Questionamentos que levam à reflexão

Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo,
não mudará a vida de ninguém -
mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Eugénio de Andrade (1923-2005)

Recebi mensagens, telefonemas e conversei com leitores em minha cidade bairro Brooklin-Campo Belo. Quase todos querendo saber mais sobre o processo desde o início do projeto a ter como desiderato a gravação em alto nível.

Afirmei anteriormente minha idiossincrasia em pertencer a uma lista de intérpretes de gravadora de ampla divulgação. Convidado por renomada empresa internacional, recusei. Respeitando os pianistas integrantes das listas, que lá não estariam sem méritos, possuidores do talento para preparar repertório indicado para resolução em brevíssimo tempo, entendo que a raiz do problema está nessa pressa em ter a gravação colocada o mais rapidamente no mercado, nivelada a qualquer outro produto encontrável num supermercado. Fato concreto.

Retorno às gravações do passado. Tinham acesso às gravações poucos grandes intérpretes, majoritariamente gravando repertório que lhes era conhecido desde sempre. Apesar dos recursos técnicos rudimentares, se comparados aos da atualidade, as mensagens tinham a aura da definição de um estilo de interpretação, único, indivisível. Podia-se apreender o âmago do artista na interpretação de uma obra, geralmente a pertencer ao repertório tradicional por ele praticado amplamente. Serviram e servem de modelo até o presente. Considere-se o custo elevadíssimo dessas gravações que eram colocadas no mercado por poucas empresas especializadas.

A proliferação de intérpretes, no caso pianistas, acentuou-se nessas últimas décadas. Só do Extremo Oriente chegam ao Ocidente legiões de pianistas que participam dos concursos internacionais de piano. A imensa maioria, pianistas de extrema habilidade, mas poucos com ideias próprias. Verificamos uma quase pasteurização nessas interpretações límpidas e até acrobáticas, diga-se, mas carentes de personalidade em tantas delas. Vencedores de concursos, haverá alguns que serão convidados para as tais listas, somando-se a outros, oriundos principalmente dos muitos países europeus. Todos estarão preparados para, no momento em que forem chamados, atender às necessidades da empresa e rapidamente estudar as obras propostas, o que ratifica, sob o aspecto fulcral do ensino técnico-pianístico, um avanço. Esses integrantes desincumbem-se bem da tarefa, mas a essência essencial da interpretação fica ao largo, tantos são os exemplos. Verdadeiros “tijolos” de CDs com  dezenas de intérpretes,  a abranger todos os gêneros praticados por um compositor, cuja integral o leigo aprecia ter em sua estante. Verificando-se com acuidade a diferença dos intérpretes e suas reais afinidades com aquele repertório, os vários locais onde foram feitas as gravações, a diversidade dos instrumentos e dos técnicos, chega-se à integral, mas faltará a unidade. As grandes empresas não têm como propósito esse ideal formado pelo trinômio interpretação-qualidade-unidade e sim a grande divulgação. Grande parte dos managers não entende música, mas são ágeis empreendedores.

Ao visitar um bom amigo belga, presente a todos meus recitais em Gent, mas leigo, mostrou-me ele sua coleção de “tijolos”, brique, em francês, como me disse a sorrir. Integrais de J.S.Bach, Mozart, Beethoven e tantos outros preenchiam as estantes. Durante o agradável jantar, em determinado momento perguntei-lhe sobre sua escuta, se era diária, periódica… Meu amigo, com pleno ar de satisfação, observou que ouvira ainda muito pouco do todo, mas que seu prazer maior era saber-se “senhor” de toda aquela rica produção. Retornei a pé até a Neue Brugai Straat, onde estava hospedado, numa noite gélida, a pensar na imensa cadeia de interesses das empresas: lista de intérpretes, necessidade de  visualizar o “tijolo” no mercado e, como finalidade, o lucro.

