A partir de um fragmento

E, entretanto, é possível que nada mude na vida que vemos;
mas seria isso a única coisa que importa,
não existimos verdadeiramente
que pelos atos que podemos ter em mãos,
como as pedras da grande estrada?
Maurice Maeterlinck

Estava a pensar em texto que escrevi bem anteriormente (vide “A comunhão das Pedras”, 20/03/07). Nele salientava meu encantamento pela reunião das pedras irregulares que, agrupadas cuidadosamente, erigiram um templo. A torre da Capela Saint-Hilarius, em Mullem, é toda em pedras, que se justapõem em harmonioso conjunto e lá estão há um milênio. Catedrais na Idade Média foram construídas por gerações de trabalhadores conhecedores de toda a técnica da construção. Nesses casos, basicamente foram erigidas com pedras regulares, magnificamente talhadas e nesse encaixe perfeito são admiradas até o presente. Fervor que passava de pai para filho nesse difícil mister de erigir catedrais. Sabiam os que iniciaram os trabalhos que pósteros continuariam a edificação. Alguns, entre legião de trabalhadores anônimos, deixaram nas partes internas das paredes seus nomes ou o de suas amadas. Monumentos de fé que guardam longo segmento da história ocidental.

O pensamento voltado à Capela Saint-Hilarius tem razões profundas. Há duas décadas lá tenho realizado minhas gravações, sempre sob a direção de um dos mais experientes engenheiros de som do planeta, Johan Kennivé. Regressarei a Mullem para a gravação de meu 25º CD, tema que será pormenorizado nos próximos blogs. A cada regresso ao Templo sinto essa comunhão que positiva a reflexão e a espontaneidade das mensagens que serão registradas pelos microfones atentos. Sei que contarei com as melhores condições possíveis. Já fui convidado para integrar lista de pianistas para gravar por selo mundialmente reconhecido. Contudo, dirigentes escolheriam a cidade, o engenheiro de som e o autor do texto dos CDs. Testemunhas assistiram à cena. Recusei diplomaticamente. Saint Hilarius é meu refúgio musical e espiritual, Johan Kennivé, o excepcional engenheiro de som, e o piano, sempre impecável.

Consultei o texto mencionado de Março de 2007. Escrevia após uma de minhas gravações: “Fico a pensar nessa comunhão das pedras. Durante mil anos elas contemplaram a vida e a morte. Sinto-me um privilegiado. Estar a repartir os sons que busco desde sempre com as pedras místicas, que juntas formam a capela de Saint-Hilarius, é um bálsamo. Não por acaso, ao tocar, meus olhos dirigem-se a esse interior mágico”.

O que me leva a pensar nesse congraçamento das pedras, motivo sempre de reflexão, é a destinação de pedras e pedras. As denominadas “nobres” saem de blocos informes e são lapidadas por ourives, verdadeiros artistas que atingem o âmago da pedra, burilando-a e dando à gema preciosa determinada forma. Essa pedra, após cravação, ornará em diversas montagens anéis, colares e outros adornos femininos.

A pedra extraída de gigantescas pedreiras têm incontáveis destinações e dimensões. Através da história, foram trabalhadas desde a Antiguidade, tanto em blocos enormes como nas dimensões menores. Sempre as admiro nos mais diferentes formatos.

Meu dileto amigo e musicólogo de mérito, José Maria Pedrosa Cardoso, e eu caminhávamos no ano passado pelos jardins de Oeiras, bem perto de sua morada em Portugal, quando comentávamos que as pedras que ornam as calçadas portuguesas têm um formato que, transplantado para o Brasil, aqui teve aceitação e, não sem razão, essas calçadas assim revestidas receberiam o nome “portuguesas”. Durante nossas andanças encontrei na sarjeta duas desgarradas em forma de “cubo”. Para espanto de meu amigo, recolhi-as e coloquei-as em minha pequena mochila.

Esses dois fragmentos, semelhantes às nossas pedras “portuguesas” difundidas nos calçadões, têm significado. Uma das pedras está sobre meu piano de estudos e a outra dei-a à neta Valentina, que aguarda de minhas viagens não uma peça artesanal com fins comerciais, mas algo que represente a essência viva da tradição de um povo. Já tem mínima coleção de “coisas”. Poder-se-ia ampliar o conceito e entender essas pedras como um dos muitos símbolos de uma nação. Quem não as conhece em Portugal? Valentina sabe que eu tenho mais apreço por esses símbolos do que por objetos com destinação à gigantesca legião de turistas.

