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Um toque pianístico que seduz pela sinceridade

O piano é realmente um instrumento maravilhoso.
De certa forma, não é apenas o mais sofisticado,
mas também
o mais transcendental de todos os instrumentos,
pois obriga o intérprete a não confiar apenas na técnica,
como muitos ainda pensam,
mas na sua imaginação criativa
quase até o estado de feitiçaria.
O paradoxo reside no fato
de que a voz do piano
morre no momento do nascimento.

Lili Kraus

Um leitor atento me pergunta se outros pianistas sofreram as agruras em campos de concentração como György Cziffra, tema de três posts em Abril de 2021, mas mencionado no post anterior. A saga de Cziffra é narrada em “Des Canons et de Fleurs”, assim como a da pianista chinesa Zhu Xiao-Mei, que passou anos em campos de “reeducação” durante a Revolução Cultural imposta por Mao Tsé-Tung, relatando as vicissitudes no pungente “La Rivière et son secret” (vide blog: 06/11/2009). Como não se lembrar da quantidade de músicos judeus que, reclusos, após se apresentarem durante certo tempo nos campos de concentração de Terezin era exterminados antes da chegada de outros mais? Lá morreram os compositores Viktor Ullmann e o promissor Gideon Klein, assim como intérpretes de música de câmara, pianistas,  artistas plásticos… A pianista Alice Herz-Sommer (1903-2014), foi uma das sobreviventes desse campo nazista.

Lilly Kraus, pianista nascida na Hungria, também esteve prisioneira em campo de concentração em Jacarta durante a ocupação japonesa, entre Junho de 1943 a Agosto de 1945. Segmento de sua narrativa tem interesse: “Parece-me que a minha felicidade durante apresentações é facilmente compreensível, uma vez que, durante quatro anos, não toquei piano. Nem sequer tive a oportunidade de ver qualquer partitura entre 1942 e 1945. Estávamos em Jacarta numa digressão de concertos em 1940. Ninguém supunha uma invasão japonesa em Java (hoje Indonésia), mas eles ocuparam o território. De certa forma, éramos prisioneiros em Jacarta antes do nosso encarceramento efetivo. O Anschluss (anexação da Áustria) degradou a Áustria civilizada a um estado de distrito policial provincial alemão, mercê da brutal ‘conquista’ de Hitler. Embora  meu marido, Dr. Otto Mandl, fosse austríaco, foi-nos impossível regressar à Áustria por vários motivos. Primeiro, pela razão de meu marido ser judeu; segundo, pelo fato de que todos os austríacos vivendo em seu país ou no estrangeiro – no nosso caso, na Itália – deviam trocar seus passaportes, tornando-se dessa maneira automaticamente alemães. A aliança Hitler-Mussolini tornou os italianos ‘dependentes’ da Alemanha; por isso, as autoridades de Milão nos escreveram inúmeras cartas, solicitando a troca de nossos passaportes”. Todas essas vicissitudes, narradas com tintas sombrias, mas esperançosas, pela pianista, apenas dimensionariam suas interpretações futuras.

Clique para ouvir, de Mozart, a Sonata em Dó Maior, K. 330

https://www.youtube.com/watch?v=LKAT5MNV1b8

Lily Kraus teve brilhante carreira. Sua formação na Academia de Música Franz Liszt e após no Conservatório de Budapeste foi sólida. Teve como mestres Zoltán Kodaly e Béla Bartók. Prosseguiu seus estudos em Viena com Eduard Steuermann e a seguir com Arthur Schnabel em Berlim. Aprimoramento dentro das bases autênticas da tradição pianística.

Sua dedicação às criações de Mozart e Beethoven, entre outros autores, fizeram-na reconhecida internacionalmente. Apresentações pela Europa, Austrália, Japão e África do Sul dos anos 1930 sedimentaram seu nome entre os destacados pianistas do período. Foi justamente numa turnê pela Ásia na década de 1940 que os infortúnios mencionados acima aconteceram.

Logo após a guerra, Lili Kraus se estabeleceu na Nova Zelândia, onde se tornou cidadã neozelandesa, lecionando e a prosseguir com sua carreira internacional. Suas apresentações públicas privilegiavam preferencialmente as criações de Mozart e Beethoven, e suas aparições frente às orquestras mais renomadas davam guarida aos Concertos para piano e orquestra desses notáveis compositores. Como camerista, igualmente realizou ciclos destacando integrais desses autores.

Seu marido Otto Mandl (1889-1956) deixou de atuar em suas atividades comerciais para se dedicar à carreira da esposa, não abandonando sua dedicação à filosofia.

