas também o resultado de seu olhar crítico sobre o estado do mundo musical – carências a contrabalançar, atos pedagógicos… “. O contexto seria fundamental para a apresentação de uma obra e a montagem de um programa deveria atender a vários atributos nesse desiderato. Entende Aimard que “o mais nobre de um intérprete é aquele de servir aos criadores de seu tempo”. Elenca as dificuldades nessa missão, como a relacionada a  uma obra recém-composta quando fica destinado ao executante “dormir três curtas vezes por semana se o concerto estiver próximo”. Outro quesito colocado pelo pianista é aquele relacionado à importância do estudo de uma obra contemporânea com o próprio autor. Acredito ser esse um compartimento fundamental – quando possível, é claro. Se a obra tem valor, a tradição passará a ter seu curso. Insiste Pierre-Laurent Aimard na diferenciação estilística que deve ser respeitada e menciona Debussy e Ravel, que merecem tratamentos distintos.

Aimard vê com simpatia compositores atuais que tentam explicar suas criações. Lembraria o ilustre compositor cubano-norte-americano Aurelio de La Vega, que, em entrevista a mim concedida  (Aurelio de La Vega – Os musicólogos têm pouca visão. In: “Cultura” de “O Estado de São Paulo”, 18/05/1986) dizia que tantas vezes a “bula” é bem mais extensa do que a obra, o que entendia como um equívoco. Aimard compreende, entretanto, fundamental esse trabalho testemunhal, pois ajuda o intérprete a melhor captar as mensagens de um criador.

Um dos aspectos fulcrais da música é a pedagogia e Aimard dela não descuida em seu acurado texto. Aponta para a necessidade de o professor ser honesto, sem fugir das reais capacidades de um aluno, desaconselhando-o a seguir a trajetória musical, se for o caso. Compreende indispensável a transmissão dos muitos estilos através da história, mormente as várias tendências da música contemporânea, mas vê com preocupação “a resistência por vezes tenaz de certas mentalidades”.

Aimard entende a importância da tecnologia e a utilização de meios proporcionados pela internet.  A possibilidade de “estar presente” a tantos eventos ligados à atividade musical, como gravações de toda sorte, aulas, cursos, documentários, traz ao ouvinte e ao aprendiz o conhecimento imediato, a transpor geografias.

Pormenoriza-se no intérprete e na necessidade imperiosa de ele ser “proteiforme  e agir  sobre diversos fronts: criação, pesquisa e releitura do repertório, pedagogia diversificada, trabalho sobre diferentes suportes, etc.” Acrescenta que, sobretudo, deve ele ser “o conteúdo que dita a ação, e não a função social que aprisiona o conteúdo”. Para tanto, o conhecimento abrangente dos gêneros praticados por um compositor apenas enriquecerá a interpretação. Sob outra égide, deve o intérprete ter consciência da “transposição” ao apreender que obras, mormente as do passado, foram concebidas para instrumentos e espaços outros. Todo uma apreensão histórica e contextual não pode ser negligenciada.

Nessa temática, Aimard entende que “parte considerável da obra cravística  executada ao piano revela-se inoperante, ou inaceitável”. Lembro-me sempre da frase do ilustre musicólogo François Lesure, que ao referir-se à obra de Jean-Philippe Rameau para cravo executada ao piano, escrevia que “o que importa não é o instrumento, mas a qualidade do intérprete”. Não poderia parecer subjetivo, talvez paradoxal, que essa “parte considerável da obra cravística ao piano” tenha por parte de Pierre-Laurent Aimard a aplicação do livre-arbítrio quanto à escolha, pois gravaria ao piano A Arte da Fuga de J.S.Bach. Há controvérsias quanto à destinação dessa obra-prima do Kantor: para cravo ou sem especificação definida?  Critérios de escolha.

Rôle et responsabilités de l’interprète aujourd’hui  revela-se da maior importância, apesar das poucas páginas, pois se trata da tradução de um acúmulo de conhecimentos concentrados por um músico na acepção em rara obra pedagógica.

When admitted to the Collège de France in 2008, the remarkable pianist Pierre-Laurent Aimard gave an Inaugural Class that was turned into a book. This post is about this book, which I believe addresses issues of great interest for any interpreter of classical music.