Considerações de um simples observador

O povo não se importa com os salários desmesurados dos jogadores
como o faz para com os dirigentes das grandes empresas.
O patrão é menos legítimo para o grande público
do que o artista da bola de futebol.
Seria temerário assim considerar.
Mas o patrão impõe restrições, licencia, fixa as regras do jogo.
Em suma, ele possui o poder.
O jogador de futebol, tão rico quanto, oferece o espetáculo.
Um se apresenta e faz sonhar, o outro impõe.
Os imperadores romanos do baixo império
ofereciam ao povo “pão e circo” para governar em paz.
Os dirigentes do ocidente contemporâneo
Oferecem-lhes consumo e espetáculos.
O esporte e as emissões televisivas constituem o essencial do espetáculo.
Patrick Aulnas
(“Contrepoints” – 15/07/2018)

Assisti a muitos embates da Copa do Mundo, que premiou com justiça a seleção francesa, apesar das empolgantes participações da Croácia e da Bélgica na competição maior do esporte bretão. Friso, sempre pela FOX, a meu ver a melhor transmissão dessa competição. Creio mesmo ter sido a melhor Copa, desde a primeira de 1950 quando, com meus pais e irmãos, assistimos ao jogo Brasil x Suécia no Maracanã, com resultado surpreendente para o Brasil. De lá para a atual, estive atento a acompanhar igualmente jogos importantes de inúmeras seleções.

Assistir a jogos pela televisão, apesar dos avanços tecnológicos com quantidade de câmaras fixando todas as jogadas, não tem a mesma garantia de avaliação daqueles presenciados in loco, pois temos a possibilidade de observar todos os jogadores e melhor julgar estratégias. Todavia, pouquíssimas vezes fui a um estádio, sendo que jamais voltaria por motivos óbvios, pela faixa etária e também pela violência que pode advir a qualquer momento nos eventos no Brasil, marcados pela chaga representada pelas torcidas organizadas.

Primeiramente, apesar de saber que todos os continentes têm de ser contemplados, é lamentável não termos na Rússia seleções como as da Itália e da Holanda, como exemplos. Seleções que conseguiram com esforço se classificar em continentes menos qualificados futebolisticamente chegaram quase como sparring partners, figurantes apenas do que estava por vir. Tornaram-se presas fáceis das seleções mais fortes. Se necessárias as participações para contemplar cotas dos continentes, enfraqueceram o campeonato na primeira fase, que poderia ter outra dimensão se países mais representativos estivessem presentes. Contudo, a FIFA é a FIFA, com tantos imbróglios através da história. Em 2026 teremos 48 seleções!!! Sempre interesses estranhos que desconheceremos.

Gostei muito da Bélgica, que nos eliminou. Futebol moderno, defesas sólidas, linhas bem ajustadas, contra-ataques rápidos e organizados. Percebia-se a orientação do treinador. A seleção inglesa não decepcionou. Muitos são jovens e campeões de ligas de faixa etária mais baixa. Creio que em 2022 poderá ir mais longe, com a geração atual amadurecida. A experiência e o entrosamento da seleção belga mostraram-se presentes e os ingleses não resistiram. Ambas as seleções praticaram o jogo coletivo.

Quanto à América Latina, a cada ano ficamos mais distantes do futebol jogado na Europa. Um exemplo que se concretiza todos os anos é a diferença abissal existente entre jogos da Liga dos Campeões da Europa e a nossa triste Libertadores da América. Estádios espalhados pela América sem condições, gramados por vezes semidestruídos, iluminação nem sempre condizente, participação de equipes sem a mínima condição, mas contemplando interesses. Verdadeiramente tristes “espetáculos”. Na Copa ora finda, os países da América Latina sucumbiram. Menção apenas à seleção do Uruguai que lutou com determinação, mas também não suportou a superioridade europeia no presente. Assisti aos seus jogos e era notório o empenho, a raça, como costumam dizer, dos jogadores do Uruguai, capitaneados pelos excelentes Godin, Suarez e Cavani, este que, contundido, não esteve presente no jogo da eliminação de seu país frente à poderosa França. A Argentina realmente decepcionou.

