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Uma amizade a partir das corridas

Que forças hão-de trabalhar o mundo,
se pusermos de parte a amizade?
Agostinho da Silva (1906-1994)
(“Sete cartas a um jovem filósofo”)

Nesses últimos meses recebi mensagens de leitores querendo saber sobre Elson Otake, responsável pelas minhas gravações inseridas no Youtube. Como mencionei-o em vários posts sem me alongar, é possível que resida nesse fato o interesse. Respondo aos e-mails enviados através do histórico de nosso relacionamento em duas áreas tão distintas, que corroboraram os laços de amizade.

Iniciei minhas participações em corridas de rua aos 70 anos. Estávamos em 2008. Um ano antes já treinava solitário em pequeno parque do Brooklin e, meses após, realizava voltas pela Hípica Paulista, na mesma região. É natural a saudação entre corredores solitários ao cruzarem com outros na mesma situação. Assim ocorria quando cruzava com Elson Otake. Simples saudação.

Certa vez encontramo-nos na feira-livre da minha cidade-bairro, Brooklin-Campo Belo, e finalmente conversamos pela primeira vez. Estávamos em 2009 e convidei-o para participar da prova Zumbi dos Palmares (10k), mas na mesma data ele teria a maratona de Curitiba. Uma amizade se aprofundou com o tempo e Elson inclusive deu-me algumas “dicas” para que minhas passadas e respiração ao correr fossem mais eficazes.


Posteriormente, apresentou-me ao professor Augusto que, juntamente com sua esposa Valquíria, conduz a eficiente Corre Brasil, organizando duas vezes por semana treinos e ginásticas específicas para um grupo bem coeso e cordial. Sem participar desses treinamentos, várias vezes corri nas provas realizadas ao longo do ano, após um aquecimento bem proveitoso. Foram várias subidas ao Pico de Jaraguá e treinos no Ibirapuera e na Estrada Velha para Santos, sempre a correr.

O perfil de Elson dispensa comentários. Iniciou suas corridas em 2004 e já naquele ano participaria da São Silvestre. Em 2007 realizou sua primeira meia-maratona e, após mais três, buscou treinador e encontrou Augusto, que aprimorou suas passadas visando às maratonas. Após a maratona de Buenos Aires (2008), correria as seis oficiais do Brasil: Florianópolis e Curitiba (2009), Porto Alegre (2010), Rio (2015), São Paulo e Foz do Iguaçu (2016). Esteve no ranking oficial dos maratonistas brasileiros. Elson é formado em matemática.

Elson é muito mais bem preparado e rápido do que eu. Não por acaso, integrei a saudosa equipe “Ta Lentos”, constituída por descendentes de japoneses e eu, cuja camiseta trazia um sugestivo desenho de meu saudoso amigo e grande artista plástico Luca Vitali (1940-2013). Guardo boas lembranças das maratonas de revezamento de que participei pela “Ta Lentos” no Ibirapuera e no autódromo de Interlagos.  No desenho, sou o único com patins e… amparado, graças à minha faixa etária.

Elson é um atleta amador com ótimo rendimento. Ultimamente, mercê de um descolamento de retina e artroscopia no joelho esquerdo, mal causado possivelmente pelos treinos de boliche alemão, está em recesso quanto aos treinos. Certamente voltará a fazê-los.

Uma qualidade que desde o início observei no amigo foi a generosidade. Quando me encontrava nas tantas corridas oficiais de rua, que congregam milhares de pessoas, Elson abdicava de sua velocidade para correr ao meu lado, apesar da minha insistência para que continuasse a obedecer seu ritmo veloz. Juntamente com sua esposa Lilian, esses traços generosos são naturais. Em plena pandemia trouxeram-nos uma sacola com ótimas máscaras confeccionadas pelo pai de Lilian.

Nossa amizade levou-nos a um outro campo de entendimento, as minhas gravações inseridas no Youtube. Após alguns anos de inserções de meus registros fonográficos no Exterior realizados pelo dileto amigo Magnus Bardela, meu ex-aluno na USP,  Elson se propôs continuar publicando as gravações no aplicativo, sempre sob a égide da amizade. Três longas séries mostraram toda a  sua competência. A introdução no Youtube das Sonatas Bíblicas de Johan Kuhnau (1660-1722), Viagens na Minha Terra de Fernando Lopes-Graça (1906-1994) e Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste de Francisco de Lacerda (1869-1934) mereceram uma acuidade admirável de meu amigo. Quanto às Sonatas Bíblicas, após nossas escolhas das inúmeras ilustrações correspondentes às frases propostas pelo compositor a cada situação das histórias bíblicas, o conteúdo foi cronometricamente sincronizado ao desenrolar da partitura. Música denominada programática com imagens. Está em nosso projeto inserir, dentro de certo prazo, o extraordinário ballet original para piano de Debussy, La Boîte à Joujoux.

