Conceitos de François Servenière que levam à reflexão

Na atividade de todo artista,
é preciso distinguir e mesmo radicalmente opor
o esforço que busca a obra
e a espontaneidade que a encontra.
Na atividade musical,
deparamo-nos com a espontaneidade
que acha e ignoramos os esforços que a preparam;
entre o trabalho e a execução,
o esforço e o sucesso, há um profundo abismo.
Mas a atividade criadora que supõe esforço e trabalho
se realiza justamente na sua eliminação.
Gisèle Brelet
(”L’interprétation créatrice”)

Das inúmeras mensagens de incentivo recebidas no transcorrer dos blogs destinados aos grandes intérpretes do passado, salientaria uma última, a do notável compositor francês François Servenière, que se aprofunda no post dedicado a Walter Gieseking. Escreve:

“Verdadeiramente, a interpretação de Clair de Lune é uma das melhores que ouvi até hoje… Ouvi logo após a gravação de Vladimir Ashkenazy… Esta me parece pálida… É sempre difícil para um compositor ouvir suas obras de uma maneira muito pessoal na concepção de um intérprete. Na realidade, o ego dos virtuoses célebres pode gerar absurdos agógicos históricos, aliás como você tem salientado através dos blogs, ou então, como se ouve muitas vezes, a personalidade do intérprete se sobrepõe de uma maneira muito pessoal à partitura e ao ponto de vista do compositor. Trata-se do famoso traduttore, traditore. Sobre outro aspecto, a técnica é de tal maneira importante na interpretação que a menor falha física e a plena segurança podem levar a uma total desconexão com a partitura e o espírito do criador”. Estive a pensar na lamentável gravação ao vivo do pianista chinês Lang Lang, um dos mais acessados no YouTube. Aclamado pelo planeta, nessa globalização de uma civilização do espetáculo voltada à destruição paulatina da tradição, Lang Lang gravou como extraprograma, após solar com orquestra, a célebre Marcha Turca de Mozart. Descaracteriza completamente o caráter da peça, foge de todos os princípios fundamentais do respeito à tradição e busca ultrapassar as marcas de Usain Bolt. Senhor de alta virtuosidade, aplica-a em seu limite máximo. À performance mediática somam-se as histriônicas expressões faciais de toda espécie, que são sua marca registrada. Ao final, o público urra de satisfação, algo impossível de ocorrer décadas atrás, o que comprova a nítida decadência cultural, que apenas se acentua. Constata-se que recordes têm de ser batidos e que venham acompanhados pelas micagens ou chamativas vestimentas, a entusiasmar plateias imensas que se acostumaram com o simulacro.

Prossegue Servenière: “Ouço ainda Walter Gieseking. Entendo a época de sua atuação como o ponto de vista de Debussy, como se, com a atual capacidade tecnológica, que reproduz por computador as partituras, fosse o próprio software do compositor a produzir a versão acústica de Gieseking. Incrível e desconcertante escuta, quando a cada momento, durante o desenrolar sonoro, não sentimos a matriz do intérprete, mas apenas a música…

Paradoxalmente, após essa espantosa e rara experiência, tenho lá minhas dúvidas sobre a declaração de Walter Gieseking mencionada em seu artigo: ‘Nunca realizo exercícios técnicos. Entendo-os quase como supérfluos. Após aprender arpejos, escalas e outras noções fundamentais da técnica do piano, o executante as sabe! Para que fatigá-lo e inutilmente aborrecer seus dedos? Creio que, quando as mãos aprendem a tocar com igual força, o que pode parecer pouco natural, mercê do fato de a força dos dedos não ser a mesma, e de os ouvidos habituaram-se a controlar a ação dessas extremidades, a técnica lá está, disponível em qualquer momento’.

