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Cidade plena de encantos

Se os meus biógrafos um dia afirmarem que a Música
foi a fada que velou pela minha infância, mentem. Ou, então,
se achais que a palavra mentir
é insultuosa para a dignidade de um biógrafo,
direi que fantasiam no ar, coisa que, aliás,
lhes sucede com frequência.
A música foi para mim um puro acaso,
um acidente, uma brincadeira aí dos meus onze anos.
Fernando Lopes-Graça
(“Disto e Daquilo” Recordações em dó maior, Cosmos,1973)

Estou a me lembrar de minha primeira apresentação em Tomar. Foi no longínquo Fevereiro de 1982 que pela primeira vez dei recital na cidade, a convite de Manuela Tamagnini (1911-1989), fundadora, diretora e professora do Conservatório Regional de Tomar e uma das alunas diletas da grande especialista em Canto Gregoriano e da obra de Claude Debussy, Júlia d’Almendra (1904-1992). Em Lisboa, quando nos anos 1980 inúmeras vezes visitei Portugal para recitais, ficava hospedado em sua morada, na Rua d’Alegria, 25, 1º andar, pois nossa amizade se fundamentara em torno da obra de Debussy. Dirigindo um pequeno Toyota de Júlia, em estrada tortuosa que oferecia àquela altura trechos perigosos, tomava as precauções necessárias e evitava que minha dileta amiga conduzisse. Recordo-me de me ter perdido nas duas viagens, mercê da sinalização ainda precária e das estradas não duplicadas, mas lá chegávamos, sempre generosamente acolhidos por Manuela Tamagnini em sua casa. Dizer que os recitais ficaram gravados indelevelmente atesta uma realidade que, acionada a mente, traz-me sensível emoção.

Décadas após regressei a Tomar e habitualmente me apresento sob a égide da referencial escola de Música Canto Firme, a convite do destacado musicólogo, professor e dirigente coral António Sousa. Em sendo proverbial a acolhida em Tomar, na residência do casal António e Maria do Rosário permanecemos ao longo dos anos durante os dias das atividades musicais. Se em jornadas anteriores minha mulher Regina esteve comigo, desta vez, na turnê ora finda, nossa neta Valentina me acompanhou.

As minhas idas a Tomar, nessa segunda fase, sempre estiveram sob a égide do compositor maior da história da música portuguesa. Recitais e palestras, neles inseridos criações de Fernando Lopes-Graça que tive o privilégio de gravar em primeira versão em CDs: Viagens na Minha Terra, Música de Piano para Crianças, Cosmorame, Músicas Fúnebres e Canto de Amor e de Morte, composição esta publicada pelo Movimento Patrimonial da Música Portuguesa, mpmp, a partir de minha edição baseada num único manuscrito do compositor. Obra prima absoluta.

Sucintamente observei no post de 18/06/2022 as atividades em Tomar nessa última digressão. Faço-o no presente de maneira mais pormenorizada.

Na palestra que se deu na Casa Memória Fernando Lopes-Graça, local onde o compositor nasceu, o tema versou inicialmente sobre obras basilares que tive o privilégio de pesquisar. A seguir, sobre a necessidade imperiosa de se divulgar as criações de Lopes-Graça no Exterior. Se pianistas portugueses têm com maestria gravado e divulgado inúmeras criações de Lopes-Graça, o poder público, através de sua diplomacia, teria de estimular a divulgação das composições não só de Lopes-Graça (1906-1994), mas de Carlos Seixas (1704-1742), Francisco de Lacerda (1869-1934), Jorge Peixinho (1940-1995), quatro nomes entre outros ótimos músicos que já partiram. Como exemplo, citei na palestra as seis Sonatas para piano de Lopes-Graça, magnificamente gravadas por António Rosado e que não ficam a dever às de Sergei Prokofiev, penso eu. Edições, distribuição e empenho junto às entidades internacionais certamente colocariam Lopes-Graça num panteão especial. Haveria esse passo governamental? Frisei que o mesmo se dá com alguns dos mais importantes compositores do Brasil. Se Carlos Gomes (1836-1896), Henrique Oswald (1852-1931), Francisco Mignone (1897-1986) Camargo Guarnieri (1907-1993) e Cláudio Santoro (1919-1989), entre alguns dos mais importantes, permanecem basicamente ocultos sob a égide internacional, apenas Villa-Lobos (1887-1959) tem tido certa guarida nos repertórios do hemisfério norte.