Atento ao caminhar da tecnologia, Elson conhece bem mais do que o amigo, jurássico tecnologicamente, a trajetória finita dos CDs e está sempre a me estimular no sentido das inserções de minhas gravações no popular aplicativo. Esse processo se alongará sem açodamento durante um bom tempo. Comunicarei ao leitor todas as entradas no Youtube.

Elson Otake, responsible for the insertions of my recordings on YouTube, is a marathon runner who has participated in several races in Brazil and abroad. We met during our solitary trainings on the streets and with time built a solid friendship. From the races to the posting of my music on YouTube — Elson is an expert in this area  — it was a natural step.

 

Uma das obras mais significativas do compositor

Tal é o título exato e completo da mais negligenciada,
talvez, das grandes obras para piano de Schumann.
A composição é longa, difícil de se construir,
desconcertante por certos aspectos
e seu estado de espírito não é de fácil abordagem.
Harry Halbreith (1931-2016)

Entre as gravações que realizei em Mullem, na região flamenga da Bélgica, para o selo De Rode Pomp, consta uma obra capital do compositor alemão Robert Schumann, a Grande Humoresque op. 20. Ao idealizar o CD Schumann-Scriabine (1872-1915) busquei a aproximação dos dois compositores, distantes cronologicamente, pertencentes ao caudaloso período romântico e que escreveram muitas obras sob a égide imperativa das paixões: Schumann por Clara; Scriabine por Vera e, posteriormente, por Tatiana.

Importa saber que Clara (1819-1896), jovem de pouco menos de três lustros, e Robert se apaixonaram, apesar da negativa do pai da promissora pianista, o renomado professor de piano Friederich Wieck (1785-1873). Nesse tumultuado período, Schumann escreve as suas mais importantes criações para piano. Após uma série de percalços, a incluir disputa em tribunal, casaram-se em 1840 e tiveram oito filhos, sendo que Clara não interromperia seus recitais. Tardiamente Friederich Wieck se reconciliaria com o casal. Apesar da intensa vida amorosa voltada a ideais comuns, pouco a pouco Schumann apresentaria problemas mentais que o levariam à tentativa de suicídio no rio Reno em Fevereiro de 1854 e, a seu pedido, internação em sanatório, onde morreria aos 46 anos. Clara se consagraria como uma das maiores pianistas e pedagogas de seu tempo, assim como compositora, a divulgar intensamente as obras de Schumann, vindo a falecer aos 76 anos.

Relevante uma carta para Clara a sintetizar o afeto intenso: “Entre todos os pensamentos e imagens sombrias, você vinha saltitando ao meu encontro como um passarinho… Desde essa época, uma ideia brotava em mim, vaga como um crepúsculo, de poder esposá-la um dia, mas esses pensamentos flutuavam num futuro distante. Fosse o que fosse, eu te amava desde esse período, eu te amava de todo meu coração, na dimensão permitida pela idade”.

O período a anteceder o casamento levou Schumann à criação, entre 1834-1839, de relevantes e extensas obras para piano.  Não voltaria a fazê-lo posteriormente no que concerne a um conjunto de criações para o instrumento. Citemos:  Davidsbündlertänze (Danças dos companheiros de David) op. 6,  Carnaval op. 9, Phantasiestücke, (Peças de Fantasia) op. 12, Sinfonische Studien (Estudos Sinfônicos) op. 13, Kinderszenem (Cenas infantís) op. 15, Kreisleriana, op. 16, Fantasia, op. 17,  Grande Humoresque op. 20, Oito Novelletem op 21, Sonata nº 2 op. 22 e Faschingsschwank aus Wien (Carnaval de Viena), op 26. Os opus 9, 16 e 17, entre as mais longas, figuram entre as preferidas pela maioria dos pianistas devido à enorme recepção pública, que perdura há mais de um século. Apesar do intenso teor romântico desses opus, o Carnaval, com seus pequenos quadros (21) que desfilam harmoniosamente, tem uma qualidade mais exteriorizada. Humoresque é certamente muito significativa, e seus segmentos contrastantes têm a nomeá-los palavras extraídas majoritariamente do léxico musical, a fim de propor ao intérprete o mood específico. Schumann escreve a um amigo alemão que a Humoresque, composta em oito dias, continha uma mistura de exaltação, espírito jocoso com certa alegria e talvez “o que eu fiz de mais depressivo”. À Clara, comunica nesse final criativo: “Estive a semana toda ao piano, compondo, escrevendo, rindo e chorando ao mesmo tempo. Você encontrará uma boa descrição desse estado de coisas no meu op. 20, a Grande Humoresque (carta de 11/03/1839). Sob outra égide, o compositor francês François Servenière (1961- ), escreve que “as peças de piano de Schumann se orquestradas teriam resultado extraordinário” (2011).