Longe estamos das integrais que eram realizadas por um só intérprete. Se elas ocorrem mais recentemente, são minoritárias. Exemplificando sucintamente o passado longínquo ou menos distante, menciono as Sonatas de Beethoven, por Arthur Schnabel (1882-1951); Debussy, Ravel e Mozart, por Walther Gieseking (1895-1956), Schubert, por Friedrich Wührer (1900-1975), os 27 Concertos de Mozart, incluindo as cadências compostas pelo pianista Géza Anda (1921-1976), e tantas outras integrais, muitas delas particularizando segmentos essenciais de um compositor. Nestas últimas décadas, obras completas foram gravadas unitariamente. Contudo, tornam-se mais raras, preferindo as grandes empresas compartimentá-las, o que representa uma abertura de mercado para quantidade de intérpretes. A minha geração conheceu bem essas integrais que se tornaram referência, pois interpretadas por pianistas extraordinários. Tínhamos um modelo que não era para ser imitado, mas servia como base sólida para preservar a boa tradição. Penso eu que as novas gerações, ao ouvir esses “tijolos” interpretados por diversos pianistas, podem ficar à deriva. Um jovem talentoso perguntou-me recentemente sobre determinado compositor que havia sido privilegiado com a integral compartimentada: “quais dos pianistas são os melhores?”.

Sob outro aspecto, o da apresentação ao vivo, era comum um grande intérprete ficar um bom tempo em uma cidade, a fim de apresentar a integral de um segmento da criação de um autor. Há décadas as agendas das sociedades de concerto – preenchidas com anos de antecedência nos grandes centros -, optam pela diversidade de intérpretes nas temporadas de música. A necessidade imperiosa, ditada pelo mercado, forçando a pluralidade, está a impedir a prática, tão usual no passado, das integrais ao vivo por apenas um intérprete. E só de pensar que a integral das Sonatas de Beethoven, nas várias vezes que foi interpretada pelo pianista Fritz Jank (1910-1970), teve afluxo pleno no Theatro Municipal de São Paulo, assim como mereceu grande recepção Friedrich Gulda (1930-2000), o extraordinário pianista austríaco que também interpretou as 32 Sonatas em nossas terras. No início do século XX, tivemos Vianna da Mota (1868-1948), notável pianista português, executando esse conjunto monolítico de Beethoven em tournée pela América do Sul, assim como os dois livros do Cravo Bem Temperado de J.S.Bach. Nas várias passagens pelo Brasil, apresentou parte de seu imenso repertório. Acrescente-se que foi notável compositor. Atualmente, devido ao calendário intenso, os intérpretes mais ventilados normalmente repetem repertório, majoritariamente privilegiando obras que integram a ponta do iceberg.

Estávamos em 1977. Ao recital que apresentei no Sesi São Paulo, com obras de Alexandre Scriabine (1872-1915), compareceu o saudoso pianista Roberto Szidon (1941-2011). Após a apresentação, fomos direto à TV Cultura para gravar programa ao vivo conduzido pelo Maestro Walter Lourenção, focalizando o compositor russo Alexandre Scriabine. Szidon gravara para a Deutch Gramophone as dez Sonatas para piano do compositor russo e eu, meses antes, apresentara no MASP  a integral dos Estudos. Revezamo-nos ao piano executando várias criações scriabianas. Findo o programa, dei-lhe carona até a morada de seus tios nas cercanias da Universidade Mackensie. Conversamos ainda longamente. Fazia-se madrugada. Disse-me Szidon que bem cedo viajaria para o Rio de Janeiro, a fim de gravar um  LP com obras de Radamés Gnatalli. Fiquei estupefato, pois a partir das dez horas da manhã a gravação começaria. Perguntei-lhe se conhecia bem essas composições. Respondeu-me que as aprendera  naqueles dias. Szidon lia uma partitura como jamais vi. Era instantânea a sua leitura à primeira vista. De regresso, fiquei a pensar a respeito da captação da mensagem em sua integralidade. Certamente a gravação deve ter saído a contento, mas o espírito da obra lá estaria? Impossível apreendê-lo açodadamente. Roberto Szidon, imenso pianista que nos deixou precocemente. Mencionei, em post bem anterior, que a notável pianista Guiomar Novaes (1894-1979) confessou-me em 1956-7, após ter tocado para ela um Improviso de Schubert e segmentos do Carnaval de Viena, de Schumann, que as obras sofreriam um longo amadurecimento durante minha existência e, que, só recentemente (àquela época) entendera realmente a mensagem do Carnaval op. 9 deste último, criação que ela tocava desde a adolescência!!!