Minha experiência leva a concluir que a arte do piano é uma disciplina equivalente àquela dos ginastas. O que resultaria de um ginasta que se recusasse a exercitar sua musculatura, seu corpo, sua força? Ele teria riscos consideráveis em sua vida… Creio que é necessário considerar a posição de Gieseking como aquela de um mestre que atingiu a maturidade de sua arte através do trabalho, para quem somente alguns exercícios de aquecimento bastariam para a manutenção de seu nível de excelência. Como é evidente e notório, mais fácil ao alpinista passar as cumeeiras pelas cristas do que levar seu corpo da base ao cume… Esforços incomparavelmente diferentes! Penso que a metáfora é bem explícita. O cume exige a permanência através da perfeição… Atenção com os acidentes de percurso, às ravinas, aos deslizamentos, aos saltos não calculados! Seria pois a reflexão de uma pessoa que está na cumeeira de sua arte e que esquece, nesses momentos de júbilo, todos os esforços que lhe foram necessários desde a infância para chegar ao cimo… Pode ser também que Gieseking tenha nascido com uma musculatura pianística natural. Pode isso acontecer? Não saberia responder. Conheci, em minha curta carreira de pianista, condiscípulos naturalmente muito dotados e suficientemente adaptados para esse instrumento e deles eu fazia parte… Mas o trabalho, estaria ele ausente? Você finaliza seu comentário a dizer: ‘Estou a me lembrar daquele pianista forte, com corpo de atleta de arremesso de peso, que dimensionava as sonoridades em seus limites extremos’. Isso explicaria sua facilidade em mensurar os esforços de uma maneira tão sensível, em se tratando do piano… Dotado de uma força física natural, o trabalho de Gieseking deve ter se concentrado no sequenciamento criterioso e infinito, na moderação de sua musculatura e de sua resposta nervosa. O domínio de uma arte é sempre um trabalho sobre o controle da resposta nervosa”.

É válida a posição de Servenière. Todavia, acredito estar implícita no conceito de Gieseking a manutenção da qualidade técnica a partir dos problemas pianísticos que se apresentam em cada partitura, resultando em inesgotável e extraordinário manancial. Após os anos de aprendizado através dos métodos de exercícios e estudos específicos para piano, “os acidentes de percurso, as ravinas, os deslizamentos e os saltos calculados” de que nos fala Servenière corresponderiam a esse manancial encontrado nas obras escritas para serem executadas em público, enquanto que os exercícios e estudos didáticos, escritos unicamente para aperfeiçoamento, corresponderiam metaforicamente aos conhecimentos básicos assimilados por um alpinista. Após ter praticado na infância e adolescência uma infinidade de incríveis métodos de exercícios e estudos específicos da técnica pianística, jamais a eles regressei, extraindo de cada obra a ser interpretada a riqueza técnico-pianística essencial. Se Alfred Cortot (“Principes Rationnelles de la téchnique du piano”) e Marguerite Long (“Le Piano”) escreveram dois tratados fundamentais da técnica pianística, entenda-se, servem esses para fase essencial de aprendizado, diferentemente dos 51 Exercícios de Brahms, extraídos certamente de problemas que o grande mestre alemão encontrou em suas próprias obras. A acompanhar o raciocínio, Alfred Cortot teria, através das monumentais edições das obras de Chopin, Schumann e Liszt, encontrado as fórmulas técnico-pianísticas para cada problema específico relacionado à resolução de determinadas passagens mais complexas.

Servenière faz comparação entre gravações de criação icônica de Ravel, apresentada no post anterior na interpretação de Walter Gieseking: “Quanto à gravação de Alborada del gracioso, prefiro a interpretação de Dominique Merlet, que também gravou a integral para piano de Ravel e que teria compreendido toda a verve hispânica contida nessa excepcional criação”. Realmente uma gravação hors série.

Clique para ouvir a execução de Dominique Merlet:

https://www.youtube.com/watch?v=G2xLEJ83-Io

O debate de ideias é sempre salutar. Mais e mais o mundo ocidental recebe jovens pianistas vindos da China. Já mencionei esse fato reiteradas vezes. É incrível a destreza técnico-pianística, sempre com objetivo de alcançar recordes inimagináveis muitas décadas atrás. Eles têm conseguido e certamente alcançarão outros. Se no passado pianistas como Vladimir Horowitz ou Georgy Czifra, entre poucos, nasceram com aptidões técnicas excepcionais, através de processo de ensino que pouco conhecemos os chineses estão conseguindo resultados surpreendentes que, no entanto, deixam incontáveis vezes a essência essencial da música ao largo. Civilização do espetáculo.