Quanto ao Brasil, já se podia prever a desclassificação. A tantos amigos dizia eu em Março que o treinador Tite poderia ser seduzido pela mídia e por poderosos patrocinadores e que não deveria levar Neymar, que retornaria aos treinos um mês antes da competição, após operação a que foi submetido no pé direito. Não só não estaria em condições ideais como poderia desestabilizar estratégias antecipadamente preparadas. Tite não considerou a hipótese de não contar com o jogador, mantendo-o no elenco, sempre a precisar sua importância decisiva na competição. Um dia possivelmente saberemos as razões da manutenção de Neymar entre os jogadores, assim como outros que vinham de lesões e não deveriam estar na Rússia. A essa observação soma-se a tendência de nossos treinadores em manter as “famílias” constituídas pelos jogadores eleitos. Parreira (2006), Dunga (2010) e Scolari (2014) assim agiram e Tite continuou a famigerada sina. Tirou Gabriel Jesus ou Neymar, que não estavam bem? Não. Manteve a “família”. Tite não soube introduzir mudanças fundamentais durante os jogos, como outros técnicos o fizeram. Na desclassificação frente à Bélgica não agiu a tempo após estar a seleção em desvantagem. Faltou-lhe esse algo a mais, decisão no momento certo. Sob outro aspecto, em todas as suas entrevistas mantinha constantemente o discurso ex-catedra. Contudo, paradoxalmente, não teve pulso para evitar a distração fatal causada pelo excesso de familiares e amigos dos jogadores, destes retirando o foco essencial. A TV cansou de mostrar esse cerco, que desvia a atenção fulcral.

Estratégias dos técnicos dos quatro países que chegaram às semifinais bem evidenciaram o jogo coletivo, distanciando-se do pensamento a ter como eixo paradigmático um salvador da pátria, caso específico de nossa seleção. Os quatro técnicos semifinalistas mudaram estratégias no decorrer dos embates. Uma constatação é evidente, pois não há um só técnico no Brasil que possa ser convidado para dirigir um médio ou grande time europeu. Triste retrato de nosso futebol, mal congregado em torno de uma CBF totalmente desmoralizada.

Decantado em prosa e memes, o caso Neymar foi emblemático. Talentoso, muito acima da média, está a se perder pelo excesso de autoconfiança e pela visualização excessiva, sempre a querer figurar acima de seus reais méritos. Tem como ídolos a serem ultrapassados Cristiano Ronaldo e Messi. Seu talento não está à altura dos dois e essa evidência só não é vista por alguns cronistas, que teimam em considerá-lo superior (sic). Em recentíssima pesquisa da Pluri Consultoria, especializada no ramo esportivo, na qual aborda a desvalorização do jogador, lê-se: “Neymar entrou na Copa do Mundo cercado de expectativa Global pela condição de protagonista da maior transferência da história do futebol mundial (€ 222 milhões), e frequentemente apontado como sucessor natural de Cristiano Ronaldo e Messi”. Prossegue a consultoria: “O jogador, porém, não se comprometeu com a bola nos pés, não foi decisivo como se esperava dado seu talento. E, sem a bola, amplificou em escala planetária os piores aspectos que há tempos se apontavam sobre sua carreira”. O tempo dirá.

Não vejo a menor possibilidade de haver uma elevação do futebol praticado na América Latina. Não há como. Confederações eivadas de corrupção, agremiações tendo de vender para o Exterior talentos recém-surgidos e repatriar jogadores em faixa etária a apontar para o fim de carreiras, resultando na contratação de outros no mercado local ou de países latino-americanos apenas de qualidade bem mediana, fazem com que o futebol praticado no Brasil e no continente seja sofrível, sem exceções. Chauvinismo “impede” para todos esses países a contratação de descendentes imediatos de imigrantes, daí termos seleções “puras”. Assim procedia a Europa. Hoje, países como a França, Inglaterra, Bélgica, Alemanha, entre outros, já entenderam não poder prescindir em suas seleções do talento de afrodescendentes de última geração ou, então, de originários do Médio Oriente. Acredito que dificilmente nossa América Latina chegará às próximas finais.

Essas observações de um apreciador do futebol-arte desde os 12 anos de idade impedem-me de assistir aos jogos de nossos campeonatos e até da Copa Libertadores da América. Fundamento essencial como o passe não é tido como prioridade e o número errado desse quesito nos confrontos é extraordinário. A Europa se reestruturou no âmbito do futebol de base, tido como essencial pelas categorias acima. Crianças aprendem prioritariamente os básicos fundamentos. Sob outros olhares, a violência em campo e fora dele, as estratégias pobres de treinadores que permanecem fazendo rodízio, trocando constantemente de clubes durante as temporadas, são alguns fatores que inibem quantidade cada vez maior de admiradores, induzindo-os a assistir ao melhor futebol do mundo, já há tempos praticado na Europa. Na falta de bons espetáculos em nossas terras, observo com entusiasmo, tantas vezes, jogos importantes dos campeonatos espanhol, alemão, inglês, italiano e francês. A ida de Cristiano Ronaldo para a Juventus na Itália despertará enorme curiosidade para milhões de aficionados pelo esporte bretão da península itálica. Espalhados pelo mundo serei um desses admiradores do magistral jogador português.