Lembrei-me de inserir, nas várias faces do cubo irregular sobre meu piano, frases sobre pedras de escritores que sobrevoavam minha mente: Saint-Exupéry, Hermann Hesse, Somerset Maugham… e outras tantas na pedra da Valentina.

Ao vê-la sobre o piano, o amigo Jorge me perguntou: “mas ela é igual às milhões que encontramos em nossas calçadas no Brasil”. Pode bem ser, mas as duas pedras em questão atravessaram o Atlântico para ter um significado que vai bem além. Essas pedras testemunharam o ato de terem sido recolhidas e adotadas, pois certamente pertenciam a alguma calçada. Foram talhadas com muito labor por mãos operosas de experientes trabalhadores. Agrupadas como em jogo de puzzle, quantas não foram as posteriores centenas de milhares de passadas sobre elas? Ao longo da existência, Portugal e sua cultura como um todo pertencem ao meu universo de afetos.

No próximo blog comentarei o repertório escolhido para a gravação na Capela de Saint-Hilarius em Mullem e o recital que darei na pequena cidade, no dia anterior às gravações, com as obras que serão registradas. Desde 1999 tenho assim agido. As reações são diferentes diante do público e dos microfones. O importante é encontrar o amálgama. E ele se dá.

On stones — of the Saint-Hilarius chapel, of European cathedrals, of the Portuguese pavements —, their mysticism and relation to my return to Mullem to record my 25th CD.

O legado e as adversidades inexoráveis

Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo,
e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas.
Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece
enquanto ouve a história.
Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo,
mais profundamente se grava nele o que é ouvido.
Quando o ritmo de trabalho se apodera dele,
ele escuta as histórias de tal maneira
que adquire espontaneamente o dom de narrá-las.
Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo.
E assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados,
depois de ter sido tecida, há milênios,
em torno das mais antigas formas de trabalho manual.

Walter Benjamin
(“O Narrador”)

Gerou uma série de comentários o diálogo entre Eduardo Lourenço (filósofo) e Álvaro Siza Vieira (arquiteto), apresentado e comentado no blog anterior. Saliento a posição do professor titular da FFLECH, Gildo Magalhães: “Discussão transcendental a que se coloca entre os três: Eduardo Lourenço, Siza e você. Sim, penso que fazemos coisas porque acreditamos na eternidade, não do além, mas daqui mesmo, seja na forma de descendentes, seja na de obras que criamos. Nenhum cataclismo tem tirado esta fé, talvez porque, em outro polo, somos a espécie que tem consciência de sua própria morte e, diferentemente de outras espécies, criamos cultura. Dentro de pouco tempo, relativamente pouco em nossa escala de poucos milhões de anos da espécie humana, seremos capazes de fazer como Jor-El do planeta Krypton do Super-Homem: se nosso planeta se destruir, iremos para outra estrela ou galáxia recomeçar. Nossa fé assim o exige, contra todos os desânimos dos pessimistas”.

Presencialmente, de bate-pronto, o amigo Marcelo me questiona: “Não acreditar no legado como permanente não é negar a eternidade da criação”? Pergunta de difícil resposta, mormente pelo fato de nada sabermos sobre a perenidade das coisas criadas. Todavia, o tema foi motivo para uma conversa prolongada durante dois curtos num café de minha cidade-bairro, Brooklin-Campo Belo. Marcelo é o senhor das perguntas. Formula-as como respira e tem sempre algumas sobre os blogs publicados aos sábados.

Não acredito na eternidade das coisas criadas, sejam elas artísticas ou científicas. Seria lógico acreditar que as criações reproduzidas, mesmo que perdendo a “aura”, subsistam mais longamente. A Música seria uma exceção a depender da permanência do homem na Terra, pensando-se na extinção do terráqueo sine die.

Ao dizer que “O problema é que, consciente ou inconscientemente, escrevemos como se fôssemos eternos. Sem essa ilusão de eternidade como coisa nossa, nós não escreveríamos nada de realmente grandioso. O que os homens querem é que aquilo se transfigure numa espécie de estátua, que se pode tocar, viver e permanecer através dos séculos”, o filósofo português Eduardo Lourenço não apenas menciona a “ilusão da eternidade” como a vontade, por parte do criador, de “querer” a perenidade da obra.