Acredito que um retorno às prerrogativas do passado são impossíveis. Haverá, nessa avalanche a buscar a exumação de “todo” repertório, um final não promissor. Açodamento não é exemplo de seriedade de propósitos. Espalhados pelo mundo ocidental, pesquisadores têm realizado trabalhos meritórios, redescobrindo, editando e propiciando a intérpretes conscientes realizarem o ato final da descoberta, a execução e gravação. Esses intérpretes pertenceriam a uma outra categoria, cônscia da qualidade da pesquisa. A grande gravadora não estaria preocupada com a qualidade das partituras, muitas por elas preparadas precipitadamente. Só de pensar que a edição crítica das obras de Hector Berlioz já dura decênios, assim como a de Claude Debussy!!! Exemplo a ser seguido? Está-se a viver num mundo pasteurizado. A qualidade virou um pormenor. O imediatismo é a antítese do aprofundamento. Nada a fazer.

This post, the last on my recording experiences in Europe, addresses the contrast between works by independent music artists (independence offers more freedom of choice) and those by major label artists, who hardly have time to study the works they are going to record, what may result in music that is flat and emotionless.

 

Deve-se buscar as melhores condições

Para o ouvinte,
intérprete e autor são a mesma coisa,
mesmo que acredite distinguí-los.
Na realidade, o ouvinte preocupa-se
minimamente com as intenções do autor.
Basta-lhe o que está a ouvir.
André Souris
(“Conditions de la Musique”)

Em texto basilar, Francisco Mignone (1897-1986) apontava a supremacia da composição sobre a interpretação: “há algo de interessante no concertista; quando ele desaparece, automaticamente desaparece o trabalho que ele fez nesse efêmero período de tempo. O concertista muito raramente é lembrado, ao passo que o compositor é diferente na medida em que ele deixa uma obra. É um patrimônio eterno que ele deixa para a sua Pátria” (“A parte do anjo – auto crítica de um centenário”, São Paulo, E.S. Mangioni, 1947). Palavras sábias de um dos nomes maiores da música brasileira.