As Russia 2018 World Cup came to an end with the victory of France, I raise some considerations about the sad situation of Brazilian football today. South America didn’t do well. Brazil, as I have expected, did not make to the finals. The time the Brazilian squad was an example to be remembered is gone. We are not part of the elite soccer any more. At domestic cup competitions we see second class coaches and players, no game plan, corruption, violence, the need to sell the best players to the European soccer leagues, stadiums in very poor conditions, with ruined pitches and defective lighting. Without good matches at home, I can do no more than watch with envy the outstanding technical quality offered by the European championships.

Esquecimento em publicações relevantes

Car la technique, c’est le son.
Alain Lompech

Abordei no post anterior descaso de nossos países irmãos quanto à efetiva divulgação de seus vultos mais expressivos. Portugal e mormente o Brasil pouco fazem para que ilustres músicos, escritores e pintores de mérito sejam conhecidos nos países em que a cultura erudita ainda é cultivada em vários níveis. Despreparo daqueles que mantêm o poder, desinteresse de agentes e da mídia. Dessas três categorias culturais, a música é a mais sacrificada, como se para governantes e promotores a música de concerto fosse realmente de menor expressão do que artes correlatas. Acentuadamente a música descartável, efêmera e de qualidade duvidosa invade espaços e mentes das novas gerações. Não observado com profundidade, esse distanciamento se agudiza entre as duas manifestações, a que perdura durante séculos e a efêmera, que, à maneira de Leviatã, conquista inteiramente a escuta de gerações de adeptos, para gáudio da indústria do espetáculo.

Há alguns anos li o livro “Les Grands Pianistes du XXème Siècle”, de Alain Lompech (Paris, Buchet Chastel, 2012). Ao todo, 44 pianistas entre os maiores, nascidos de 1873 a 1947, são evocados em relatos não profundos, mas a salientar aspectos até desconhecidos das biografias publicadas. Talvez ao autor a ideia de transmitir determinados fatos, por vezes triviais, pudesse dar às narrativas uma maior aproximação do leitor com o artista em pauta. Essa proximidade torna a leitura agradável, sem contudo ultrapassar os limites até de crônicas bem elaboradas. Tantas são as vezes que Alain Lompech, para melhor enquadrar o pianista no cenário proposto, insere algum outro nome relevante, não necessariamente pianista, a complementar seu desiderato de apresentar o pianista em seu labor, nas especificidades interpretativas, no contato com o público e com seus diletos, no convívio social e na recepção crítica. Sem ser profundo, “Les Grands Pianistes du XXe Siècle” chega a agradar. Para músicos e parcela considerável do público que frequenta concertos os nomes são bem conhecidos, de Sergei Rachmaninov (1873-1943) a Catherine Collard (1947-1993) e mais os outros 42 pianistas que nasceram entre essas datas limites.

Se, para explicar a ascendência pedagógica de Edwin Fischer (1886-1960), o autor debruça-se sobre seu mestre Martin Krause – um dos últimos alunos de Liszt -, professor que foi de Claudio Arrau e de meu mestre durante seis anos, José Kliass, igualmente o faz quando aborda Vladimir Sofronitzki (1901-1961), pormenorizando o pianista que o antecedeu, Anton Rubinstein (1829-1894), a explicar uma sequência da denominada escola pianística russa. Essas inserções complementam um conhecimento maior da formação de cada intérprete mencionado no livro.

