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Louvável preservação de preciosa obra de arte

Não sei de artista mais completamente fiel à sua arte,
mais lúcido e consequente, mais orgulhoso e humilde.
Em Oswald o homem e o artista formavam um único ser,
sensível ao mundo que o cercava,
rico de vida interior, pleno de experiência humana.
Jorge Amado

Acaba de ser lançado o livro “O Mural da Santíssima Trindade em Botucatu”, de Maria Amélia Blasi de Toledo Piza (São Paulo, Scortecci, 2022). Tive imenso gosto de redigir o prefácio. Tenho um carinho especial por Botucatu, cidade onde me apresentei reiterados anos durante o período de formação pianística e, desde a longínqua década de 1950, o mural da Capela da Santíssima Trindade me fascina. Minha querida amiga Maria Amélia, ao se debruçar sobre a pintura nele harmoniosamente aplicada, presenteia Botucatu, desvelando as origens e a feitura de uma magnífica e sensível obra de arte.

Prefácio

“Maria Amelia Blasi de Toledo Piza é uma observadora vocacionada. Sua obra literária, a apreender o cotidiano de Botucatu através de seus personagens e costumes, seu olhar poético ao fixar paisagens que lhe são caras na arte pictórica e seu debruçar acadêmico tornam sua produção um todo artístico singular e raro em nosso país.

Em termos universitários, Maria Amélia se coloca entre aqueles convictos de que aprofundar-se num tema preciso é o caminho seguro para desvelamentos, só possíveis através da persistência. Sua dissertação de mestrado foi a porta aberta ao descortino. Apreendeu compartimento preciso da arte de Henrique Carlos Bicalho Oswald (1918-1965), debruçando-se a seguir, na tese de doutorado, sobre a de seu pai, Carlos Oswald, (1882-1971), pioneiro da gravura no Brasil e autor dos desenhos fundamentais do Cristo Redentor do Rio de Janeiro. Henrique Carlos era neto do nosso grande compositor romântico, Henrique Oswald (1852-1931). Quando da dissertação de mestrado, “O Mural da Santíssima Trindade em Botucatu”, sustentada brilhantemente junto à Universidade Estadual Paulista, UNESP, na cidade de Bauru, aos 07 de Novembro de 1997, tive o privilégio de compor a banca examinadora. Desde aquele findar de século fazia-se oportuno publicar em livro o profícuo trabalho acadêmico, agora vindo à luz em formato abreviado, a abranger leitores não necessariamente voltados ao viés de teses universitárias. A essência essencial da dissertação permanece, depreendendo-se no presente livro a qualidade ímpar do espírito de sínteses da autora a sublinhar a arte de Henrique Carlos Oswald na pintura do mural da Santíssima Trindade em Botucatu. O artista teve a colaboração de sua esposa Jacyra durante toda a elaboração de seu comovente trabalho.

Dom Frei Henrique Golland Trindade (1897-1974) foi uma das figuras emblemáticas na história de Botucatu. Bispo e posteriormente Arcebispo da diocese da cidade, fascinou-se na Itália pelo despojamento e sobriedade de capelas e basílicas romanas do primeiro milênio. Confiando o projeto da Capela da Santíssima Trindade no Seminário Menor ao arquiteto Benedito Calixto Netto, destinaria a pintura do mural no espaço da ábside e posterior ao altar ao artista Henrique Carlos Oswald. A escolha não poderia ser mais adequada. A linhagem Oswald, desde o compositor Henrique, teve ligações intrínsecas com a fé cristã. D. Frei Henrique, desde o período em que esteve em Petrópolis, manteve contato com a família Oswald. Carlos e seu filho Henrique têm inúmeras obras a partir dessa integração com a fé.