Curioso, Marcelo insiste em não considerar que o acervo material erigido há milênios desaparecerá, a não ser pela destruição do planeta. Pontuei no blog anterior alguns exemplos de destruição. As causas naturais, a cada ano mais acentuadas devido à degradação do ambiente como um todo, destroem muitas obras de interesse artístico, sem contar a lamentável legião de mortos. “E São Paulo?”, pergunta-me o amigo. A megalópole soube indiscriminadamente eliminar o pouco que restava de nossas edificações que poderíamos considerar históricas. O que ficou da Av. Paulista? Estou a me lembrar que, durante dois anos (1954-1955), estudei no Liceu Eduardo Prado na Av. Paulista. Curso noturno que me obrigava, ao regressar à casa por volta da meia-noite, a percorrer parte da avenida e admirar os casarões construídos nas fronteiras dos séculos XIX-XX, antes de pegar o bonde que me levava até a confluência da Av. Rodrigues Alves, de lá caminhando até nossa morada. Desse legado da Av. Paulista sobraram alguns casarões, tristes testemunhas de um conjunto arquitetônico que representava nossa história. Paris, Londres, Bruxelas e tantas mais cidades preservaram imóveis. A sanha imobiliária tem sido ilimitada. Teriam seus mentores mínima visão cultural? A destruição do legado é fruto em parte da ignorância humana, essa igualmente ilimitada. Apesar dessa “ilusão da eternidade” de que nos fala Eduardo Lourenço, nem sequer trégua ao que deve ser preservado existe. Sob o plano cultural e moral, a destruição — também implacável e sistemática — dos valores humanísticos é evidência de que não há reversibilidade.

Seria possível admitir que a conjuntura atual, a que diariamente assistimos, leva-nos ao posicionamento cético. Os benefícios trazidos pela internet estão sendo seguidos progressivamente pelo desinteresse do jovem pela leitura. Faixas etárias acima ainda sofrem menor influência, mas também são atingidas na medida em que essas geringonças, surgidas após o celular simples, sempre in progress e com várias denominações, são profusamente utilizadas. Assistimos lamentavelmente à retração das livrarias que, segundo estatísticas, tiveram em um ano diminuição porcentual de vendagem acima de um dígito em nosso país. Triste realidade.

Estou a me lembrar do romance “Fahrenheit 451” (1953), do escritor norte-americano Ray Douglas Bradbury (1920-2012), e do excelente filme (1966) do diretor François Truffaut (1932-1984) a partir do livro homônimo. Ambos tiveram enorme repercussão crítica. Se na essência, como teria afirmado o autor do romance de ficção científica, “Fahrenheit 451” buscava atingir a televisão como meio “destruidor” do ato secular da leitura, poder-se-ia dizer que hoje essa ação tem caráter devastador com a evolução internética. No romance, o personagem Guy Montag, bombeiro, tem a missão de destruir livros numa sociedade futura em que opiniões individuais são expressamente proibidas, o que elimina por completo o espírito crítico. O fio de esperança restaria na presença da memória dos resistentes, voluntariamente capazes de reter obras inteiras condenadas ao extermínio. O romance de Bradbury ratifica tragédias culturais anteriores, como a queima dos instrumentos musicais monárquicos — cravo como exemplo maior — durante a Revolução Francesa (1789), a queima de livros na Alemanha nazista e a destruição sistemática de acervos de bibliotecas, instrumentos musicais e outros bens relacionados à Cultura Ocidental no período da Revolução Cultural Chinesa, iniciada em 1966.

A menção a “Fahrenheit 451” teria correlação com o legado a ser preservado e essa qualidade extraordinária do homem e de qualquer ser vivo, a memória, “a mais épica de todas as faculdades”, segundo Walter Benjamin em “O Narrador”. Benjamin já observava que a oralidade é essencial à continuidade do legado imaterial.

Seria possível acreditar que a destruição lenta e sistemática das obras materiais, fato inequívoco, não impedirá aos pósteros a preservação da memória do que teria sido. Podemos sempre imaginar pela imagem e através da História os monumentos da Antiguidade que desapareceram. Junta-se, àquilo que aprendemos, a imaginação, que idealiza para cada indivíduo o passado mais remoto. Ao menos a lembrança…

This post resumes the subject discussed previously about the human legacy to History. I am convinced of the impermanence of our tangible heritage. This is particularly true in a city like São Paulo, in continual demolition and construction thanks to the devastating fury of private interests that systematically sacrifice valued historic landmarks. But I am also convinced that the memory we hold in our brains will ensure the preservation of what has been and provide communities with a sense of continuity.