Um dos aspectos mais marcantes em “Les Grands Pianistes du XXème siècle” refere-se aos repertórios. Frisa bem o autor a quantidade de “concertos históricos” realizados pelos pianistas nascidos no século XIX e que prosseguiram brilhantes carreiras durante a primeira metade do século XX, por vezes algumas poucas décadas mais. Arthur Rubinstein (1887-1982) é um deles. Lembraria que, durante meus anos de aperfeiçoamento em Paris, ainda era relativamente comum essa façanha. Chamaram minha atenção e de meus colegas àquela altura comentários a respeito de uma série de 17 recitais diferentes oferecidos por Arthur Rubinstein. Não me recordo a cidade onde se deu essa extraordinária realização. Curiosa a observação do autor ao afirmar que Arthur Rubinstein – nenhuma relação de parentesco com o mencionado Anton Rubinstein – era “polonês de nascimento, alemão de educação musical, francês de educação intelectual, mas de coração espanhol e brasileiro”. Complementa que isso se deve às turnês pelo Brasil, amizades com a intelligentzia do país e o fato de ter “descoberto” o jovem Villa-Lobos. Acrescentaria que frequentou a morada do nosso mais importante compositor romântico Henrique Oswald (1852-1931), dele se tornando amigo. Dos pianistas brasileiros, dois são lembrados: Guiomar Novaes (1896-1979) e Nelson Freire (1944- ).

Alain Lompech dedica bom espaço à excelsa pianista Marcelle Meyer (1897-1958). Lembro-me que cheguei em Paris com bolsa do governo francês no ano da morte da pianista. Durante os anos que permaneci na capital da França praticamente seu nome não era lembrado. Sabia-a extraordinária, pois na juventude meu pai adquirira a obra para teclado de Jean-Philippe Rameau (dois LPs) e a de Igor Stravinsky por Marcelle Meyer. Nas minhas muitas viagens posteriores à França, seu nome permanecia sempre bem abaixo de sua excepcional qualidade. Lompech observa que a pianista preferia outras atividades àquela de “estar cortejando empresários, a fim de realizar a grande carreira internacional que seu talento certamente mereceria e que na realidade não aconteceu”. Frequentou e gravou repertório do barroco à Stravinsky, foi a intérprete do “Groupe des Six”, que lutava por uma arte genuinamente francesa e se opunha ao wagnerismo e ao até então denominado impressionismo. Gravaria obras de Debussy, Ravel (integral), Mozart, Beethoven, Schubertt e Chopin, apresentando-se com orquestra sob a regência dos grandes nomes de seu tempo. Um de meus primeiro blogs foi sobre Marcelle Meyer (vide: “Marcelle Meyer – A redescoberta merecida”, 06/03/2007)

Lembrar de Marcelle Meyer, nascida em França, diga-se, hoje totalmente reconhecida, faz considerar a ausência no livro de Alain Lompech do grande Vianna da Motta, tema do blog anterior. Quando afirmo que não há a devida divulgação de Vianna da Motta em esfera internacional, e essa publicidade teria de ser originária de instituições do governo português ligadas à cultura, é pelo fato de que ocultá-lo tem triste resultado, pois apequena o que é expressivo em Portugal. Em dois livros referenciais sobre pianistas, Vianna da Motta não é estudado: “Great Pianists on Piano Playing”, de James Francis Cooke (New York, Dover, 1999), e “Great Contemporary Pianists Speak for Themselves”, de Elyse Mach (New York, Dover, 1991). Os autores se debruçam sobre 30 e 25 pianistas, respectivamente. No caudaloso “Los Grandes Pianistas” (Buenos Aires, Javier Vergara, 1990), de Harold Schonberg (1915-2003), conhecido crítico do New York Times, Vianna da Motta é mencionado entre muitos e mereceu um pequeno parágrafo de oito linhas nas 419 páginas do livro, mormente por ter sido aluno de Franz Liszt. Nessas reduzidas linhas observa: “Nas poucas vezes que deu concertos despertou admiração” (sic). Justamente Vianna da Motta que se apresentou centenas de vezes em inúmeros países e foi detentor de imenso repertório!!!

Acredito que teria de haver uma ampla divulgação de sua obra como compositor em termos mundiais. Certamente o pianista Vianna da Motta emergiria nessa promoção. Se tantos pianistas são lembrados e a eles capítulos são dedicados, por que não Vianna da Motta!!! Está por merecer uma maior acolhida internacional.

A few thoughts on the oblivion of some great pianists by the media and musical associations. Think for example of the brilliant French pianist Marcelle Meyer, who even at her time has never received from the media the recognition a performer with her accomplishments would deserve. Her name passed into obscurity shortly after her death, and only recently her reputation as one of the greatest keyboard virtuosi of the XXth century in French was reestablished. The multitalented Portuguese pianist, composer and conductor Vianna da Motta was not so fortunate. Because little has been invested in the promotion of his works outside Portugal, he is virtually unknown outside the boundaries of his native country. Had this been done and today his name would have received the international acclaim he deserves.