Maria Amélia, nessa magnífica síntese, tece leituras da pintura do expressivo mural, que mereceu um extenso debruçar sobre dezenas de figurantes, nomeando-os e esclarecendo seus posicionamentos e gestuais; faz o reconhecimento dos blocos compositivos na intrínseca relação tridimensional com a perspectiva, fator inexistente nas pinturas das inspiradoras capelas e basílicas visitadas por D.Frei Henrique; detém-se na ocupação do espaço da ábside; é sensível à utilização das cores e sua distribuição nos espaços do mural, a fim da composição harmoniosa. Fartamente ilustrada através de fotos e desenhos norteadores para a compreensão da magnífica pintura de Henrique Carlos Oswald, a publicação não apenas possibilita a divulgação da obra de arte, como possibilitará aos pósteros atentarem para a conservação permanente da Capela da Santíssima Trindade e seu mural singular.

Maria Amélia acrescenta a entrevista competente de Niza Calixto, que em 2009 foi a responsável pela restauração que se fazia necessária. Preservar patrimônio é um imperativo e o restauro prolongará a existência do mural da Capela da Santíssima Trindade.

Ainda bem jovens, meu irmão João Carlos e eu nos apresentamos várias vezes em Botucatu a convite de D. Frei Henrique. Estou a me lembrar de que naqueles primeiros anos da década de 1950, depois da partida do casal Henrique Carlos e Jacyra, que durante meses criou a pintura do mural, D. Frei Henrique pouco tempo após mostrou-nos com um ‘santo orgulho’, como costumava dizer, o resultado. Deslumbramento. Ficou-me também, numa outra categoria dos sentidos, o perfume ainda fresco das tintas aplicadas. ‘O mural da Capela da Santíssima Trindade em Botucatu’ é livro que deverá ser perene. Nele, pesquisadores pósteros e amantes da arte poderão contemplar uma criação artística que, certamente, insere-se entre as mais importantes de nossa arte sacra. Maria Amélia, que já legara entre seus livros ‘Por que amo Botucatu’, ratifica essa verdadeira devoção à cidade como um todo e à arte em particular”.

The book by Maria Amélia Blasi de Toledo Piza, “O Mural da Santíssima Trindade em Botucatu”, has just been launched. In it, the author unveils the origins of Henrique Carlos Oswald’s painting, examines the details of this true work of art, the structure, the arrangement of the innumerable figures, saints or not, dissects the whole and bequeaths to Botucatu and to the country the result of a long research that must serve as an example for posterity.

 

“Memórias Musicais de Tomar 1900 – 1931”

Cremos, mesmo, que poucas terras portuguesas
possuam uma tão notável riqueza natural e artística
e que em poucas, ou mesmo em nenhuma,
se realizará como aqui um tão maravilhoso acordo,
uma tão perfeita, helénica harmonia
entre a Natureza e a Arte – que é, precisamente,
o que faz um dos maiores encantos de Tomar.

Fernando Lopes-Graça
(“Disto e Daquilo” – Tomar e o Turismo, 1973)

O conhecimento de uma figura histórica deveria sempre ser acompanhado de um contexto amplo dos vários ambientes nos quais o personagem viveu e as influências sofridas em suas múltiplas variações. Aprende-se a desvendar interrogações, processo que pressupõe denodo e vontade por parte do investigador, caminho basilar para a interpretação das obras legadas, sejam elas musicais, literárias, picturais, científicas e de tantas outras ramificações. Entender um J.S. Bach numa Alemanha luterana ou Jean-Philippe Rameau em uma França monárquica é também apreender destinações, o primeiro a compor dezenas e dezenas de Cantatas e Rameau dezenas de Óperas ou Óperas-ballet de cariz profano.

António de Sousa, musicólogo, professor e regente coral de méritos, já havia se debruçado sobre Fernando Lopes-Graça (1906-1994), o notável compositor tomarense, ao escrever obras basilares para o melhor conhecimento do músico (vide blogs: “A Construção de uma Identidade – Tomar na vida e obra de Fernando Lopes-Graça” in “Movimento Editorial – Livros Portugueses sobre Música”, 19/04/2008 e “Escritos Lampantes da Vida e Obra de Lopes Graça”, 02/06/2018).