A literatura extensa sobre a obra para piano de Schumann, ao tratar da Humoresque, geralmente não a pormenoriza com a mesma intensidade reservada a suas outras grandes criações para o instrumento. Na realidade, há uma certa intercambialidade crítico-musicológica e recepção pública, considerando-se a destinação dos escritos voltados prioritariamente a músicos e aficionados. O notável pianista Claudio Arrau, comentando repertórios apresentados no Carnegie Hall nos anos 1920, dirá em suas conversas com Joseph Horowitz: “não tínhamos o direito de tocar obras como Kreisleriana ou a Dança dos companheiros de Davi! Os empresários preveniam. O Concerto de Schumann era considerado um suicídio”. Quando interpretava o Carnaval op. 9, o sucesso estava garantido (“Arrau Parle”. Paris, Gallimard, 1985).

Uma das mais sensíveis e competentes observações sobre a Humoresque deve-se a um dos mais importantes intérpretes de Schumann da história, Alfred Cortot (1877-1962). Escreve no avant-propos da magnífica edição de trabalho da Humoreske, publicada pela Salabert de Paris, que seria responsável pelas magníficas edições das composições de Schumann, Chopin e Liszt comentadas por Cortot. “As cartas de Schumann que revelam a tendência poética de suas obras e a interpretação a traduzi-la são sucintas no que concerne a uma das composições pianísticas mais significativas da natureza particular do seu gênio, essa Humoresque, cujo título curiosamente, segundo ele, ‘não será compreendido pelos franceses’.  Na realidade não é no sentido humorístico que se deve entender o princípio dos contrastes que regem a obra, em uma sucessão de episódios sonhadores ou animados, mas certamente ‘mais plenos de lágrimas do que de risos’, segundo Schumann” (carta a Voigt, 4 de Agosto. 1839)”. Mencione-se a admiração de Schumann pelo poeta romântico alemão Jean Paul (1763-1825), fonte inspiradora para muitas de suas criações.

Alfred Cortot afirmaria que o emprego de sucessão de peças separadas, em obras como Dança dos companheiros de Davi ou Kreisleriana, será, no caso da Humoresque, “o fio condutor de um pensamento amoroso que secretamente religará os encadeamentos – ininterruptos, mas também diversificados na expressão – das vinte improvisações, deliberadamente a ignorar qualquer exigência formal, mas cuja reunião, sob o título de Humoresque, constitui um dos exemplos mais flagrantes do gênio inovador de Schumann, sem precedente na história da literatura pianística”.

A longa Humoresque apresenta um “movimento único”, mas dividido em várias secções. Como bem define Harry Halbreith: “Na realidade, a Humoresque é o ensaio mais vasto e ambicioso de Schumann para se exprimir em uma grande forma livre – nem sonata, nem suíte, tampouco cíclica”.

Grande Humoresque é reveladora dos contrastes emotivos de Schumann. Eusebius e Florestan, seus “duplos”, enormemente citados na literatura específica, compõem constantemente essa alternância ativa e passiva de sentimentos. Na Humoresque a evidência desses “duplos” não nomeada está presente. Uma enciclopédia de emoções.

Clique para ouvir, de Robert Schumann, a Grande Humoresque, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=9QLA5sKqlrc

Schumann’s Humoreske op. 20 is one of the composer’s so-called great piano works. After some comments on his Humoreske, I present in full my recording made in Belgium for the De Rode Pomp label and released in 2007.

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Estava a escrever o presente post quando soube da morte de Nelson Freire (1944-2021) ocorrida na semana. Perda inestimável. Nelson Freire (1944-2021), Guiomar Novaes (1895-1979) e Magda Tagliaferro (1893-1986), três dos pianistas brasileiros mais glorificados no planeta.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


“Drie Stukken”, um tríptico impecável para piano

Na realidade, o único terreno experimental
é o compositor no ato de compor,
e o único observador possível é o próprio compositor.
Mas, para que suas observações sejam válidas,
é necessário que ele as tenha no curso de seu trabalho,
sem um segundo de desatenção.
André Souris
(“Conditions de la Musique”, 1976)

Roland Coryn é um dos mais notáveis compositores da Bélgica. Estudou no Conservatório Real de Música de Gent, concluindo o curso com brilhantismo e recebendo Primeiros Prêmios como pianista, violinista e compositor. Essa versatilidade concentrar-se-ia com o passar dos anos na composição e no ensino. Na mesma instituição foi professor de música de câmara, harmonia, contraponto, fuga e composição, até a aposentadoria em 1997.