Um dos maiores músicos de seu tempo

É possível que eu chame sobre mim a indignação
de muitos dos que acaso lerem estas palavras
se disser que Viana da Mota,
desaparecido ainda não há muito do número dos vivos,
era um artista grande demais para o nosso pequeno meio.
Nós nunca reconhecemos perfeitamente
o que havia de excepcional no músico que ele foi,
e pode dizer-se que, afora meia dúzia de espíritos desempoeirados que,
logo desde o início da carreira do ilustre virtuoso,
tiveram a intuição do seu valor,
nunca a generalidade dos seus concidadãos,
incluindo neles o chamado escol intelectual,
o considerou propriamente um dos
seus.
Fernando Lopes-Graça
(“Viana da Mota” – 1949)

Portugal celebra o sesquicentenário de nascimento do pianista, regente, compositor, pedagogo e musicógrafo José Vianna da Motta, notável e abrangente músico português. Em seu país estão a se prestar dignas homenagens ao seu legado importante para a cultura lusíada e mundial. Certamente é um dos maiores nomes da música de seu tempo em termos mundiais. Houvesse nascido em país com maior visibilidade, outra seria sua projeção post mortem. O mesmo não se daria com Fernando Lopes-Graça, um dos grandes compositores do século XX e pouco interpretado no Exterior? Haveria de existir uma mentalidade Cultural, com C bem maiúsculo, por parte dos governantes e promotores para que tal acontecesse.

Neste espaço fixarei dois aspectos fundamentais relativos à carreira de Vianna da Motta como pianista extraordinário,  mantenedor de um repertório vastíssimo, e as suas nove turnês pelo Brasil, que se estenderam de 1896 a 1926.

Após estudos preliminares no Conservatório de Lisboa e graças a um talento extraordinário, aos 14 anos ei-lo em Berlim, agraciado pelo rei D. Fernando II e sua consorte, a Condessa de Edla. É na Alemanha que Vianna da Motta terá o pleno desenvolvimento. Aos 19 anos estuda com Franz Liszt (1811-1886), que confia em sua ascensão. Dois anos após, com Hans von Bülow (1830-1894). Com afinco estuda composição. Terá pela Alemanha admiração e fidelidade durante toda a existência.

Compositor de reais méritos, Vianna da Motta frequentou vários gêneros, principalmente o piano solo, canto e piano, camerístico com piano, quarteto de cordas, assim como relevantes criações para orquestra, onde desponta a Sinfonia “À Pátria”. Compôs um Concerto para piano e orquestra e uma “Fantasia Dramática” para a mesma destinação.

Musicógrafo, Vianna da Motta legou obras relevantes, entre elas “Música e músicos alemães: Recordações, ensaios, críticas” (Coimbra, Instituto Alemão, 1941) e “A Vida de Liszt” (Porto, Edições Lopes da Silva, 1945). Nesta, sente-se toda a admiração do aluno pelo grande mestre, assim como a teria, sob outra égide, por Hans von Bullow, tendo inclusive colaborado com o livro “The Piano Master Classes of Hans von Bülow” (tradução em inglês – 1993 – do original em alemão – 1896). Inúmeros artigos enriquecem sua bibliografia, mormente sobre as criações de Liszt e Wagner e igualmente a respeito da técnica e interpretação pianística. Exerceu a crítica musical e sua vasta atividade epistolar continua a ser objeto de estudo e investigação por parte de musicólogos.

Pedagogo de grande mérito, formou gerações de pianistas, entre eles Sequeira Costa (1929- ), Helena de Sá e Costa (1913-2006), Nella Maissa (1914-2014) e Fernando Lopes-Graça (1906-1994). Em plena Primeira Grande Guerra fixa residência na Suíça (1915-1917), onde conduziu curso de virtuosidade no Conservatório de Genebra. De 1919 até 1938 dirigirá o Conservatório Nacional de Lisboa, onde morou nesse período.

Creio firmemente que, no universo luso-brasileiro, não tivemos um vulto pianístico à altura de Vianna da Motta. Sim, pianistas excelsos do passado no Brasil são merecidamente cultuados, contudo a abrangência do pianista e músico completo português ultrapassa qualquer avaliação comparativa. Foi, sem a menor dúvida, um dos grandes pianistas de seu tempo.

