O pensamento abrangente de André Souris

Uma forma sempre é conquistada
sobre outra forma da qual ela aparenta manter traços.
Nem precocidade, tampouco o gênio
permitem retomar diretamente a vida:
ser precoce é somente copiar mais cedo.
André Malraux

Uma das diferenças basilares entre blog privado e as publicações mediáticas é o tempo. Basicamente jornais e revistas, premidos pelo imediatismo decorrente de um lançamento de livro previamente divulgado pelos meios de comunicação, concentram resenhas, tantas vezes redigidas às pressas, sobre edições recentes. Quando determinado livro de passado remoto ou não tão distante recebe o olhar acalentado pelo passar dos anos, poderíamos situar a crítica como comentário. Desvinculada de pressões, o comentário de livro não hodierno tende a receber maior debruçamento por motivos vários, a preponderar o tempo de decantação daquele que se propôs a escrever.

Ao longo dos anos, inúmeras vezes mencionei no espaço reservado ao blog o livro “Conditions de la Musique” (Bruxelles-Paris, Université de Bruxelles, Centre National de la Recherche Scientifique, 1976), do multifacetado músico belga André Souris (1899-1970), compositor, regente, professor, crítico, editor de obras antigas. Um grande mestre. Desde sua publicação, “Conditions de la Musique” é um dos livros que mais consulto, tão forte o conteúdo reflexivo emanado em tantos compartimentos da imensidão que é a Música. No presente blog abordarei alguns aspectos dessa magnífica obra.

“Conditions de la Musique” desfila em suas 311 páginas temas essenciais da área musical. Tem-se duas seções distintas. Em uma primeira, que leva o título do compêndio e dividida em três capítulos, são estudados primeiramente segmentos essenciais da escrita musical: forma, música e escrita, a função do intérprete. Em outro capítulo: o silêncio e a música, contraponto, polifonia e harmonia, matérias instrumentais. Num terceiro, André Souris estuda as fontes da criação musical: estilo, timbre e técnicas instrumentais, as correspondências (a concepção do mundo), abordagens espirituais do músico. Na segunda seção, “Escolhas e outros escritos”, André Souris analisará com acuidade temas relativos a gêneros musicais, música e filme, literatura. Destaquem-se: “Imitação da música de cinema”, “Sartre e os músicos”, “Sobre o dodecafonismo das origens aos nossos dias”, “As fontes sensíveis da música serial”. A seguir, aborda textos fulcrais com títulos precisos: “Bach, hoje”, “O espaço mozartiano”, “Debussy e a nova concepção do timbre”, “Poética musical de Debussy”, “Debussy e Stravinsky” e “O senso do sagrado na música de Stravinsky”.  Depois, Souris retorna, sobre outra égide, aos elementos da escrita musical, como: “Notas sobre o ritmo concreto”, “Sobre alguns termos fundamentais do vocabulário musical…”, “Problemas da análise”, “Alaúde e cravo franceses por volta de 1650”.

A fim de transmitir conceitos essenciais de André Souris, de alguns desses segmentos extraí passagens que entendo de definição, pois o autor em suas colocações evita o abominável “achismo”, perigoso artifício que sensibiliza os incautos. Os escritos têm a antecedê-los a profunda reflexão.

Inicialmente vários segmentos reunidos fazem parte de seminários oferecidos e o didatismo parece evidente, mesmo que desprovido de qualquer empáfia ou doutrinação, o que é salutar. Considera que “O espírito de nossa empreitada será pois deliberadamente atual, documental e crítico. Quanto ao método, ele se inspirará na maiêutica, de maneira a deixar a cada um a liberdade de seus movimentos e talvez ajudando-o a descobrir possibilidades insuspeitas”.