A partir do “trailer” de “O Labirinto da Saudade”

Em todo o caso, que se sinta só;
mas não vá supor que é muito grande;
da sua grandeza, se a tiver real,
fará parte o supor que os outros são pequenos.
Agostinho da Silva
(“Entrevistas”)

Recebi de dileto amigo português, o arquiteto António Menéres, “trailer” do filme de Manuel Gonçalves Mendes, “O Labirinto da Saudade”, a partir do livro homônimo do notável filósofo, ensaísta e professor Eduardo Lourenço (1923- ). Denominado “O Bar da Eternidade”, essa pequena e substanciosa cena de quatro minutos revela temas fulcrais da existência. Há um diálogo de extrema relevância entre Eduardo Lourenço e uma figura igualmente ilustre da cultura em Portugal, o arquiteto Álvaro Siza Vieira (1933- ).

Inicialmente Siza Vieira questiona: “O que ficará de nós, homens e mulheres, se é que alguma coisa fica, quando partirmos em férias?” a receber do filósofo: “Quem dera que a resposta à sua pergunta fosse essa tão lírica e tão futurante como o partir em férias. A nossa própria morte é-nos tão hostil que nós nem em sonhos morremos. A morte verdadeira é a do outro. A do outro que existiu para nós. Que foi tudo para nós, que foi o absoluto para nós. E essa que é a morte real. As outras mortes são ilusórias, mesmo a nossa, sobretudo a nossa”.

Segue-se um diálogo enriquecedor em torno da vida e da morte, das incertezas a envolver a complexa dialética em torno da passagem inexorável, mormente se considerada for a etariedade dos insignes envolvidos.

Siza Vieira observa nada sabermos sobre nascimento, vida e morte, mas sim sobre continuidade através das gerações que se sucedem, “continuidade da vida, e quando um de nós morre há filhos, netos, música para músicos, artes, escrita, literatura… Não desaparecemos completamente. O mundo continua. A História, no fundo, tem esse papel de sugerir ou de fazer real uma continuidade, agora a morte não”. A colocação de Siza provoca resposta essencial de Eduardo Lourenço: “O problema é que, consciente ou inconscientemente, escrevemos como se fôssemos eternos. Sem essa ilusão de eternidade como coisa nossa, nós não escreveríamos nada de realmente grandioso. O que os homens querem é que aquilo se transfigure numa espécie de estátua, que se pode tocar, viver e permanecer através dos séculos”. Após louvar Siza Vieira, dele recebe o testemunho: “Eu faço os meus projetos com a ideia de que… essa ideia de que é para ficar. Mas pensando friamente, não é bem assim. Também a construção, muitas vezes, não é durável. É vulnerável…”. Eduardo Lourenço de imediato afirma: “Hiroshima existia e foi destruída em nove segundos. É como se fossem feridas que a Humanidade faz a si mesma, não é? E essas sem reparação. Porque foram destruídas e não podem ser reconstruídas de nenhuma maneira. Aquilo que de mais belo há na humanidade é que nós somos submersos às mesmas forças que regem realmente o mundo. Porque é que nós escaparíamos, quando tudo o que foi criado está condenado a desaparecer?”, conceitos concluídos por Siza Vieira: “E se assim não fosse talvez se tornasse insuportável”.

Consideremos as observações sobre o legado, esperançosas inicialmente por parte de Siza Vieira, mas com a ressalva “… não é bem assim”. Por sua vez, Eduardo Lourenço, mais cético nesse item, diz “… tudo o que foi criado está condenado a desaparecer”.

O legado de obra física sempre foi mais vulnerável ao desaparecimento através dos séculos. São incontáveis os monumentos, obras de arte, pinturas, bibliotecas que sucumbiram ao tempo por causas naturais, intencionais ou imprevistas. Alguns exemplos são implacáveis: Biblioteca de Alexandria, no período helenístico, teria sido destruída pelo fogo; Biblioteca Real de Lisboa arrasada durante o terremoto de 1755, assim como inúmeros monumentos históricos da cidade; Catedral Notre-Dame de Reims semidestruída pelos bombardeios alemães na guerra 1914-1918; pinturas de Manabu Mabe, que seriam expostas em grande retrospectiva no Japão, perderam-e em acidente aéreo em 1978; O Templo de Baalshamin, edificado no início do primeiro milênio, explodido pelos integrantes do então denominado EI em 2015; Museu Nacional do Rio de Janeiro e seu extraordinário acervo consumido pelo fogo em 2018, assim como parte considerável da Catedral de Notre-Dame de Paris bem recentemente. O tempo inexorável corroeu tantas obras arquitetônicas na Grécia e na Roma Antigas, assim como na Península Ibérica e em muitos outros pontos geográficos. Considere-se ainda a ação de descaso de tantas autoridades espalhadas pelo mundo, que pouco fazem para a conservação de obras de arte expostas às intempéries.