No post anterior mencionei a inserção de outra metáfora relativa ao iceberg. O tempo de criação desse “patrimônio eterno” de que nos fala Mignone pode ser, paradoxalmente, muito breve. Bem inferior à dimensão da ponta do iceberg. Consideremos a verve instantânea de compositores como J.S.Bach (1685-1750), Vivaldi (1678-1741), Mozart (1756-1791) ou Schubert (1797-1828) como exemplos da rapidez em que passavam para o papel pautado o jorro da criação. A excelsa composição Quadros de uma Exposição, de Modest Mussorgsky (1839-1881), concebida após choque emocional ao visitar a exposição de aquarelas de seu saudoso amigo Viktor Hartmann (1834-1873), foi criada durante cerca de quinze dias. Recluso em seu quarto, o autor russo compôs uma das obras mais importantes da história da Música. Quanto à interpretação, quantas milhões de horas intérpretes ao piano ou músicos de orquestra (versão realizada por Maurice Ravel) não se dedicaram e não se debruçam sobre a obra para interpretá-la da melhor maneira possível!!! Esse “patrimônio eterno” mencionado por Mignone, exemplificado por milhares de composições que atravessam os séculos, não existiria, considerando-se sua finalidade, sem o intérprete. Ele o recria, como bem diz André Souris na epígrafe do blog anterior. Apenas ele será responsável pela perpetuação. Não se descarte a posição cética, mas real, do grande escritor e poeta português Guerra Junqueiro, que testemunha “Um livro atirado ao público equivale a um filho atirado à roda. Entrego-o ao destino, abandono-o à sorte. Que seja feliz é o que eu lhe desejo; mas, se o não for, também não verterei uma lágrima”. Estou a me lembrar da “redescoberta” da deliciosa Sonatina Mozartiana, de Gilberto Mendes (1922-2016), nos anos 1990. Compusera-a em 1952 e a obra “jazia” dentro de um baú, muito bem embrulhada com outras partituras. Ao abri-lo junto ao compositor, disse-me ele que não se interessava pelas obras daquele início da década e que desde a criação permaneciam nesse limbo. Fui ao piano e a resposta, após minha leitura, veio imediata e acompanhada por vasto sorriso: “Não é que ela é bonita!”. Dedicou-ma sur le tard, interpretei-a em primeira audição, gravando-a posteriormente em Sófia, na Bulgária. A Sonatina Mozartiana, “atirada à roda” a partir daí, já foi gravada no Exterior por vários outros intérpretes, editada na Bélgica e tem figurado em muitos programas de pianistas.

Se a obra sempre prevalece sobre a interpretação, por mais sublime que esta possa ser, considere-se um tema fulcral constantemente aludido em blogs ao longo dos anos, pois o que se vê a cada ano mais acentuadamente é a presença do intérprete, estimulado pela mídia e pela popularidade decorrente, sobrepondo-se à composição, o que denota a aparência da verdade. A transitoriedade do intérprete é fato, mas jamais admitida por quantidade de executantes. Escrevi sobre gestuais exagerados, trajes que revelam histrionismo, mormente da parte de determinadas intérpretes bem divulgadas. Por mais hábeis que possam ser, na essência a obra é um veículo necessário para a consagração ou sua aparência.

A gravação sem vídeo em condições excepcionais de captação é o momento a preservar a herança do intérprete. André Posman, diretor da De Rode Pomp, assim me transmitiu no longínquo 1999. Os microfones, a representar o público invisível, só querem  apreender o intérprete em sua plena verdade, sem quaisquer excentricidades. Desnuda-se o intérprete a revelar o de profundis, e mesmo a edição de uma gravação nada mais é do que a busca de uma perfeição sempre inatingível. Pianistas se prolongaram através de muitas décadas unicamente por essa rigorosa transmissão da obra, sendo eles os intermediários a quem é concedida a recriação da composição sem aviltá-la. Impressão digital, pois não há duas interpretações iguais e se, por razões pessoais, o intérprete busca imitar, tem-se então o simulacro.

Entro na Capela de Sint-Hilarius desde 1999 para deixar minha mensagem sonora. Em post bem anterior (vide “A comunhão das pedras”. 3 de Maio de 2007) escrevia: “A parte central de Sint-Hilarius – onde se ergue a torre – e as laterais da capela são em pedra. Maiores ou menores, todas irregulares, mas que, na junção, formam uma simetria assimétrica que emociona o intérprete, ainda mais sabendo que elas estão lá há mil anos, longe da multidão de olhares que se dirigem aos monumentos difundidos. Em sua austera simplicidade, a pedra reunida em Mullem é um apelo à espera do não contágio. Em Citadelle, Saint-Exupéry escreve que a razão da existência da pedra é sua união com outras pedras. ‘O que é a pedra sem o Templo’, pergunta. Agrupadas elas espiritualizam o homem através de outros congraçamentos”. Entendo a capela de Sint-Hilarius como o local perfeito para a mensagem que deve ser transmitida. Sob outra égide vem-me à mente  frase exemplar do compositor Pierre Boulez: “É necessário ter diante de uma obra que ouvimos, interpretamos ou compomos um respeito profundo, como o que temos frente à existência. Como se fosse uma questão de vida ou morte”. Essa assertiva compreende a apreensão da fundamental importância do intérprete, mas igualmente de sua rigorosa formação, a evitar trair o espírito do compositor. Não há duas interpretações idênticas. Todavia, um fio condutor transporta o peso da tradição e ela deve ser respeitada. A “transgressão” a princípios básicos de estilo pode levar o intérprete à notoriedade, que tende a perdurar durante certo tempo, mas fatalmente o levará ao ostracismo.