Considerando a forma musical, André Souris emite conceitos de interesse: “Uma nota, uma cor, uma linha isolada são apenas abstrações. A única realidade é a ‘Gestalt’. Poderíamos traduzir aproximadamente esse termo por estrutura, organização, totalidade, mas o emprego sistemático da palavra nestes últimos vinte anos fez com que a entendêssemos sob o significado vago de forma”. Continua: “As formas são unidades orgânicas individualizadas e limitadas no espaço e no tempo; são totalidades de funções, determinadas somente pelas leis da organização. O papel essencial da teoria da forma é a de descobrir e formular essas leis”.

No capítulo reservado à “La Musique et l’Écriture”, Souris apreende a sensação da escuta do compositor ao ouvir pela primeira vez uma sua criação: “Não receio revelar um segredo, geralmente bem guardado! O autor que ouve pela primeira vez sua música de orquestra mergulha num cenário outro. Ele havia imaginado os temas, as nuances, as harmonias, os movimentos dos quais ele se considerava o mestre e criador, e eis que ele ouve outra coisa daquilo previsto. Escuta uma música que, exatamente, não é dele. Fato curioso, raramente ele sofre. Sua única preocupação é a seguir encontrar os traços de seu trabalho de escrita, reconhecer os temas, esquemas, ritmos. Uma vez certo de ter reconhecido esses materiais, não lhe resta outra coisa senão aceitá-los – e por vezes glorificar-se diante de seus confrades”.

Sobre a prevalência do piano: “Quanto à composição, ela se reduz mais e mais no emprego de receita de escrituras. A invenção real não poderia eclodir que sobre um instrumento. Foi a música para piano que basicamente se beneficiou e, como todos os compositores tocavam piano, toda composição foi inicialmente concebida para esse instrumento para ser a seguir, por um jogo de escrita, passada para outros instrumentos e, mesmo de maneira ampla, para orquestra”.

Quanto ao intérprete, temática tantas vezes colocada neste espaço, André Souris tem posicionamento singular. Segundo ele – consideremos o compositor seu coetâneo -, “o compositor deve ter para com o intérprete uma política de prudência, observar seus reflexos, distinguir em seu comportamento tudo que possa servi-lo e tudo que possa ser rejeitado. Em suma, deve o compositor estudar a psicologia do intérprete, se ele quiser recuperar sobre a sua composição um certo poder perdido”. Se esse procedimento não é possível em relação aos compositores do passado, ficaria o alerta para os executantes no sentido do rigor frente à partitura contemporânea.

Estende seu pensamento ao tripé compositor, intérprete e ouvinte, tema igualmente recorrente, mas com uma percepção de interesse no olhar de André Souris: “A relação entre os três é extremamente diversa, por vezes contraditória, outras, mais confusa. Para o ouvinte, compositor e intérprete fazem parte de uma só coisa, mesmo que ele acredite distingui-los. Na realidade, o ouvinte preocupa-se pouco com as intenções do autor e só tem interesse pelo que ouve, o que, reflexão feita, temos que aprovar”.

Souris pormenoriza as atitudes do intérprete: “Seu desejo de música é primeiramente de ordem íntima, estritamente limitado a si mesmo. Ele mantém com seu instrumento um comércio orgânico que lhe proporciona prazeres elementares. Fazer o som, isso provoca uma alegria sensual, como o ato de mastigar uma boa pasta, moldar a argila. O trabalho do som leva-o a um estado sonhador entorpecido o qual lhe compraz, sonho até certo ponto biológico e que retira do instrumento que faz nascer o som a qualidade substancial. Por esse ato elementar, o instrumentista se torna seu próprio instrumento”.

André Souris se indispõe com a quantidade de matérias da área musical a que o aluno é submetido no capítulo reservado às “Démarches spirituelles du musicien”: “O que me parece mais grave nos estudos musicais é que eles extenuam a sensibilidade auricular através de trabalhos forçados sobre os instrumentos. Isso ocorre porque o aprendiz virtuose produz o som durante dez horas por dia e na sequência seu estudo, ao invés de ser orientado para o som que ele produz, é inteiramente concentrado sobre os meios de o produzir. Basta abrir não importa qual obra consagrada ao piano, por exemplo, para nos inteirarmos da preocupação predominante ou mesmo excessiva dos pedagogos”.