The previous post about Walter Gieseking has received much interesting feedback from readers. Among the messages, I transcribe the one by the French composer François Servenière, with stimulating comments on some musical aspects addressed in my post, followed by my own views on the subject.

Físico avantajado frente à interpretação plena de contrastes sonoros

Na Idade Média,
eis um homem que teriam queimado vivo por feitiçaria.

Gieseking a tocar Debussy é Gulliver em Lilliput,
mas também Monet em Giverny.

Bernard Gavoty
(“Walter Gieseking – Les Grands Interprètes”)

Tem-me causado surpresa a recepção aos posts dedicados aos grandes mestres do teclado de antanho. Adultos das várias faixas etárias estimulam esse caminho e nomeiam pianistas notáveis e basicamente desconhecidos pelas novas gerações. Sob outro ângulo, alguns jovens estão bem interessados nesses “monstros sagrados” e, surpresos, apreendem que a interpretação sofreu modificações em direção aos preceitos da nossa civilização do espetáculo.

Walter Gieseking, ilustre pianista franco-alemão, notabilizou-se pela interpretação personalíssima, memória inusitadamente utilizada na apreensão das obras e pela surpreendente interpretação das integrais de Mozart, Debussy, Ravel, assim como das 32 Sonatas de Beethoven, dos dois livros do Cravo bem Temperado de J.S.Bach e de criações relevantes da música contemporânea.

Ouvi-o em São Paulo em recital memorável. Foi nas fronteiras das décadas de 1940-1950. Estou a me lembrar daquele pianista forte, com corpo de atleta de arremesso de peso, que dimensionava as sonoridades em seus limites extremos. Poeticamente, o crítico Bernard Gavoty comenta: “sob os dedos de Gieseking, o piano não é mais um instrumento de percussão onde os martelos são acionados, mas um cofre mágico de onde saem a voar, graças a toques misteriosos, as sonoridades adormecidas” (“Les Grands Intérprètes, Genève-Monaco, Renè Kister, 1954).

Clique para ouvir, na interpretação de Walter Gieseking, Claire de Lune, de Claude Debussy:

https://www.youtube.com/watch?v=MhadMhkFnnQ

A sua interpretação da integral para piano de Claude Debussy – conhecida até então – foi, durante um bom tempo, entendida como modelo. Estudos aprofundados da obra do compositor francês, tendo-se em conta aspectos entendidos fulcrais, como dinâmica, agógica e acentuação, assim como o respeito absoluto às intenções de Debussy, certamente o primeiro músico a tudo notar para que dúvidas não pairassem – lembremos sua frase: “quatro semicolcheias são quatro semicolcheias” -, fizeram com que a interpretação concebida por Gieseking sofresse contestação devido a determinadas liberdades. Contudo, sua leitura do conjunto da criação de Debussy ainda é referência. Por extensão, Maurice Ravel recebeu de Gieseking execuções memoráveis, mormente da Sonatina, Gaspard de la Nuit et Miroirs. Dessa última, ouçamos Alborada del Gracioso:

https://www.youtube.com/watch?v=7Ifp5KStkv4

Estou também a me lembrar de meu pai chegando em casa com um grande álbum azul a conter a integral para piano de Mozart em LPs. Foram dias não esquecidos a ouvir Walter Gieseking.

Clique para ouvir a Sonata em Lá Maior K. 331 de Mozart (Sonata da Marcha Turca)

https://www.youtube.com/watch?reload=9&v=NHlJ1oP2Kq8

Duas curiosidades sobre Gieseking que me foram transmitidas pelo saudoso amigo e ilustre pianista Arnaldo Estrella (1908-1980). Gieseking esteve mais de uma vez no Brasil dando inúmeros recitais sequenciais, mormente no Rio de Janeiro. Quando na cidade, invariavelmente se deslocava para a região serrana a fim de caçar as famosas borboletas e, para tanto, trazia o material de coleta necessário. Contou-me também sobre fato largamente conhecido. Gieseking aprendera a memorizar muitas obras apenas através da leitura visual fora do teclado. Certamente uma das razões de seu repertório gigantesco. Comunicado pelos agentes do Rio para que tocasse obra do nosso Villa-Lobos bem conhecida do público brasileiro, o pianista recebeu a partitura antes da viagem, memorizou-a durante a travessia e à noite apresentou-a memorizada no recital . Nas viagens subsequentes, apresentava não apenas Villa-Lobos, como também a emblemática Il Neige!, de Henrique Oswald.