Johan Kennivé, engenheiro de som, é um mestre absoluto. Psiquiatra de formação e especialista em gravação, já gravou em muitos países da Europa. Reside perto de Gent. Com sua van vem-me buscar, passando sempre por volta das 19:00hs. De Gent a Mullen percorremos uns 40 quilômetros. Jantamos tranquilamente, eu a pedir nesses dias sempre um spaghetti à bolonhesa e uma cerveja. Ele me acompanha nessa escolha. Serenamente nos dirigimos à capela, onde o piano vindo da Steinway & Sons de Hamburgo, “0km”, já lá está à espera. Tomada de som, arranjos finais e, por volta da meia noite, iniciamos a gravação, que se prolonga, com várias interrupções, até as cinco, seis ou sete horas da manhã. Preferenciamos o inverno, pois anoitece cedo e amanhece tardiamente. Melros, rouxinóis e outros passarinhos silenciam. Por vezes uma coruja provoca alguma interrupção. Esparsos jatos comerciais cortam os céus da planura flamenga e durante um bom minuto aguardamos que o silêncio se faça. Jamais sofro pressões, como outrora na Bulgária, onde o tempo de gravação era rigoroso e palavras incisivas demarcavam o inexorável término. Johan faz-me respirar. Sinto sempre a tranquilidade para a transmissão por inteiro da mensagem musical. A intuição de Johan é plena. Sabe o momento exato de me interromper e, de sua van, com todo o material e câmara, pede-me para ir até sua cabine tomar uma xícara de chocolate e deliciar-me com uma torta de maçã preparada por sua esposa, Tineke. Percebe necessária essa pausa de uns poucos minutos. Ouço alguns resultados preliminares. Volto revigorado. Jamais me disse “acabamos por hoje”. Sei o momento de parar. Isso feito, estendo-me nos bancos da capela, enquanto Johan desmonta sua maquinaria. Regressamos a Gent para um recomeço às 19:00 horas. Ritual que se prolonga nessas três noites mágicas, desde 1999. Antes de meu regresso a São Paulo, Johan me entrega o material coletado nos três dias de gravação. Na minha cidade-bairro, Brooklin-Campo Belo, realizo nas semanas seguintes a cuidadosa edição, remetendo a Kennivé minhas opções. O tempo escoa e, no momento preciso, Johan me envia o master para uma derradeira escuta. Em 2019 deverei gravar meu último CD na Capela de Sint-Hylarius. O correr da existência assim determina.

É fundamental o amálgama com o engenheiro de som. Johan é um sábio. Perscruta silenciosamente o de profundis do intérprete. Quando da gravação dos “New Belgian Etudes”, para o selo De Rode Pomp, gravei criações expressamente compostas por dez ilustres compositores para o CD, fazendo parte de meu projeto de Estudos Contemporâneos para piano. Ao gravar Adagio Funebre, terceiro dos 3 stukken voor piano, de Roland Coryn (1938- ), a lentidão e o ritmo incisivo da peça impediram-me de me sentir à l’aise nas três vezes que a interpretei. Foi quando Kennivé me chamou. Atravessei o pátio gelado que leva à van e serenamente Johan me disse que eu vinha do país do sol. Continuou a dizer que o enterro nessas pequenas cidades flamengas é rigorosamente sombrio. Uma carruagem, puxada por dois cavalos, transporta a esquife pelas ruelas até o pequeno cemitério. Kennivé havia gravado dias antes em cidade da região uma homenagem prestada ao notável poeta da Flandres Guido Gezelle (1830-1899). Um recitante leu naquela ocasião, na língua flamenga, um poema do padre poeta nascido em Bruges, justamente a ter como tema um enterro naquelas paragens. Com voz grave e lentamente o poema foi lido, tendo ao fundo música incidental em baixa intensidade e ritmada. Ao final, eu disse ter entendido e, numa execução apenas, a obra estava gravada, a transmitir a solidão absoluta. Após, em silêncio, Johan e eu ouvimos o resultado final. Amálgama.