“Conditions de la Musique” armazena quantidade de considerações da maior abrangência. No próximo blog comentarei alguns outros escritos contidos no livro de André Souris, mormente os que se estendem de J.S.Bach à música serial.

Comments on the book “Conditions de la Musique”, written by André Souris (1899-1970), the multifaceted Belgian composer, conductor, teacher and music critic. Souris, a real master in his field, addresses the various compartments of the art of  Music with proficiency and originality. In the present blog I mention some aspects of this excellent work, which I visit on a regular basis since it was first published.


Um imenso pianista e professor

A música “clássica” – como sói dizer-se –
será talvez de todas as práticas musicais,
aquela onde é mais comum este “esquecimento em vida” com umas poucas excepções.
Talvez porque o número de decisores é muito pequeno e o isolamento social é patente.
António Pinho Vargas

O desaparecimento, no dia 21 de Fevereiro, de José Carlos Sequeira Costa comoveu todos aqueles que apreciam a interpretação no mais alto nível. Certamente o mais completo pianista português da segunda metade do século XX e um dos nomes referenciais do piano nesse período em termos mundiais. Nascido em Luanda, Angola, desde cedo mostrou dons excepcionais. Estudou em Portugal com o pianista, compositor e professor Vianna da Motta (vide blogs: “Vianna da Motta – 1868-1948″ e “Seria Vianna da Motta lembrado à altura de seu mérito?”, 07/07/2018 e 14/07/2018, respectivamente), continuando posteriormente com Edwin Fisher, Marguerite Long e Jacques Février.  Em 1951 recebeu o Grande Prêmio da Cidade de Paris no Concurso Internacional Marguerite Long-Jacques Thibaud. Criou e presidiu o Concurso Internacional Vianna da Motta. Sequeira Costa foi presença constante nos júris dos mais respeitados concursos internacionais de piano: Tchaikowsky em Moscou (seis vezes), Chopin em Varsóvia, assim como dos Concursos Leeds, Marguerite Long, Rubinstein, Montréal e Sviatoslav Richter. Como professor formou gerações e esteve ligado à Universidade de Kansas a partir do final da década de 1970. Orientou inúmeras master classes ao longo da carreira. Sequeira Costa apresentou-se em muitas das principais salas do planeta. A discografia do pianista é imensa e em seu repertório vastíssimo, mormente voltado ao período romântico, figuravam a integral das Sonatas de Beethoven e as integrais para piano e orquestra de Rachmaninov, Schumann e Chopin.

Em entrevista à Agência Lusa (RTP), o mais dileto aluno de Sequeira Costa, o pianista Artur Pizarro, afirmaria logo após o infausto acontecimento: “Ao nível da música clássica em Portugal, foi um dos mais importantes pianistas de qualquer século, uma das grandes figuras do século XX e ainda do XXI, quer como pianista, quer como organizador de eventos de música clássica, de festivais – foi diretor artístico de vários -, do concurso Vianna da Motta e como pedagogo”, afirma Artur Pizarro. Considera ainda: “Tudo aquilo que ele me explicava nas aulas, tudo o que fazíamos de trabalho juntos eu depois tive o privilégio de vê-lo fazer na prática, seguindo-o em múltiplos concertos em qualquer canto do mundo, e via-o fazer em palco aquilo que minuciosamente trabalhávamos nas aulas”. O notável musicólogo português Mário Vieira de Carvalho assim se pronunciou em 2010: “Chamar-lhe ‘um dos mais respeitados pianistas portugueses’ é, no mínimo, uma monumental gaffe. Pianistas notáveis há-os, sem dúvida, em Portugal, mas grande parte deles deve-o, em larga medida, a Sequeira Costa, que não é só um primus inter pares”.