Clique para ouvir, de Mozart, o Concerto K 414 em Lá Maior, na interpretação de Lili Kraus:

https://www.youtube.com/watch?v=e8MzjKllWCY

Em 1953, minha mulher, pianista Regina Normanha Martins, participando do First Juniors Bach Festival, Berkeley Califórnia, teve a oportunidade de ouvir dois recitais de luminares do piano, Egon Petri (vide blog Egon Petri, 08/05/2021) e Lili Kraus. Lembranças inefáveis ficaram retidas para sempre.

Para o ouvinte, as interpretações de Lili Kraus, após tantas agruras em período de Guerra, transmitem uma transparência, diria, uma generosidade em suas gravações. Tudo é claro, sem exageros, transparecendo sempre uma naturalidade impecável.

Deixemo-la traduzir impressões duradouras: “Mozart deu esse dom de doçura, que é tão extraordinário porque nasceu da tragédia. Preencho uma afinidade com Mozart porque ele, tal como eu, tinha uma sensibilidade quase insuportável para todos os sofrimentos à sua volta, se me atrevo a falar no mesmo fôlego, a fazer minhas essas afirmações utilizando o seu nome. Agora, para poder suportar a dor, o querido Senhor deu-nos um antídoto com capacidade para uma tremenda serenidade, humor e alegria que conduzem à felicidade; no sentido contrário, não seria possível  suportar o sofrimento”.

Lili Kraus was a “survivor” of a concentration camp in Java during the Japanese occupation in the years 1943-45. A remarkable pianist, expert in the works of Mozart and Beethoven, among other composers, her performances radiate spontaneity and, I would say, an interpretative joy.

 

 

Dúvidas que pairam a partir da atualidade cultural nebulosa

Desfrute sempre do presente com discernimento,
assim o passado te será uma bela lembrança
e o futuro não será um espantalho
Franz Schubert

Estava a fazer compras rotineiras em supermercado de minha cidade-bairro, Brooklin–Campo Belo, e em certo momento um jovem me pergunta se eu era quem ele pensava. À resposta afirmativa veio a razão da pergunta, pois sua professora aconselhara-o a seguir meus blogs hebdomadários e a ouvir minhas gravações no Youtube. Através das imagens me reconheceu. Confesso que fiquei feliz, pois raramente ouço pergunta semelhante, mormente pelo fato de ter verdadeira idiossincrasia pela mídia atual por motivos vários, que vão da sentida decadência cultural em nosso país, da ausência de artigos ou da crítica musical especializada, tão operante até pouco mais de meio século atrás, da sentida diminuição de público para os recitais de música erudita ou de resistência e pelas transformações ditadas pelos costumes, graças em grande parte à ascensão vertiginosa dos aplicativos internéticos que, se ostentam por vezes temática de boa qualidade, dedicam-se principalmente às insignificâncias. Todas essas mutações que impactam a sociedade desestimulam acentuadamente as apresentações públicas no Brasil, principalmente os recitais solo e a música de câmara.

Os avanços tecnológicos, que fizeram desaparecer do mercado os discos 78 rotações, os LPs e condenaram à morte os CDs, conduzem o ouvinte ao fugaz, aos aplicativos e, através desses, é possível verificar a estratosférica diferença de acesso à denominada música de concerto e  a outras tantas modalidades voltadas ao público que lota os grandes espaços públicos. É fato que todos os hits que granjeiam milhões de acessos rapidamente são substituídos. Não poucas vezes abordei esse tema.

Estou a me lembrar de um recital que apresentei em Belém do Pará, integrando uma semana de recitais e concertos que a cidade programara na década de 1990. No mesmo hotel estavam hospedados dois insignes músicos, a pianista Yara Bernette e o violoncelista Antônio Del Claro. Numa das noites, no terraço do hotel, nós três conversávamos e Bernette, que vivera décadas na Alemanha, onde atuou como professora catedrática de piano da Escola Superior de Música da Universidade de Hamburgo, asseverou que o recital solo estava com os anos contados e que apenas alguns intérpretes com patrocinadores e mídia acoplada ainda levariam público maior (vide blog: Yara Bernette – 1920-2002, 12/12/2020).