No recital do dia 11 de junho, apresentei pela primeira vez em Tomar a magnífica coletânea Viagens na Minha Terra, gravada por mim em Leiria em 2003 para o selo Portugaler. Friso ser essa coletânea uma das mais expressivas do gênero em termos mundiais. O recital dedicado à memória de meu amigo-irmão, o ilustre professor e musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso, teve, quando da interpretação das 19 peças das Viagens na Minha Terra, imagens projetadas em vasta tela e carinhosamente preparadas por José Maria e sua esposa Maria Manuela. A anteceder o caderno das Viagens…, interpretei a bela criação de Eurico Carrapatoso, In memoriam José Maria Pedrosa Cardoso. Após a interpretação de criações de Bach-Liszt, Henrique Oswald, Gilberto Mendes e Scriabine e de um encore, relatei no post mencionado que, ao retornar ao palco, cantaram Parabéns a você…, comovendo-me.

Clique para ouvir, de Fernando Lopes-Graça, Viagens na Minha Terra, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=n0PwLys54GU

Na própria Canto Firme se deu um jantar em homenagem ao natalício e parte do coral dirigido por António Sousa cantou descontraidamente várias canções originais ou a partir de temas populares compostos por Lopes-Graça. Ao final, apaguei umas velinhas. “Resistir, quem há-de?”, a lembrar o poeta Luís Guimarães Júnior (1845-1898) em seu belo poema Visita à casa paterna.

Acompanhada do excelente pianista italiano Marco Rapetti e de sua companheira Suzane, Valentina se encantou ao visitar na cidade, um dos Patrimônios da Humanidade, o Convento de Cristo. Disse-me que as imagens estarão retidas para sempre em sua mente: os vários claustros, a Charola, a Janela do Capítulo…

Como curiosidade, após a palestra do dia 10 a cidade aguardava um evento tradicional, a noite das lanternas. Alunos das várias escolas tomarenses fazem barquinhos e neles inserem velas que deslizam pelo Nabão, rio que atravessa a cidade. Das pontes e das margens numeroso público aplaude o singelo e belo espetáculo. Tomar tem a vocação direcionada a preservar festejos e folguedos de antanho. Essa atitude frente ao passado encanta o visitante e o intérprete. Tenho pela cidade um apreço especial.

It was exactly 40 years ago that I performed for the first time in Tomar. Over the years I have returned a dozen times and the emotion is always the same. This time I was in Tomar for a lecture at Casa Memória Fernando Lopes-Graça to talk about my involvement with the composer’s work and also for a recital in which, among other creations by various authors, I performed the complete version of Lopes-Graça’s “Viagens na Minha Terra”. The city preserves ancient traditions. This time I had the pleasure of watching the floating lanterns festival in the waters of Nabão river and was fascinated by this respect for the past.

 

 

Sensível retorno após dois anos e meio sem travessia

Pouco a pouco a memória retornou,
ou melhor, a ela regressei,
encontrando a lembrança que me esperava.
Albert Camus

Chegou a termo a turnê que, breve, não deixou de contar com reais emoções. Nos dois posts anteriores, de maneira sucinta, teci observações sobre os eventos. Neste e nos dois próximos trarei pormenores. Comentei que devo encerrar minha atividade pianística pública aos 85 anos. Importa entender o tempo. Apesar de antever esse momento, é uma dádiva o intérprete se prolongar, diferentemente de outras atividades, como a esportiva de competição, implacável em tempo efêmero.

Sob outra égide, é reconfortante o regresso a locais que nos foram receptivos desde os primórdios e onde amizades se estreitaram! Como relatei várias vezes, minha primeira apresentação na Europa se deu em Portugal aos 14 de Julho de 1959, a convite do nome maior da música portuguesa, Fernando Lopes-Graça (1906-1994). Recital no “Templo Sagrado”, a Academia de Amadores de Música de Lisboa, que não deverá ser poupada pela sanha imobiliária, hélas. Estou a me lembrar do ilustre filósofo Eduardo Lourenço (1923-2020), que afirmou: “Aquilo que de mais belo há na humanidade é que nós somos submersos às mesmas forças que regem realmente o mundo. Porque é que nós escaparíamos, quando tudo o que foi criado está condenado a desaparecer?”.