Minha memória reporta-se aos anos de 1959-1962, período em que estive muito próximo a Sequeira Costa, mercê inicialmente de uma missiva de apresentação de nosso ilustre compositor Camargo Guarnieri (1907-1993).  Tinha aulas regulares em Paris com os lendários Marguerite Long (1874-1966) e Jean Doyen (1907-1982), período em que Sequeira Costa fixara parcialmente sua residência na cidade. Como estudei nos seis primeiros meses de 1959 com Jacques Février (1900-1979), que fora também professor de Sequeira bem anteriormente, o mestre francês não cansava de elogiar as qualidades excepcionais de seu antigo aluno. Retive duas afirmações do mestre Février. Disse-me que Sequeira Costa possuía a técnica pianística mais perfeita que conhecera e que jamais alguém poderia tocar “Gaspard de la Nuit”, a extraordinária obra de Maurice Ravel, como ele. Recentemente, em Janeiro último, conversava com meu amigo e ex-colega da USP, o compositor Willy Corrêa de Oliveira, sobre pianistas. Ao mencionar Sequeira Costa como um dos grandes, Willy afirmou desconhecê-lo. Tirei para o amigo cópias de vários CDs que conservo com plena admiração. No dia seguinte Willy me liga a dizer que jamais ouvira “Gaspard de la Nuit” como a interpretada por Sequeira Costa, a corroborar a opinião de Jaques Février. Encantaram-no igualmente as interpretações dos Concertos para piano e dos Estudos de Chopin, assim como as transcrições para piano magistralmente realizadas por Rachmaninov.

Em 1959 estreitamos relacionamento e no mês de Julho do mesmo ano seguimos em seu Simca Chambord de Paris para Lisboa, pernoitando em Bordeaux, Valladolid e finalmente Lisboa. Éramos cinco no carro: Sequeira Costa a dirigir, a excelente pianista e professora Tânia Achot-Haroutounian, que se tornaria sua segunda esposa, a irmã Natacha e Madame Achot, mãe das duas. Tânia obtivera anteriormente o terceiro prêmio no Concurso Chopin em Varsóvia e se tornaria posteriormente professora da Escola Superior de Música de Lisboa. Chegados a capital portuguesa, fiquei hospedado em casa do pai de sua primeira esposa, o ilustre Dr. João Couto, Diretor do Museu das Janelas Verdes, preparando-me para recital na Academia de Amadores de Lisboa a convite do insigne compositor Fernando Lopes-Graça (1906-1994).

Em Paris estudava com os dois mestres mencionados, mas já àquela altura tinha uma curiosidade com um gênero fundamental para o pianista, o “Estudo” para piano. Sendo Sequeira Costa um dos grandes intérpretes do planeta dos Estudos de Chopin, com ele trabalhei pormenorizadamente os dois cadernos do compositor polonês e alguns Estudos de Scriabine, àquela altura compositor ainda pouco divulgado no Ocidente. Tardiamente, a partir de 2000, gravaria na Bélgica cinco CDs dedicados ao Estudo para piano, inclusive as integrais dos compostos por Scriabine e Debussy. Conselhos de Sequeira quanto à interpretação desse gênero específico jamais foram esquecidos. As aulas com Sequeira Costa não interferiam na preparação que realizava das obras do repertório tradicional propostas por Jean Doyen e Marguerite Long. Diria que foram um grande enriquecimento. Igualmente estudei com Sequeira a Sonata op. 35 em si bemol menor e a Fantasia op 49 de Chopin, assim como as Sonatas op. 31 nº3 e a op. 81ª, “Les Adieux”, de Beethoven.

A didática do imenso pianista tinha a aura da abrangência. Alguns aspectos da interpretação eram-lhe fulcrais, o que o impedia de pensar em qualquer concessão. Gostava de assinalar todas as intenções na partitura. Cuidava com rigor estrito do estilo do compositor depositado em cada obra, sem contudo desvincular-se da emoção. A frase musical adquiria sob sua tutela plasticidade e flexibilidade ímpares. Dinâmica, articulação, agógica eram-lhe vitais. Antolha-se-me que elementos essenciais para a compreensão da mensagem contida numa partitura, como legato e substituições (dos dedos numa mesma nota), adquiriam para ele importância capital. Incorporei seus ensinamentos sobre a utilização dos pedais e de seus inúmeros matizes. Quantas não eram as passagens que realizava em fortíssimo e com pedal una corda (pedal esquerdo abafador), a fim de conseguir timbres diferenciados!!! A composição para piano subtraía muito do orquestral em sua concepção. Estava sempre a pensar em algum instrumento ou conjunto deles. Assim procedia nas Sonatas de Beethoven. Assisti a marcantes recitais em que interpretou várias delas. Nesse tão rico período admirava com fervor duas escolas pianísticas tão distintas, a do excelso Jean Doyen e a do bem mais jovem Sequeira Costa.