Bernard Gavoty enfatiza, ao entrevistar Gieseking antes de um recital: “Uma circunspecção emana desse colosso tão mestre de seus dedos que vos olha sem pestanejar, como se houvesse contemplado somente paisagens campestres”.

Para o estudante de piano, Gieseking tem considerações que levam à reflexão: “Nunca realizo exercícios técnicos. Entendo-os quase como supérfluos. Após aprender arpejos, escalas e outras noções fundamentais da técnica do piano, ele as sabe! Para que fatigá-lo e inutilmente aborrecer os dedos? Creio que, quando as mãos aprendem a tocar com igual força, o que pode parecer pouco natural, mercê do fato de que a força dos dedos não ser a mesma, e de que os ouvidos habituaram-se a controlá-los, a técnica lá está, disponível em qualquer momento”. Tem-se de compreender a extraordinária facilidade pianística demonstrada desde a infância a corroborar o pensamento incisivo de Gieseking.

Nas gerações do passado, a interpretação de Gieseking, ainda hoje referencial, era considerada icônica. Ele mesmo sentia-se “feliz e orgulhoso” pelo fato de seu nome estar sempre associado à obra de Debussy. Os estudos musicológicos que se acentuaram na segunda metade do século XX, passaram a entender a obra do compositor francês de maneira mais “hermética”, poder-se-ia afirmar. Há muita intuição, por parte de Gieseking na interpretação das criações de Debussy (Clair de Lune é um exemplo de diáfana concepção da peça), e esse frescor, até pioneiro, ainda desperta vivo prazer ao ouvirmos suas gravações.

Clique para ouvir Reflets dans l’eau, primeira do 1º tríptico de Images para piano de Claude Debussy:

https://www.youtube.com/watch?v=fPpIJB-0Nzk

O acúmulo de mensagens estimulando-me nessa vertente provisória que dei ao blog tem sido benfazejo. Perpetuar esse passado “remoto” é o caminho preciso para entendermos que a interpretação, a desconsiderar a essência essencial de uma partitura, não é razoável. A partitura possibilita liberdade, em termos, ao intérprete, liberdade contudo acentuadamente entendida por tantos como liberalidade de toda ordem. E essa deveria ser combatida, mas, nessa civilização do espetáculo, que visa  preferencialmente o “choque”, lentamente nos distanciamos da tradição. Pouco a fazer.

The French-born German pianist Walter Gieseking (1895-1956), considered one of the most extraordinary musicians of the last century, is particularly remembered by his recordings of the complete piano works of Mozart, Debussy, Ravel, Beethoven’s sonatas, the two books of Bach’s ‘The Well-Tempered Clavier and significant pieces by more modern composers. His photographic memory allowed him to memorize unfamiliar repertoire with ease and then perform it flawlessly. Though more rigorous music critics complain his rendition of Debusssy’s works is not totally faithful to the composer’s intentions, to date his Debussy recordings are regarded as benchmarks by many fellow musicians and music-lovers. I’ve seen him play once in São Paulo. A huge athletic figure with a sensitive touch, capable of exploring the limits of sonority of which the piano seemed capable.

 

 

 

 

 

Quando um acontecimento permanece ao longo da existência

A virtuosidade é enobrecida, ou melhor, desaparece,
para não ser senão música,
o que significa uma virtuosidade superior.
Yvonne Lefébure (1898-1986)
(depoimento sobre Alfred Cortot)

Ele tocava Schumann como ninguém,
absolutamente divino.

Vladimir Horowitz

Consagrado no mundo inteiro, reverenciado por suas interpretações personalíssimas dos românticos, mormente Chopin, Schumann e Liszt, assim como dos franceses Fauré, Debussy e Ravel, Alfred Cortot, quando em viagem ao Brasil no início dos anos 1950, despertou interesse inusitado. Naqueles tempos do pós-guerra, os grandes mestres que nos visitavam já haviam transposto a sétima década. Para nossa geração, Alfred Cortot era uma dessas lendas que prosseguiam a encantar um público já habituado a ouvir os denominados “monstros sagrados”. O notável pianista franco-suiço nasceu em Nyon na Suiça.