Como pianista, apresentar-se-ia com o mais retumbante sucesso prioritariamente em Portugal e Alemanha, mas também realizou extensas tournées pela América do Sul, assim como recitais e concertos na França, Inglaterra, Espanha, Itália, Dinamarca, Rússia e Estados Unidos. Privou da amizade dos maiores músicos do período, entre os quais grandes pianistas, compositores e regentes.

Através dos anos, neste espaço tenho salientado a repetição ad nauseam de repertórios, paradoxalmente qualitativos, que infelizmente não têm sofrido oxigenação. A repetição faz-se presente em nosso país e perpetuada por músicos pátrios e famosos intérpretes internacionais ou brasileiros residentes no Exterior. Programas que, passados pouquíssimos anos ou nem tanto, são repetidos sem rubor. A observação é válida se pensarmos nos intérpretes de antanho, entre eles o grande Vianna da Motta. Impressiona a sua maiúscula frequência a um repertório imenso. Seguindo-se sua trajetória desde a adolescência aos últimos anos da existência, verifica-se um acréscimo constante tanto no que tange o piano solo, como o piano camerístico e com orquestra. O musicólogo e crítico musical João de Freitas Branco, que estudou com Vianna da Motta, em sua obra referencial, “Viana da Mota” (1972), escreve, sempre com ênfase, que o pianista interpretava todas as obras de cor, inclusive a célebre “Sonata Kreutzer” de Beethoven (1770-1827) para violino e piano (tendo ao violino o grande Eugène Isaÿe – 1858-1931). Do compositor alemão foi intérprete de basicamente toda a obra: as 32 Sonatas, a integral da música de câmara com piano, os concertos para piano e orquestra. Nesta conformação, Vianna da Motta teve enorme repertório, como se lê em seus programas. Em seu imenso repertório encontram-se as principais grandes criações do período romântico, assim como criações de tantos outros, do barroco à contemporaneidade, das peças das “Ordres” de François Couperin (1668-1733) à “Islamey” de Mily Balakirev (1837-1910). De J.S.Bach vemo-lo executando parte significativa de sua criação para teclado, incluindo o “Cravo Bem Temperado”, Suítes e transcrições realizadas por seu amigo, o insigne Ferrucio Busoni (1866-1924), com quem solou a dois pianos em certa oportunidade. Admirador de Joaquim Bomtempo (1755-1842), corroborou sua divulgação, que teve continuação através da discípula, a ilustre pianista ítalo-portuguesa Nella Maissa.

O grande compositor Fernando Lopes Graça em seu substancioso livro “Viana da Mota” (1949), considera alguns atributos do pianista: “Um dos mais notáveis traços deste conjunto de faculdades virtuosísticas possuídas por Viana da Mota é a sua grande inteligência musical. As suas interpretações são sempre um modelo de clareza e de probidade artística. O seu respeito pelo pensamento dos Mestres leva-o a consultar edições, cotejando-as, criticando-as, depurando-as, até chegar ao apuramento do texto mais consentâneo não só ao estilo mas também às intenções do autor”. Continua: “Na arte de frasear, então, creio o nosso pianista dificilmente ultrapassável. Tenho ouvido os melhores virtuosos contemporâneos: insuperáveis nalguns aspectos da sua arte, nenhum deles, contudo, me parece atingir a perfeição de Viana da Mota neste capítulo importantíssimo da interpretação musical, que é o fraseado”. Após considerações sobre as muitas virtudes de Vianna da Motta, conclui: “Que mais será preciso, pois, para que se reconheça no nosso grande artista, além de tudo o que já está geralmente reconhecido, mais o seguinte, que o deve ainda elevar mais na nossa admiração e no nosso reconhecimento: que ele é, porventura, o pianista mais equilibrado de toda a brilhante plêiade dos grandes pianistas contemporâneos, como comecei a afirmar?”

Intérprete notável da obra para piano solo de Franz Liszt, inclusive os Concertos e a “Totentanz” para piano e orquestra, foi igualmente o revisor de obras importantes do compositor húngaro, juntamente com Ferrucio Busoni, para a editora Breitkopf & Härtel. Confiadas a Vianna da Motta as composições lisztianas: “Années de Pélerinage”, “Harmonies poétiques et réligieuses”, “Consolations”, “Sonata em si menor”, entre outras. Obras de Beethoven e Schumann também mereceram sua atenção com vias à edição, assim como exercícios voltados à técnica pianística a partir da transcendentes composições de Charles-Valentin Alkan (1813-1888).