A turnê em Portugal evidenciou, após dois anos e meio de plena abstinência de recitais públicos, mais do que as apresentações, que foram bem sucedidas, a consolidação efetiva das amizades com músicos e professores portugueses, algumas que perduram há mais de meio século.

Comentei nos dois blogs precedentes o programa apresentado na Biblioteca Joanina em Coimbra. Minha neta Valentina, companheira de viagem, insistiu para que escrevesse mais sobre a sensação de tocar naquele espaço magnificente.

A Biblioteca Joanina, que integra o conjunto arquitetônico da Universidade de Coimbra, é o recinto mais emblemático em que me apresentei ao longo da atividade pianística. O jornal londrino The Telegraph inclui a Biblioteca Joanina entre “the most spectacular libraries in the world” (2013). Há algo mágico e misterioso que emana da Biblioteca Joanina, da sua arquitetura barroca requintada e da literatura lá conservada a partir do século XVIII, substancial parcela de volumes bem anterior à construção finalizada em 1728. Diferencia-se das enormes salas das grandes cidades em que, ao apagar das luzes da plateia, o intérprete se encontra literalmente só no extenso palco, inundado pelos holofotes nele centralizados, que dimensionam a escuridão a ocultar o público. Na Joanina, é o passado histórico-literário que a enriquece e a humaniza, sendo o público seu cultor e o intérprete, o mensageiro que, através das ressonâncias, reacende magias. Nada se lhe compara, pois a iluminação parcimoniosa corrobora os mistérios contidos nos milhares de volumes cercados pela ímpar arquitetura e estimula a imaginação. O intérprete é apenas mais um cultor da Joanina naqueles fugazes mas intensos momentos da execução pianística. O majestoso quadro com a imagem de D. João V, ricamente emoldurado em madeira dourada configurada em forma de cortina, ao fundo das três salas contíguas separadas por arcos e em ouro, mas individualizadas por fundos distintos, verde, vermelho e negro, e salas repletas de volumes, fazem lembrar um Templo diferenciado, a provocar uma sensação não distante, mas sob outra aura, daquela apreendida em uma igreja barroca da mesma dimensão. O piano, colocado quase frente à imensa tela, compõe cenário singular, único. Como ele se harmoniza com o belo cenário! A cada visita à Joanina sinto a sensação de maravilhamento. Um privilégio ter sido convidado, ao longo de dezoito anos, para nove recitais na Biblioteca Joanina, outros dois no Teatro Gil Vicente e um no Museu Nacional de Machado de Castro.

Privilégio ter ouvido a preleção do Professor da Universidade, o notável medievalista João Gouveia Monteiro, que teceu comentários sobre o homenageado, o saudoso musicólogo e Professor da Universidade de Coimbra José Maria Pedrosa Cardoso; assim como a respeito do programa apresentado e do intérprete. Afirmou que o recital que apresentei seria o único do ano. Palavras profundas pronunciou a respeito do homenageado: “…recital que ficará decerto para a história pela sua qualidade e também por ser inteiramente dedicado a um dos musicólogos a quem a Universidade de Coimbra mais deve nos últimos cinquenta anos, José Maria Pedrosa D’Abreu Cardoso, um querido amigo que nos deixou recentemente e que se distinguiu sobretudo pelos seus estudos sobre as peculiaridades da música portuguesa no contexto europeu”. Amigo-irmão, José Maria deixou imensas saudades e um legado sem precedente.

A peça introdutória do programa, In Memoriam José Maria Pedrosa Cardoso, uma pequena joia polifônica em tributo ao autor de tantos livros a abordar a música portuguesa desde o século XVI, foi composta pelo renomado Eurico Carrapatoso, que nos honrou com sua presença. Compositor e intérprete eram diletos Amigos do homenageado. Emoção forte. A seguir interpretei a Sonata em Lá Maior (59) de Carlos Seixas (1704-1742), o imenso compositor conimbricense, Sonata esta a preferida do Professor Gouveia Monteiro. Seguiu-se, na ordem, de J.S.Bach-Liszt, o Prelúdio e Fuga em lá menor para órgão na magistral transcrição de Franz Liszt. Os graves duplicados de um magnífico piano Yamaha soaram esplendidamente pelos espaços e estantes. Duas peças de Henrique Oswald (1852-1931) e duas homenagens a efemérides distintas, o centenário de nosso expressivo compositor Gilberto Mendes (1922-2016) através de Viva-Villa, e dez Poemas de Alexandre Scriabine (1872-1915), a lembrar o sesquicentenário do compositor russo, encerraram o programa.