O ilustre pianista quando em São Paulo para recital, ouviu-nos antes de seu ensaio, mercê da intercessão do Presidente da Comunidade Francesa do Rio de Janeiro, Monsieur Yves Mainguy, amigo de meu pai. Foi em uma manhã. Tínhamos, João Carlos e eu, 11 e 13 anos, respectivamente. Quis ouvir-nos interpretar duas obras cada um. Ao final, apenas uma despedida formal e voltamos à rotina de estudos. Dias após, Monsieur Mainguy recebeu carta do insigne pianista datada de 12 de Fevereiro de 1952, reenviando-a ao meu pai. Na adolescência as dúvidas quanto ao futuro são muitas, a não ser que fato singular, aliado à vocação imperiosa, torne-se guia pela vida. Sempre que períodos de incertezas durante a juventude surgiam, a carta de Alfred Cortot era-me um farol a indicar o destino. Um parágrafo do notável músico me foi decisivo: “Malgrado minha repugnância, ou talvez malgrado meus escrúpulos em envolver os pais para que dois jovens membros de uma mesma família abracem uma carreira da qual conheço todas as dificuldades atuais, fiquei muito impressionado com os dons evidentes dos dois jovens pianistas, estimulando M. e Mme da Silva Martins a fazê-los prosseguir seus estudos em Paris, no momento que julgarem oportuno”. Guardo o manuscrito autógrafo como relíquia preciosa. Após láurea no Iº Concurso Nacional da Bahia (1958) e consequente bolsa do governo francês, permaneci anos em Paris prosseguindo estudos.

Apesar de adolescente, lembro-me de seu recital em São Paulo e ficou-me na memória a sonoridade inefável que extraía do piano do Cultura Artística. Nenhum malabarismo, nenhum excesso, tampouco gestual. E tudo lá estava. Décadas distantes da atual civilização do espetáculo.

Suas gravações, em LPs que ouvíamos à exaustão, traduziam flexibilidade singular da frase musical. Harold Shonberg sintetiza dados concernentes à interpretação de Cortot, comentando não apenas as qualidades (“The Great pianists”, 1963): “Cortot cometia erros e por vezes tinha falhas de memória, problemas para um pianista de menor envergadura. Em relação a Cortot, essas falhas não tinham importância. O público as aceitava como se aceitam cicatrizes ou defeitos de um quadro de um dos antigos mestres da pintura. Pois, apesar desses equívocos, era óbvio que Cortot possuía uma grande técnica e era capaz de qualquer tipo de fogo de artifício quando a música assim o exigia, como se torna evidente na fabulosa gravação da Rapsódia Húngara nº 11, de Liszt. Como artista interpretativo, foi uma das mentes mais capazes de sua época. Em sua execução havia a combinação de autoridade intelectual, aristocracia, virilidade e poesia”.

Clique para ouvir a gravação, datada de 1925, da Rapsódia nº 11, de Liszt, na interpretação de Alfred Cortot:

https://www.youtube.com/watch?v=TSDhxxB_IyQ

Um grande mestre do piano, mas também excelso professor, conferencista, regente, camerista e literato com inúmeras obras sobre música. Suas edições de trabalho de inúmeras composições do período romântico são extraordinárias, pois penetram no universo poético e imaginário tantas vezes insondável para o intérprete.

Nesse aspecto, tão fulcral para o entendimento de uma partitura sob todos os ângulos possíveis, se a edição URTEXT, fundamental para que a leitura de uma partitura não transgrida o que está proposto pelo compositor, a edição comentada por mestres das dimensões de Alfred Cortot (Chopin, Schumann, Liszt), Arthur Schnabel (Sonatas de Beethoven), Ferrucio Busoni (J.S.Bach), como exemplos, recria a essência criativa, imaginária, espiritual, poética e, mesmo que por vezes o pensamento do revisor-editor estabeleça contornos outros no sentido de impedir uma execução apenas linear, essa percepção extramusical estimula o voo sereno e seguro da execução. Quantas gerações não sorveram essas “viagens” desses grandes mestres? As obras comentadas por esses três luminares do piano foram e continuam faróis sempre revisitados. Como não apreender a mensagem de Cortot ao passar a uma aluna sua visão de O poeta fala, última das peças das Cenas Infantis, de Schumann?