Esses poucos, mas significativos exemplos, ratificam o posicionamento de Eduardo Lourenço. Contudo, exceções ou exceção há nesse legado. Pensando-se na literatura e na música, verifica-se que a herança não se atém à obra de arte material inerte que habita galerias e museus e é vista por legiões de frequentadores. Walter Benjamin, no ensaio publicado em 1936, “A obra de arte na era da sua reprodutividade técnica”, já argumentava que a reprodução em tantos formatos de uma obra de arte causou a perda da “aura”, depreendendo dessa constatação, a autenticidade. O hic et nunc desapareceria para sempre. Considere-se que a obra de arte material, única e autêntica, nessa categoria incluindo-se a pintura, a escultura e a arquitetura, tem sofrido constantemente o lento e inexorável desaparecimento.

Quanto à literatura, ela independe da presença física dos manuscritos, pois obviamente subsiste sem contestação através da reprodução. Os museus, arquivos e bibliotecas dão a guarida necessária aos textos originais, majoritariamente distantes do público leigo e consultados por especialistas quando se faz necessário. Portanto, perdurarão em edições divulgadas em versões para tantas línguas. O teatro, que traduz em cena o que reza segmento literário, vive do intérprete, ou seja, do ator. Este é geograficamente regionalizado, pois sua atuação é realizada frente àqueles que compartilham o mesmo idioma. Sua internacionalização é basicamente exígua, sendo que o texto teatral não o é, pois vertido para outros idiomas encontrará atores de outros países para divulgá-lo e o legado estaria garantido.

Seria a música a única área em que o legado estaria salvaguardado geograficamente em sua abrangência territorial plena. Os sons são compreendidos em todos os rincões e o amálgama compositor-intérprete não tem fronteiras. Todos os povos compreendem a unicidade da Música.

Partituras, assim como textos literários, podem subsistir sob a proteção de entidades que os abrigam. Se essas desaparecerem por múltiplas razões, a reprodução ad infinitum garante parte essencial de acervos, perenidade pois. Para a interpretação o legado teria tempo finito, pois mesmo a saber que processos tecnológicos estariam sempre in progress, haverá um momento, acredita-se, que distorções sonoras quanto às centenárias gravações ocorrerão, como já acontece com muitos registros fonográficos das primeiras décadas do século XX. Saliente-se que extraordinários avanços tecnológicos têm conseguido resultados surpreendentes quanto às antigas gravações.

Num outro patamar, a arte cinematográfica seria aquela, talvez, que mais tem sofrido a ação do tempo. Quão mais antigos os filmes de qualidade, mais ficam restritos a públicos especializados, admiradores da arte específica. Para o grande público, ávido do novo, mais acentuadamente se processa o distanciamento com o passado cinematográfico. Contudo, igualmente no caso, o legado estaria garantido mercê de processos novos, que têm conseguido êxito na restauração de originais. Sob outra égide, o filme se internacionaliza através das legendas ou das dublagens, estas sempre lamentáveis.

Nada sabemos sobre a duração do planeta. Incógnita. A destruição sistemática das reservas naturais, os conflitos os mais generalizados movidos por motivos de várias ordens: religioso, ideológico, racismo; guerras intestinas e terrorismo; descaso; a decadência dos costumes, tudo não estaria tornando a terra uma gigantesca panela de pressão com mínimo escape? Para os mais pessimistas, toda discussão em torno do legado esbarraria nessa desesperança. Todavia, a presença constante da morte, mors certa hora incerta, assim como a necessidade de se pensar em legados, ainda movem a humanidade, apesar da sábia advertência de Eduardo Lourenço: “Porque é que nós escaparíamos quando tudo o que foi criado está condenado a desaparecer?”.

This post discusses views about life, death and human legacy to History. It was inspired by a conversation between philosopher Eduardo Lourenço and architect Álvaro Siza Vieira, two of the most influential Portuguese intellectuals of the 20th and early 21st centuries.