Nas nove viagens à América do Sul, Vianna da Motta não se repete. Estava sempre a apresentar repertórios renovados. Impossível compreendermos, na atualidade voltada à repetição de programas, a turnê realizada por Vianna da Motta no Brasil e na Argentina em 1902. Em São Paulo, de 29 de Junho a 9 de Julho apresenta-se com o violinista Bernardo Moreira de Sá em seis récitas. Logo após, entre 15 de Agosto a 27 de Setembro em Buenos Aires, na série de concertos históricos, nove recitais solo diferentes com cerca de 100 composições, todas memorizadas, sendo que nos dias 29 de Setembro e 13 de Outubro apresentou-se interpretando concertos para piano e orquestra!!! Durante esse período na região platina toca também em outras cidades argentinas e em Montevidéu. Em alguns de seus recitais interpretava criações suas. Mencionem-se também os concertos realizados no Brasil, Argentina e Uruguai, de 22 de Abril a 22 de Outubro de 1922. Foram cerca de 50 apresentações, principalmente como pianista e camerista, mas algumas vezes como regente. No Rio de Janeiro, São Paulo e Buenos Aires foram cerca de 10 apresentações em cada cidade. Em São Paulo rege sua Sinfonia “À Pátria”. Várias outras cidades do sul do Brasil e outras do Uruguai e Argentina foram visitadas. Essa extraordinária atividade vem sempre seguida pelas mais receptivas críticas.

Considerando-se a imensa distância entre a Europa e América do Sul naquele início de século, quando as viagens eram feitas por navios ou por carruagens a percorrer o continente, é incrível que nas nove viagens ao Brasil, de 1896 a 1926, Vianna da Motta tenha tocado em tantas cidades brasileiras, do norte ao sul do país: Belém (in memoriam de Carlos Gomes), Recife, Maceió, Juiz de Fora, Rio de Janeiro, São Paulo, Campinas, Santos, Porto Alegre, Pelotas!!! Um de seus biógrafos, João de Feitas Branco já se debruçara em Colóquio realizado em Lisboa sobre as visitas de Vianna da Motta no Brasil (1960).

No Brasil privou da amizade de alguns músicos referenciais, entre os quais Henrique Oswald (1852-1931), Alberto Nepomuceno (1864-1920), Arthur Napoleão (1843-1925), Luigi Chiaffarelli (1856-1923), entre tantos. Na revista “Glosas” (publicação do Movimento Patrimonial da Música Portuguesa, número 9, Setembro, 2013), na minha permanente rubrica, escrevi artigo a salientar o relacionamento entre o notável músico português e Henrique Oswald: “Vianna da Motta e Henrique Oswald”. A Sinfonia “À Pátria” foi estreada aos 21 de Maio de 1897 no Porto e teve a primeira audição no Brasil, no Rio de Janeiro, aos 29 de Agosto do mesmo ano. O compositor cedeu a batuta ao amigo e violinista Bernardo Moreira de Sá. No mesmo programa, Henrique Oswald interpretou seu próprio Concerto para piano e orquestra, composto em Florença em 1890. Certamente um evento histórico.

Infelizmente continua-se no Brasil a negligenciar vultos musicais portugueses relevantes. Quando de comemorações de músicos menos influentes, mas estrangeiros não portugueses, por vezes matérias são publicadas, algumas com grande destaque. O centenário de Lopes-Graça em 2006, assim como anteriormente o tricentenário de nascimento de Carlos Seixas (1704-1742), passaram ao largo. Interessa a Portugal divulgá-los com ênfase no Exterior e, ao Brasil, homenagear essas figuras maiúsculas musicais portuguesas? De qual complexo sofre a “intelectualidade” brasileira quando a música de concerto de Portugal está em pauta? Como tem razões Mario Vargas Llosa ao comentar a decadência irreversível da cultura erudita! Apesar de saber que prego no deserto, continuarei. É o que sei fazer.

The post of this week is about José Vianna da Motta (1868-1948), pianist, composer, conductor and teacher, one of the greatest talents of his time in Portugal. He has studied with Liszt and von Bülow and traveled extensively in Brazil and South America, presenting an astonishingly varied repertoire that included some great lesser known classical composers. He died in Lisbon in 1948, leaving an indelible mark in the Portuguese classical music history.