A ilustre musicóloga francesa Danièle Pistone, após observar que “o recital se encontra em dificuldade”, continua a dizer: “No momento em que desaparecem os ‘monstros sagrados’, quando se impõe ‘o fim do sacerdócio’, quando o ensino se torna o ‘descarrego normal’ e quando a evolução da música gravada é ainda mal controlada, no momento em que os pianistas franceses nem sempre são bem apreciados em seu país, necessário se faz salientar como esses intérpretes se sentem solitários e, talvez, nem sempre felizes” (“Pianistes du XXe siècle – Critique, pédagogie, interprétation”. Textes reunis et édités par Danièle Pistone. Université de Paris-Sorbonne, 2007).

Essas considerações me fazem retroagir e pensar nos excelentes mestres que São Paulo abrigou cerca de 70 anos atrás e em uma plêiade de jovens pianistas, entre os quais diversos se salientaram no Brasil e internacionalmente. Três, entre outros mais professores, se destacavam: José Kliass e os pianistas professores Sousa Lima e Fritz Jank. Em seu livro “Os últimos intelectuais”, o professor de história da Universidade da Califórnia  Russel Jacoby escreveu que a entrada de respeitados mestres nas universidades fê-los, em parte, perder esse convívio extramuros e uma de suas frases é aguda: “Quando por fim a posição requerida e a segurança forem atingidas, o talento, e até o desejo de pensar intrepidamente há muito terá atrofiado” (vide blog: “Os últimos intelectuais”. 21/03/2009).

Clique para ouvir, de Jean-Philippe Rameau, “Les Cyclopes”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=c7lyY0pBRkU

Teria sido após a Segunda Grande Guerra que as maiores transformações da história da humanidade se processaram devido à tecnologia. Para as gerações mais novas, a aceleração relativa às inovações é mais facilmente assimilada. Num paralelismo real, as transformações da sociedade igualmente estão em curso acelerado. As artes e a música se inserem nesse processo. No caso da música erudita ou de concerto, assiste-se a uma proliferação de tendências “composicionais” jamais vista na história. Nesse vastíssimo repertório novo, quantas não são as obras que só conhecerão uma única apresentação, se tiverem a chance de uma première. O insigne compositor francês Serge Nigg (1924-2008) já dizia que, se no passado conhecia músicos das mais variadas áreas, no seu presente, ironicamente, preponderavam os “compositores”, mercê dos caminhos individuais “criativos”.

O encontro com o jovem que fez a pergunta que me surpreendeu levou-me à reflexão. Há dois anos e meio sem tocar em público graças à pandemia e, sob outra égide, sendo infenso às interpretações online, o gesto do rapaz foi recebido com simpatia. Um jovem a ouvir e a praticar a música clássica ou de concerto. Esperanças…

A young man asked me in a supermarket in my neighborhood if I was the pianist José Eduardo Martins. His question was the starting point for a few reflections on the decline of classical music.

 

Aspectos da edificação de um músico

El artista que ejecuta profesionalmente el piano,
o cualquier otro instrumento musical,
debe antes que nada dominar en todos sus detalles
tanto el instrumento como la obra que ejecuta.
Jaime Ingram

Continuo a anotar determinados questionamentos sobre a formação do músico desde a origem. Há abundante literatura que aborda a complexa atividade sob várias facetas e já dediquei diversos posts à temática. Tem havido uma aceleração dessas dúvidas, mormente após desfilar, ao longo dos anos, uma quantidade significativa de grandes mestres do teclado do passado, que tem propiciado uma guarida acolhedora por parte dos leitores.

Uma das dúvidas bem colocada por diversos leitores é a da nomenclatura que por vezes emprego a “diferenciar” músico e virtuose. Na realidade, ao mencionar o termo virtuosidade, deixaria claro que todos os grandes mestres elencados neste espaço a tem. Não obstante, há alguns que a possuem no mais alto nível devido a vários motivos e, para tanto, figuraram entre os pianistas homenageados Vladimir Horowitz, Josef Hofmann, Shura Cherkassky, Jorge Bolet, Andor Foldes…Todos causaram admiração pelas performances absolutas sob o plano da técnica pianística, além de terem sido grandes músicos. Como entender a transcendente técnica de György Cziffra, um autodidata na infância e que, em campo de concentração durante a 2ª Grande Guerra, durante bom período teve que transportar pedras de 30 quilos ou mais, motivo que o levaria a utilizar munhequeira na futura carreira de pianista?