Na atuação como professor de composição, dirigiu o “The New Music Ensemble”, que realizou a estreia de relevantes obras da Bélgica flamenga e também de compositores de outros países, como Louis Andriessen, Maurizio Kagel, Kaija Saariaho e Giacinto Scelsi, entre outros.

Recebeu inúmeras premiações: Tenuto (1973), Jef Van Hoof (1974), Koopal pela sua música de câmara (1986) e o Prémio Visser-Neerlandia em Den Haag (1999) pelo conjunto de sua obra de composição.

Em cooperação com a Câmara Municipal da sua cidade natal, Harelbeke, organizou de 2000 a 2012 o Concurso Internacional de Composição Bianual, “Harelbeke, Cidade da Música”, para novas músicas de bandas sinfónicas.

Quando do projeto de um CD unicamente com Estudos belgas para piano, André Posman, diretor da De Rode Pomp, que promovia cerca de 150 recitais ao ano em sua aconchegante sala para apresentações e mantinha um selo seletivo, a abrigar principalmente projetos inusitados, não apenas aprovou como estimulou a iniciativa. Já havia gravado vários CDs para o selo e nosso entendimento não era apenas musical, mas de uma amizade franca. Ao escolher compositores coetâneos, André ofereceu-me “Drie Stukken” (“Três peças”), de Roland Coryn. Li-as em seu escritório e a partitura me encantou pela competência da escrita, a sobriedade do tríptico e a presença do Adagio Funebre intermediando duas criações movimentadas. Em 2002 gravei o CD “New Belgian Etude” para o selo De Rode Pomp (2004), dele constando dez destacados compositores, sendo que os Estudos de Daniel Gistelinck e Lucien Posman já estão no Youtube.

Nas três noites a gravar na mágica capela Saint-Hilarius, em Mullem, não distante da cidade de Gent, ao registrar as três peças de Roland Coryn, as duas extremas foram gravadas sem percalços e na tranquilidade que Saint-Hilarius proporciona. Contudo, no Adagio Funebre, que, publicada receberia o título Canto Funebre, após duas execuções sentia que algo faltava. Foi quando o extraordinário engenheiro de som Johan Kennivé, um dos mais importantes do planeta, chamou-me para ter com ele na van que ficava no exterior da capela, local de onde ele tudo controlava.

Johan é também psiquiatra e durante vinte anos, anualmente, acompanhou minhas gravações. Profunda amizade se estabeleceu. Disse-me que, vivendo nos trópicos, eu não poderia entender o que representava um enterro nas planícies flamengas, com a carroça a transportar o esquife passando lentamente pelas ruas até o destino final. Em tempos gélidos, solidão absoluta. Fez-me ouvir uma gravação recente, que realizara em homenagem ao ilustre escritor, poeta e padre flamengo Guido Gezelle, com música incidental e fala de Jan van Landeghem a partir do poema “Traagzaam trekt de witte wagen” (“lentamente a carroça transporta pela rua silenciosa…”), de autoria do homenageado. Traduziu-me o poema. Apreendi.

Clique para ouvir pequeno segmento de “Traagzaam trekt de witte wagen”, de Guido Gezelle:

Segmento do poema de Guido Gezelle, Traagzaam trekt de witte wagen.

Adentrei a capela e gravei de uma só vez o Adagio Funebre, mas ainda mais lentamente do que o indicado; diria, um Largo, utilizando-me de uma indicação do léxico musical. Ledo engano entender que as peças mais rápidas e virtuosísticas são as mais difíceis para gravar. A concentração relacionada às criações lentas, em que a escuta é imperativa, requer uma outra abordagem.

Admiro a escrita de Roland Coryn, clara, sem quaisquer exageros, verdadeiramente de um grande mestre.

Clique para ouvir, de Roland Coryn, “Três peças”, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=UGtSF9XgvuU

Acredito firmemente que muitas criações ainda estão por vir na aplicação de técnicas composicionais empregadas bem anteriormente. Arnold Schoenberg já se expressara: “há ainda muita música boa a ser escrita em Dó Maior”.

Incluo uma curta criação coral de Roland Coryn, “Standbeeld” (“Estatueta”):

https://www.youtube.com/watch?v=Rn-MOwL-lcc

Roland Coryn is a noted composer and scholar from Belgium. His “Three Pieces” for piano, on the CD “New Belgian Etudes, are contrasting and exemplify the competence of an authentic master.