https://www.youtube.com/watch?reload=9&v=aWr36hIgIuU

Chopin foi um de seus eleitos e suas gravações, mesmo as quase centenárias, são ainda hoje referências. Clique para ouvir a Fantaisie Impromptu op. 66 de Chopin:

https://www.youtube.com/watch?v=7Chn0qYtpkM

Nos diálogos com o crítico musical de Le Figaro, Bernard Gavoty (“Alfred Cortot – Les Grands Interprètes”, texto de Bernard Gavoty. Genève-Monaco, René Kister, 1953), o entrevistador colhe determinadas frases incisivas do pianista. Perguntado sobre seus mestres, revela-os, mas ressalta dois momentos decisivos. Ao tocar, nos seus 15 anos, a Sonata Appassionata, de Beethoven, para o grande pianista russo Anton Rubinstein (1830-1894), mercê da intercessão de seu mestre Louis Diémer (1843-1919), recebe daquele a seguinte observação: “Beethoven não se toca, reinventa-se”. Cortot diz a Gavoty que a frase o salvara para toda a vida. Gavoty insiste: “Rubinstein o liberava de um escrúpulo?”, ouvindo de Cortot: “Em presença de uma obra-prima, há duas atitudes: respeito ou violação. Tocar segundo o desejo do autor, ou na tradição de seus alunos, o que isso significa? O que é necessário é dar curso à imaginação, recriar, fazer reviver a obra. Interpretar é isso…”. Uma segunda frase jamais esquecida pelo pianista. Dias após a morte de Claude Debussy, a viúva Emma convida Cortot para lhe tocar os Préludes de seu marido. A filha do casal ouviu atentamente e, ao final, Cortot pergunta à Chouchou (Claude-Emma) se era assim que seu pai tocava, recebendo como resposta da menina: “Oh! Não, papai escutava preferencialmente”. O pianista, intérprete das obras de Debussy e seu amigo, lembrar-se-ia de frase do compositor “… as lições do vento que passa e nos conta a história do mundo…” Uma jocosa resposta a Bernard Gavoty revela que, apesar de ter sido pianista excelso, tem certo “desprezo” pelos apenas virtuoses: “Não me fale dos virtuoses! São muitos – e tão pouca coisa… Fazem-me pensar nos galos…Os infelizes acreditam que basta um cocorico para que surja o sol”.

Bernard Gavoty entrevistou Alfred Cortot em 1953. Uma sua opinião, passados quase setenta anos, soa perene: “Maneira única de interrogar o teclado, de emocionar um aparelho composto de cordas e martelos, destinado pois à secura, esse dom de fazer cantar aquilo que deve soar, esse arco invisível, esses traços multicoloridos, esses acordes de veludo, essa neve em flocos… – o milagre de Cortot é que o piano cessa de ser piano!” Como camerista integrou um dos mais importantes trios da história: Alfred Cortot (piano), Jacques Thibault (violino) e Pablo Casals (violoncelo).

 

Em 1952, Alfred Cortot, após tournée pelo Japão, recebeu da imperatriz uma ilha de presente, Cortoshima. O ilustre agraciado soube do significado em japonês: “Solitário na ilha dos sonhos”.

In this post I write about the Franco-Swiss pianist Alfred Cortot (1877-1962), world-renowned for his very personal interpretation of Romantic composers such as Chopin, Schumann and Liszt, as well as the French Fauré, Debussy and Ravel. His visit to Brazil in the early fifties stirred vivid interest. On that occasion, my brother and I, then 11 and 13, had a chance to play for him, who wrote an encouraging letter shortly afterwards. Pianist, chamber music player, conductor, teacher and writer of valuable books on musical interpretation, Cortot knew how to extract unusual sonorities of his instrument without unnecessary gestures and grimaces, a kind of piano playing that is disappearing. In spite of memory lapses and clinkers in later years, he was one of the most celebrated classical musicians of the 20th century. To date his Chopin recordings are considered essential. I have kept his handwritten letter as a precious relic, a beacon showing me the way in moments of doubt.