As presenças de destacados professores da Universidade de Coimbra enriqueceram o evento: André Pereira, Diretor da Imprensa da Universidade; Delfim Leão, Vice-Reitor da Cultura e Ciência Aberta, e outros mais dignatários da renomada Instituição, motivo de orgulho para o executante. Vindo de Florença, o relevante pianista Marco Rapetti se fez presente em Coimbra e Tomar. Rapetti está a preparar sua tese de doutoramento que versará sobre nosso mais importante compositor romântico, Henrique Oswald, que viveu cerca de 30 anos na bela Firenze.

As fotos foram tiradas por minha neta Valentina, subjugada que foi pela beleza da Biblioteca Joanina. Encantou-nos o convívio com o Professor Gouveia Monteiro e sua esposa Leonor. Consolidou-se um conceito que tive ao longo da existência, individual é certo, mas que me guiou durante a trajetória. Gosto imenso de retornar aos locais onde raízes se fincaram.

No próximo blog comentarei a palestra e o recital em Tomar, a cidade natal de Fernando Lopes-Graça, a acolhida que tivemos por parte do professor, musicólogo e regente coral António Sousa e sua esposa Rosário, e o prazer de festejar os 40 anos do meu primeiro recital na cidade. Num terceiro post a temática estará voltada à palestra no Centro Ward de Lisboa, a convite da ilustre gregorianista Idalete Giga, e às duas entrevistas concedidas na capital portuguesa.

I will divide the short tour of Portugal into three blogs. In this post, I’ll talk about the recital at Biblioteca Joanina in Coimbra. The following one will address the recital and lecture in Tomar, Fernando Lopes-Graça’s hometown, and finally the talk and the two interviews given in Lisbon.

Envolvimento de vida com a música portuguesa

Após as apresentações em Coimbra, Tomar e Lisboa, comento resumidamente fatos que para mim foram sensíveis. A palestra na Casa Memória Lopes-Graça em Tomar, espaço em que nasceu o ilustre compositor, ratificou as impressões que tenho do músico. Lopes-Graça não foi apenas o nome maior da criação musical em terras lusitanas, como possivelmente a figura maior da música portuguesa através da história. Na minha comunicação, não deixei de mencionar as obras que gravei em primeira audição em Portugal e na Bélgica do homenageado.

O recital se deu no dia 11 e apresentei “Viagens na Minha Terra”, coletânea em que o compositor atravessa não as grandes cidades portuguesas, mas particularmente vilas e aldeias. O ilustre professor, musicólogo e regente-coral António Sousa colaborou projetando as imagens das 19 localidades com as descrições devidas que foram elaboradas pelo meu saudoso amigo-irmão José Maria Pedrosa Cardoso e sua esposa Maria Manuela. Continuei o recital com obras diversas e após apresentar uma música extra-programa, a célebre Dança Negra de Camargo Guarnieri, ao retornar ao palco, o público cantou para a minha surpresa “parabéns a você” pela passagem do meu 84° aniversário. Seguiu-se um jantar para convidados, na Escola de Música “Canto Firme”. O coral, dirigido por António Sousa, cantou várias criações de Lopes-Graça o que levou à comoção minha neta Valentina e eu.

Devido às dificuldades com os computadores aqui em Lisboa, no próximo post transmitirei ao leitor a temática da palestra que realizei no Centro Ward de Lisboa, dirigido pela excelente gregorianista Idalete Giga. Concedi duas entrevistas, uma primeira ao notável Jornalista Joaquim Vieira para um documentário que está a ser preparado sobre o grande Fernando Lopes-Graça. No dia seguinte, uma segunda para o consagrado programa Antena2 da RDP conduzido pelo experiente Paulo Guerra. Durante 1h dialogamos sobre o meu envolvimento com a música portuguesa e com outros compositores pouco frequentados.

As fotos da turnê estarão no blog do dia 25 de Junho, oportunidade em que tecerei outros comentários pertinentes.