“O Meio Musical de Lopes-Graça ( I ) Memórias Musicais de Tomar – 1900-1931”. A edição pela Casa Memória Lopes-Graça, de 1921, revela mais um aprofundamento de António Sousa na busca incessante de desvendar fatos paralelos, mas essenciais à maior compreensão do notável compositor Fernando Lopes-Graça (1906-1994). Para tanto, o autor não apenas recolheu referências sobre as atividades artísticas em Tomar antecedendo as fronteiras dos séculos XIX – XX, mas adentrou as três primeiras décadas do século percorrido por Lopes-Graça. O livro contém rica iconografia, a preceder a emergência de Lopes-Graça como músico, e o acompanha em seus proveitosos anos de formação e desempenho musical.

Tomar — com seus oito mil habitantes no fim do século XIX, hoje com cerca de 38.000 – evoluiria, a ter como sustentáculo umas poucas fábricas e basicamente uma agricultura de subsistência, tendo importante centro operário socialista e anarquista, como bem sublinha o autor, que destaca ter sido “neste contexto que nasceu a geração tomarense de que Fernando Lopes-Graça fez parte, que cresceu no meio da mudança da Monarquia para a República, tendo sido depois apanhada, em 1926, pela ditadura militar, regime saído da marcha de Gomes da Costa sobre Lisboa”.

Seguir a transformação dos espaços tomarenses é essencial para a compreensão de Tomar voltada às atividades artísticas. António de Sousa apresenta a sequência de salas e auditórios nos quais espetáculos voltados à música, ao teatro e ao cinema contribuíram para a formação humanística da sociedade tomarense, quase sempre sob o manto do Convento de Cristo, o extraordinário monumento medieval, Patrimônio Mundial. É admirável a sequência de espaços construídos, reconstituídos e com fins precípuos voltados às atividades artísticas. No longínquo 1843 era inaugurado o Teatro Nabantino, reconstrução a partir de um edifício público, mercê da participação da alta burguesia. Tem interesse esse dado, pois paulatinamente outras classes sociais, ideologicamente distintas, passaram a fazer parte das atividades ligadas às manifestações artísticas de cariz erudito ou popular. António Sousa nomeia os espaços cronologicamente. Do Teatro Nabantino tem-se após o Salão Paraíso de Tomar, o Cineteatro de Tomar e o belo Coreto da Várzea Pequena, este inaugurado em 1897.

Para que pulsasse a vida artística da cidade, diversas modalidades estimulantes seriam necessárias e Tomar apresentava, nessa fronteira dos séculos, associações e instituições voltadas à música. Serenata Tomarense, Tuna Comercial e Industrial Tomarense, Sociedade Republicana Marcial Nabantina, Sociedade Filarmônica Gualdim Pais, Banda Regimental do R.I.15 e o Orfeão Tomarense. Todas imbuídas da prática musical. Os diversos grupos, músicos amadores e outros em nível mais aprimorado, juntavam-se para as várias manifestações musicais em recintos fechados ou abertos, neste último caso, as bandas ou o orfeão.

António de Sousa expõe três grupos que regularmente se apresentavam: o Quinteto do Salão Paraíso, o Cenáculo Musical da Casa do D. Prior e a Orquestra Sinfônica Tomarense. Com apenas catorze anos, Lopes-Graça já integrava o Quinteto do Salão Paraíso “para acompanhamento dos filmes que vinham de Lisboa numa caixa a qual, algumas vezes, trazia partituras para acompanhamento das fitas”. Foi nesse cenário que Lopes-Graça recebeu aos 15 anos seu primeiro salário, que lhe possibilitou “não só pagar as suas aulas de piano com a D. Rita como, inclusive, comprar a grande corrente de ouro que exibe na fotografia que o próprio Quinteto tirou, para sua publicidade própria”, segundo Sousa.  Já nos seus 15 anos era Lopes-Graça que realizava os arranjos para o quinteto, sendo, segundo o musicólogo, “seus primeiros trabalhos na área da composição”.