Durante o período em Paris, Sequeira Costa veio ao Brasil para recitais e apresentações com orquestra. Ficou hospedado em casa de meus pais em São Paulo. Em 1961 viajou para o Irã, onde permaneceria certo tempo, pois Tânia Achot é iraniana. Gostaria que eu fosse a Teerã, a fim de concluir preparativos para o Concurso Tchaikowsky em Moscou no ano de 1962. Poucas semanas antes de minha viagem, a oposição ao Xá Mohammad Reza Pahlavi inquietou-o e sugeriu-me não me deslocar naquele momento. Regressei ao Brasil e preparei-me em São Paulo para o Concurso e a gravação da primeira etapa está hoje em CD lançado em 1998. Na capital da União Soviética, após o concurso, realizei para a Rádio Central de Moscou gravação de música brasileira.

A partir de 1963 nossos contatos epistolares foram minguando. São muitas as razões que apontam para distanciamento entre as pessoas. Fixou-se nos Estados Unidos e por duas vezes em anos diferentes, casualmente, encontrei-o à porta da Fundação Gulbenkian em Lisboa. Cumprimentos apenas protocolares.

Fatores individuais insondáveis seriam a causa de o pianista Sequeira Costa não ter tido a divulgação que outros poucos luminares do piano granjearam e continuam a merecer. Foi um luminar na acepção. A  mídia globalizada sabe como manter personagens sob o foco dos holofotes, direcionando as luzes de acordo com tantos interesses estranhos. As gravações do notável pianista português, que estão entre as mais cuidadas da história da interpretação pianística, permanecerão para gáudio dos ouvintes desta e de outras gerações.

Sequeira Costa foi para mim mais do que um orientador, mas um farol a indicar o caminho da não concessão. Conselhos basilares permaneceram por toda a vida. Entender a música sob essa dimensão é uma dádiva. Inalienável.

Reminiscences of my relationship with the Angolan-born Portuguese pianist Sequeira Costa, who passed away last February 21st. A prodigious talent, he was one of the greatest pianists of the 20th and early 21st centuries, especially renowned for his interpretation of the romantic repertoire. I was lucky to take informal lessons from him when we were both living in Paris back in the fifties and with him I’ve learned to choose the path of no concession. An outstanding pianist and teacher, Sequeira Costa has not received from the media the recognition a performer with his accomplishments would deserve, but his recordings are jewels that will remain for the delight of listeners of present and future generations.

 

O ouvinte da musica erudita e suas variações

Realmente não se tem mais a música erudita
nem sequer
como uma desejável “presença culta” na sociedade
– nem isto mais -…
Willy Corrêa de Oliveira
(5 – cinco – advertências sobre a Voragem)

Ao final do último post mencionei opinião do professor titular de História da Ciência FFLECH-USP), Gildo Magalhães, que tão logo texto publicado comenta sobre o papel do ouvinte. Transcrevo a mensagem integral:

“Mais um texto iluminado e iluminante! Tenho pensado em como na música temos na verdade três momentos ou etapas: o compositor, que fixa as ideias num texto, a partitura, que fica daí para a frente imóvel; o intérprete, quando o texto ganha nuances e possibilidades muito variadas, como sabemos; e finalmente o ouvinte, que processa a mensagem transmitida pelo intérprete e a interioriza com possibilidades praticamente infinitas de apreciação – e até mesmo ouvir uma ‘Pour Elise’ exaustivamente tocada, e até abastardada, no caminhão de gás pode aparecer ao ouvinte de repente com uma graça ‘nova’ e essa renovação depende de seu estado de espírito, de emoções ou razões daquelas que só o coração conhece… Não seria esta, aliás, uma função da arte em geral?”.