Gisèle Brelet afirmaria que “há uma qualidade particular do virtuose independente dos dons propriamente musicais: a necessidade e o gosto pela exteriorização. Parece-me que a obra, uma vez apreendida musicalmente,  pode ser interpretada tanto pelo músico como pelo virtuose. Ao músico bastam a estrutura ideal da obra e a sonoridade na indeterminação de suas possibilidades. E ele interpreta, tentando salvaguardar essa estrutura ideal que seu pensamento contemplou, não buscando realizar uma execução particular, mas conduzindo-a até o extremo limite do concreto e a completa determinação qualitativa” (“L’Intérpretation Créatrice”, 1951).  Na maturidade, tanto o músico intérprete ou o virtuose não desprovido de musicalidade serão respeitados. Seria possível acreditar que o primeiro se voltará preferencialmente à interiorização e Wilhelm Kempff, Alfred Cortot, Dinu Lipatti e Clara Haskil são exemplos nítidos, enquanto que os elencados anteriormente causam estupefação através do desempenho como virtuoses.

Clique para ouvir, de Schubert, o Improviso op. 90, nº 3, na interpretação de Dinu Lipatti:

https://www.youtube.com/watch?v=NganWOe8yTc

Clique para ouvir, de Moskowsky, Étincelles, na interpretação de Vladimir Horowitz:

https://www.youtube.com/watch?v=X27N_svVPok

Perguntas chegaram nesses anos a respeito da memória e o porquê de determinados intérpretes terem repertórios imensos e memorizados. Há muitos estudos a respeito e pontuo dois do Dr. André François Arcier (Le Trac: Le comprendre pour mieux l’appprivoisier Le trac: stratégies pour le maîtriser, 1998 e 2004, respectivamente) que pormenoriza o tema, mormente quanto à possibilidade do “branco” – falha da memória -, entre tantos mais referentes às tensões várias do intérprete de diversos instrumentos (vide blog “O medo do palco – Problemática e possíveis soluções”, 04/10/2008). Sim, há intérpretes com memórias prodigiosas e mencionei diversos pianistas superdotados nesse quesito: José Vianna da Motta, Jean Doyen, Claudio Arrau, Wilhelm Backhaus, Arthur Rubinstein, Friederich Gulda e tantos outros. A leitura à primeira vista se aprende desde os primórdios. Ela é essencial para o instrumentista. Já a retenção do repertório na memória tem graduações, pois há aqueles que memorizam normalmente e, em menor número, alguns superdotados que retêm na memória quantidade incalculável de composições, podendo ser acionadas quando necessário, sem equívocos. O pianista português Vianna da Motta (1868-1948), em uma das nove turnês pela América do Sul, interpretou mais de 100 obras memorizadas. Retinha as 32 Sonatas de Beethoven, o Cravo bem Temperado de J.S. Bach e parte considerável do repertório romântico. Eu estudava em Paris nas fronteiras das décadas 1950-60 e falava-se que Arthur Rubinstein (1887-1982) apresentara sequencialmente, em Paris, 17 recitais diferentes em pouco mais de três semanas, todos memorizados. A memória de Claudio Arrau abrangia basicamente as integrais de J.S.Bach, Mozart, Beethoven, Schumann…

O tema menino prodígio igualmente pontuou questionamentos. Os primórdios do aprendizado são tão diversos. Há aqueles, geralmente filhos de músicos, que o iniciam quase no berço e, se dons existirem – a genética pode ser determinante -, ainda na idade edipiana já se apresentam em público para gáudio de plateias embevecidas. Se qualidades inalienáveis existirem, esses futuros intérpretes poderão ser impelidos, mercê de suas aptidões voltadas à exteriorização ou não, a desenvolver suas atividades em torno de repertórios determinados.

Quantos dos pianistas elencados não foram precoces, mas nem todos. Se alguns já se apresentam ainda no primeiro lustro, outros mais farão sua estreia após o segundo. Estou a me lembrar de que minha mestra, a legendária pianista francesa Marguerite Long, dizia que o ideal é a criança ter a iniciação antes dos 10 anos, pois após a estrutura muscular já estaria menos maleável. Por vezes, a precocidade excessiva pode trazer traumas, como o que acometeu a pianista norte-americana de origem polonesa Ruth Slenczynska (1925- ), que em seus programas de concerto inseria ter sido forçada a estudar exaustivamente desde a tenra idade (vide blog: “A criança prodígio frente à interpretação musical e à vida”, 14/06/2014).

Se pontuo alguns tópicos relacionados aos questionamentos recebidos, impossível esgotá-los. Terei prazer em abordá-los proximamente. Faço minhas as palavras do ilustre pianista panamenho Jaime Ingram (1928- ): “no me veo haciendo frente a la vida sin la compañía del piano y la música”.

Writing about great pianists of the past over the years, I took note of many questions received from readers. Today I comment on some of such questions.