A prática pianística que possibilitou a Lopes-Graça participar de conjuntos, amadores ou não, poderá explicar a sua escrita, quando destinada ao piano, ser tão apropriada e competente e tantas vezes plena de originalidade. Sob outra égide, ter tocado durante as sessões de cinema mudo não lhe teria dado impulsos criativos? Em termos brasileiros, vários compositores que permaneceram na história também acompanharam ao piano sessões do cinema mudo. Essa atividade possibilitaria aos compositores de antanho a prática da improvisação, independentemente das peças editadas que eram profusamente tocadas.

A seguir, António de Sousa dedica espaço aos músicos tomarenses do período estudado. Desses incentivadores da atividade musical, mencionei anteriormente a figura da Professora Manuela Tamagnini, que me convidou nos anos 1982-83 para recitais em Tomar.

Ao abordar Lopes-Graça nos anos 1928 a 1931, três fatos merecem destaque: a 1ª audição absoluta da primeira obra do catálogo de Lopes-Graça, Variações para piano sobre um tema popular português op 1, que o compositor-pianista interpreta após a Sonata op. 27 de Beethoven no concerto realizado no Cine-Teatro de Tomar, aos 28 de Março de 1928. Nesse mesmo ano, surge o A Acção, Semanário Republicano a se antepor ao precedente De Tomar, cujos membros eram apoiadores do Ministro das Finanças, António de Oliveira Salazar. Como Redator Principal de A Acção, Lopes-Graça, em seu primeiro editorial, afirma: “A Acção será pela defesa da Democracia e da República, da Liberdade e da Justiça…, não descuraremos nunca o problema regional ou citadino, (…) sempre que ele represente qualquer coisa vital, eficiente, de interesse coletivo”. Foram 113 números publicados até 1931. As posições de A Acção levariam para a prisão 12 jovens tomarenses ligados ao semanário. Permaneceram mais tempo aprisionados dois dos principais dirigentes do Jornal A Acção, José Nunes da Silva e Lopes-Graça, liberados em Maio de 1932.

“O Meio Musical de Lopes-Graça ( I ) – Memórias Musicais de Tomar 1900-1931” apreende período fundamental da edificação do compositor. Louvem-se as investigações persistentes do ilustre musicólogo António de Sousa. Aguardemos a continuação das pesquisas, a fim de que a figura de Fernando Lopes-Graça se delineie ainda mais, a servir para tantos outros aprofundamentos sobre a vida e a obra do insigne compositor.

Clique para ouvir, de Fernando Lopes-Graça, Sonata nº 1 (1934), na interpretação de António Rosado – piano:

https://www.youtube.com/watch?v=RFMDSPmqYa8

With a sound research work, the teacher, musicologist and choral conductor António de Sousa, in his book “O Meio Musical de Lopes-Graça” (I), has the merit of revealing the propitious environment that precedes the birth of the composer, extending his sharp look to the beginning of the 1930s.

Palestra e entrevistas

Na música, uma figura rítmica, um germe melódico,
um ocasional agregado harmónico, uma sugestão tímbrica,
é que são o ponto de partida para a organização sonora,
que, justamente porque é uma organização,
não nos é dada de pronto: vai-se-nos impondo,
vai sendo, vai-nos sendo,
até se perfilar numa forma,
e toda a forma é construção.
Fernando Lopes-Graça
(“Disto e Daquilo” – Crítica, criação, público, etc.)

Um período longo se passou do recital aos 14 de Julho de 1959 à retomada dos recitais em 1982. Prolongado hiato em que penetrei intensamente nos estudos voltados ao repertório pouco frequentado de um passado que remonta do século XVIII à metade do século XX e na divulgação progressiva de parcela da criação contemporânea, excluindo tendências, tantas delas impactantes, mas efêmeras. O culto ao repertório sacralizado continuou, mas homeopaticamente.