Em blogs bem anteriores mencionei o ouvinte como figura fulcral no tripé, pois, transmitida a mensagem composta e executada pelo intérprete, cabe a ele a recepção e a apreciação em incontáveis variantes, a depender de sua capacidade avaliativa. Pairaria a pergunta, qual ouvinte?

Citarei episódio, entre tantos. Chamou-me a atenção um concerto a que assisti no deSingel de Antuérpia. A orquestra da Flandres interpretava a segunda Sinfonia de Mahler e eu estava com o engenheiro de som Johan Kennivé, que acompanha minhas gravações desde 1999 em Mullem, também na região flamenga. Comentávamos que a maioria dos ouvintes que lotou o auditório tinha as cabeças brancas. Kennivé, pleno de longa experiência, observou jocosamente que essa constante mostrava que a neve estava a invadir as salas de concerto. Ao longo da existência, mormente nas últimas décadas, tenho sentido essa certeza, que se alastra nos auditórios que abrigam a música erudita. As cabeças brancas, a seguir a tradição, permanecem atentas, a provar que a afluência deu uma guinada. Nomes consagrados pelo valor e com forte impacto mediático ainda levam às salas de concerto público habitué, mas também o soi disant, figura que vai ao espetáculo devido ao renome do intérprete e para ser visto por seus afins, pois o espetáculo, precedido pela divulgação, corrobora o status social. Diminuiu sensivelmente a presença da esperança, o jovem. Fato.

Estou a me lembrar que, nas fronteiras da metade do século XX, em termos de São Paulo, havia uma juventude que disputava com entusiasmo lugares para ouvir grandes intérpretes que nos visitaram nesse período pós-guerra mundial. Amontoávamo-nos diante do guichê para conseguir ingressos para as galerias do Teatro Municipal. Ouvintes curiosos, fortalecidos por escutas anteriores de quantidade de LPs importados, acetatos que eram lentamente exauridos pelo atrito das agulhas. A nossa escuta determinava a presença constante nas salas de concerto e não éramos minoria no público assíduo. A classe dominante que frequentava os concertos tinha no mínimo um verniz cultural e estava presente, a confrontar intérpretes e a prestigiá-los.

Em sendo uma das pontas do triângulo, o ouvinte diletante majoritariamente se inclina para o repertório superventilado. Faz parte de sua índole ter referências, prender-se a determinados compositores consagrados, apreciar ouvir inúmeras vezes a mesma obra, os mesmos estilos, os mesmos períodos históricos. Décadas atrás conversava com médico respeitado entre seus pares e frequentador das temporadas anuais de concerto. Perguntei-lhe se tinha preferências. Mencionou cerca de 10 nomes de compositores consagrados. Insisti, indagando-lhe qual sua reação ao ouvir incontáveis vezes a 1ª Balada de Chopin ou a Quinta Sinfonia de Beethoven. Disse-me que já ouvira dezenas de vezes a célebre Sinfonia do compositor alemão e tinha esperanças (palavras suas) de que ainda teria o prazer de ouvi-la mais algumas vezes. Ainda perguntei ao médico se ele iria a concerto para ouvir obras para ele desconhecidas, do passado ao presente, mas relevantes. Afirmou que não tinha o menor interesse e que certamente o público seria reduzido. Sua posição fazia e faz eco às centenas de outros aficionados que amam música erudita com desideratos precisos: ouvir obra consagrada e de preferência por intérprete igualmente precedido de boa divulgação.

Igualmente já observei anos antes que as estatísticas são claras quanto ao afluxo às salas de concerto. Mais uma obra é lembrada por melodias cantaroladas extra recinto preciso, mais os intérpretes precedidos de longos currículos meritórios e bafejados intensamente pela mídia, insuflada esta pelos agentes, patrocinadores e sociedades de concerto, maior será a audiência. Saliente-se sempre que os holofotes, a gosto de tantos músicos, podem igualmente ofuscar mentes nos auditórios. Referi-me também aos extraordinários intérpretes espalhados pela Europa, principalmente, e que por falta desses “ingredientes” de divulgação se apresentam em níveis extraordinários nas pequenas salas com público basicamente constituído por amantes reais da Música.

A corroborar considerações, foi amplamente divulgada a atuação do consagrado violinista norte-americano Joshua Bell, que se apresenta com seu Stradivarius, em performance que realizou com disfarce no metrô de Washington em 2007. Tocou durante 45 minutos, as pessoas passavam atarefadas diante dele – mais um músico no metrô? – e pouquíssimos entenderam a mensagem. Seria prova de que os ouvidos do cidadão comum não diferenciam qualidade e que, mesmo a reconhecendo, não avaliam o grau da interpretação. No metrô de Paris é comum ouvirmos estudantes do Conservatório executando com razoável qualidade obras do repertório tradicional.

João Pedro, leitor assíduo, escreve-me a tecer comentários sobre o blog anterior e coincidentemente aborda o ouvinte: “Professor, e o público, qual seu preparo, quais suas preferências? Porque os concertos de música contemporânea têm público acanhado?” Pertinentes as perguntas. A maioria dos que vão às salas de concerto são apreciadores da Música. Ela vai para ouvir o que quer ouvir e de preferência por intérpretes bem ventilados pela mídia. Sua preferência vem de outras escutas, longínquas ou recentes, de obras que passaram a fazer parte de seu arquivo mental. Essa maioria tem o que comentar com parceiros das mesmas escolhas. Essa assertiva tem muito a ver com o “medo” do desconhecido. Uma obra ainda não ouvida perde, para essa maioria, elos fundamentais, a avaliação e a discussão comparativa. Desaparece, nesse caso, a hipotética frase: “Gosto mais daquela composição (também conhecida, obviamente), prefiro tal intérprete”. Essas conversas de melômanos alimentam a repetição e são salutares no sentido que, de uma forma menos exegética, a tradição se perpetua. Contudo, obliteram a oxigenação repertorial. Quanto à música contemporânea das mais diversas tendências, o desconhecido fica estampado. Amantes da contemporaneidade comparecem. São poucos e entre esses há até aqueles que são unicamente curiosos. Sempre na visão dos holofotes, se esse repertório é apresentado por intérprete ou conjunto de nomeada, salas podem ficar lotadas.

Agentes, Sociedades de Concerto e dirigentes de teatros oficiais são os responsáveis pelos repertórios apresentados. Perpetuam o que seus semelhantes do passado fizeram. O público tem sido sempre conduzido, pois recebe programação que se habituou a ouvir para gáudio dos promotores. Não obstante, há nuvens sombrias no horizonte. Mario Vargas Llosa já vaticinava o declínio da cultura erudita como um todo. São tantos os fatores que influenciam esse inexorável declínio e, assim como a quimioterapia destrói tumores malignos, igualmente interferindo no que existe de bom no organismo, assim também a tecnologia, que gerou a profusão internética positiva, tem destruído progressivamente a cultura erudita. Exemplos claros nos provedores Uol, Terra, IG e outros mais exemplificam em suas páginas principais, inversamente à basilar parábola do evangelho, a quantidade de joio não sendo queimada, mas irrigada, enquanto o trigo fenece. Creio que há pouco a fazer. Irreversibilidade.

A discussion on how younger generations became alienated from classical music, while senior audiences – the public that goes to classical concerts today – prefer star performers, getting more of the same since they keep hearing the same repertoire again and again. Profit prevails over culture and legions of excellent musicians remain unknown because financial backers opt for a handful of celebrated performers that capture more public and bring in receipts in ticket sales. Just an additional ingredient in the decline of culture as a whole. In today’s world, as weeds flourish, wheat dies.