O regresso a Portugal se deu em torno de Claude Debussy. Havia interpretado a integral do compositor francês em quatro recitais e escrito o livro “O Som Pianístico de Claude Debussy” (Novas Metas, 1982), com prefácio da ilustre gregorianista Júlia D’Almendra. Nascia àquela altura uma amizade que se perpetua através da também competente discípula de d’Almendra, Idalete Giga. É ela que, sempre entusiasta, comparece aos recitais que se prolongam desde a retomada em 1982 e que, pela segunda vez, convidou-me para proferir conferência na sede do Centro Ward de Lisboa – Júlia D’Almendra sob o título “De Carlos Seixas a Eurico Carrapatoso – um envolvimento pleno”.

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, a Sonata nº 78, em Si bemol Maior, na interpretação de J.E.M.:

Carlos Seixas – Sonata nº 78 in B flat major – José Eduardo Martins – piano – YouTube

Com a greve dos ferroviários, nossos diletos amigos António Sousa e Maria do Rosário nos levaram de Tomar a Lisboa para três eventos na cidade. Resquícios de uma prolongada pandemia obliteraram a realização de um recital na cidade, pois datas foram sendo alteradas desde 2020!

Mercê do caminho já trilhado, Idalete me solicitou, para a palestra, a abordagem que correspondia a uma retrospectiva quanto ao envolvimento com a criação musical em Portugal, autores percorridos e que me encantaram. Dos 25 CDs gravados no Exterior, seis foram dedicados à música portuguesa e outros seis à música brasileira, fato que corresponde exatamente ao que sempre pensei, pois não faço diferença entre Brasil e Portugal, devido certamente ao fato de nosso Pai, nascido no Minho, nos ter ensinado a essência essencial da palavra amálgama.

Em inúmeros blogs teço comentário sobre o repertório português que tive o prazer de estudar e outro que, em conhecendo, igualmente admirei, parte desse graças ao convívio com o meu saudoso amigo-irmão, o notável musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso. Como não ser grato a Conceição Correia, que me possibilitou a leitura, no Museu da Música Portuguesa – Casa Verdades de Faria, em Cascais, de manuscritos essenciais de Fernando Lopes-Graça. À medida que me aprofundava, mais entendia o alcance de suas criações. Estou a me lembrar desse choque frente à totalidade dos manuscritos para piano de Claude Debussy. O saudoso amigo e maior expert em Debussy na segunda metade do século XX, François Lesure (1923-2001), permitiu-me durante 15 dias a leitura dos manuscritos para piano do grande compositor.  Permanecia durante o expediente em sala fechada na Bibliothèque Nationale em Paris. Um ano após, disse-me ele que toda essa produção estaria digitalizada, sendo que pesquisadores teriam disponíveis doravante a opera omnia em formato digital. Em termos brasileiros, igualmente estudei os manuscritos para piano das criações de Henrique Oswald, Gilberto Mendes e Almeida Prado. Acredito que o estudo a partir dessa fonte primeira revela tantas vezes o pulsar, a hesitação, a rasura, mas a pairar num patamar excelso, a criatividade do compositor. No presente, praticamente não mais se tem composições em manuscrito, pois estas têm sido digitalizadas no desenrolar da criação.

Clique para ouvir de Jorge Peixinho, Etude V Die Reihe-Courante, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=Uc1PTtYbnoA

Na conferência do dia 14 de Junho a longa caminhada foi resumida de maneira sucinta. Friso sempre que a escolha do repertório deve estar sempre sob a égide amorosa. Selecionar o que deve ser interpretado após debruçamento pode basear-se em várias vertentes, como a qualidade do compositor; o contexto histórico da criação; a estrutura da obra estudada; a comunicabilidade de uma composição. Neste último caso, tantas tendências composicionais na atualidade se destinam unicamente a guetos. De Jean-Philippe Rameau (1683-1764), uma frase basilar: “La musique c’est le langage du coeur”. Dificilmente um compositor de reais méritos escreverá obra descartável, podendo sim ter criações que não atinjam o gosto do público por razões as mais diversas, mas elas lá estão para qualificar o que foi deixado no papel pautado.

Idalete Giga fez a apresentação da palestra e durante o encontro interpretei algumas obras no piano que foi de Júlia d’Almendra, piano que durante uma década (1980-1990) foi o instrumento que acolhia meus preparativos para os recitais em Portugal. Recordo-me de introduzir um cachecol sobre a surdina, durante as madrugadas, a fim de não acordar a vizinhança do andar superior, mormente quando determinadas composições estavam ainda “frescas” no repertório e necessitavam da maior atenção.

Outro aspecto a se considerar é a concentração que se deve manter quando um compositor está sendo estudado. Germina a curiosidade, uma das dádivas do homem. Conhecer mais obras de um compositor, desde que uma primeira determina o prosseguimento das investigações. Por vezes entramos num labirinto, mas é algo mágico o desvelamento progressivo de outras composições de um mesmo autor, sobretudo quando inéditas. Carlos Seixas, Francisco de Lacerda e Lopes-Graça se inserem nessa revelação. Da contemporaneidade, as obras de Eurico Carrapatoso, que tanto têm a ver com o preceito de Rameau, sempre me interessam.

Perguntas foram formuladas e busquei respondê-las a contento.

Após a palestra fui entrevistado pelo ilustre escritor e jornalista Joaquim Vieira, que se deslocou do Porto a Lisboa para o encontro, pois está a preparar um documentário sobre Fernando Lopes-Graça.

No dia 15, entrevistado pelo competente Paulo Guerra para o programa Antena2 da RDP, tive a oportunidade de responder às perguntas sobre minhas gravações, mormente aquelas voltadas à música portuguesa. Como não há foto do registro, inseri a tirada em 2018, quando o saudoso amigo-irmão Pedrosa Cardoso e eu estivemos no mesmo estúdio da Rádio.

Finda a breve turnê, Eurico Carrapatoso dedicou-nos generosamente um dia, levando-nos às florestas de Sintra. Idalete Giga nos acompanhou, mostrando-nos no dia seguinte outras maravilhas da região, pois  minha neta Valentina queria conhecer o local onde as fotos de Lopes-Graça com seu avô haviam sido tiradas em 1959.

Clique para ouvir, de Eurico Carrapatoso, Missa sem Palavras – Cinco Estudos Litúrgicos, na interpretação de J.E.M.:

Eurico Carrapatoso – Missa sem palavras – José Eduardo Martins – piano – YouTube

 

Numa manhã, feriado em Lisboa, transitava pelo Bairro Alto e desci a Rua Nova da Trindade, onde no nº 18 se encontra a Academia de Amadores de Música, instalada no 2º andar à esquerda. Fundada em 1884, por lá estiveram as figuras mais representativas da Música, assim como da Literatura e das Artes de Portugal, nos incontáveis eventos ao longo das décadas.  Passaram-se 63 anos da minha primeira apresentação em Portugal. Ao dizer à Valentina que o prédio deverá sucumbir à sanha das incorporadoras, quis minha neta registrar, possivelmente, uma última foto do intérprete frente a Academia, Templo que entendo do grande Lopes-Graça.

 

My presence in Lisbon was dedicated to three essential events: a conference at “Centro Ward de Lisboa – Júlia D’Almendra” at the invitation of Idalete Giga, competent Gregorian Chant specialist and prominent choral conductor, as well as two interviews. The renowned journalist and writer Joaquim Vieira is preparing a documentary about Fernando Lopes-Graça, hence the interview. With Paulo Guerra from RDP I talked about Portuguese Music and the imperious necessity of more emphasis on its international promotion.