Creio que jamais me habituaria à feérica indústria cultural, a pensar resultados imediatos e lucros consequentes. A gravação, para adquirir aura, necessita da decantação da obra pela mente do intérprete, a preceder o ato final. O compositor e pensador francês François Servenière, ao ler o blog anterior, comenta: “Li com grande interesse o post da semana sobre a interpretação e, sobretudo, sobre a gravação, vertente na qual você é especialista. Entendo sua escolha ao recusar uma carreira internacional sob a égide de agentes, sociedades de concerto e empresas discográficas maiores. Como você, eu percebo a repetição ad nauseam do mesmo repertório colocado no mercado.”  Ao privilegiar o repertório de altíssimo valor, muitas vezes ignoto, selaria também minha trajetória, nela instaurando-me conscientemente. O holofote, esse canto das sereias que pode fazer sucumbir o culto à arte, ilumina intensamente, mas pode também ser a “aparência” da verdade.

São tantos os fatores que extrapolam o registro fonográfico! Estou a me lembrar de uma gravação primorosa e única na apreensão de conteúdos. Após um recital que apresentei em Paris em 1960, na Académie Marguerite Long (1874-1966), a lendária pianista e minha mestra ofereceu-me um LP autografado, que guardo carinhosamente. Nele estão  obras de Gabriel Fauré (1845-1924) para piano solo e o Quarteto em sol menor, tendo como intérpretes os notáveis Jacques Thibaud (violino), Maurice Vieux (viola), Pierre Fournier (violoncelo) e a própria Marguerite Long.  Ela escreve nas notas anexadas: “Uma palavra ainda sobre o Quatuor en sol mineur. Foi gravado no dia 10 de Junho de 1940. De manhã, os alemães entraram na Holanda. Partimos aturdidos para o estúdio. Eu sentia a agonia que se apoderou de Thibaud: seu filho Roger combatia no front. Durante a gravação, nossa emoção estava no limite, e creio que a gravação é a imagem fiel desse estado de espírito. No dia seguinte, Roger Thibaud morria heroicamente”. Entendo não apenas como “imagem fiel”, mas como gravação inexcedível. Mutatis mutandis, a guardar todas as proporções, quatro dias após presenciar a morte de meu querido genro José Rinaldo, aos 29 de Janeiro de 2004, viajava para a Bélgica, a fim de gravar CD dedicado unicamente aos Estudos Belgas Contemporâneos. Gravação que saiu a contento, mas sentia-me no limite de um esgotamento emocional. Na terceira madrugada finalizamos a gravação por volta das 6:00hs. A planura flamenga silenciosa e ainda em plena escuridão. Pedi ao Johan para apagar todas as luzes e deixar acesa apenas uma pequena lâmpada anexa ao altar. Fiz minha prece. Interpretei Jesus Alegria dos Homens, de J.S.Bach, na revisão de Myra Hess. Confesso que verti lágrimas.

Clique para ouvir Jesus Alegria dos Homens de J.S.Bach. Gravação que realizei na Capela Sint-Hilarius em Mullen no início de Fevereiro de 2004.

A apresentação ao vivo é necessária e perpetua a tradição. Todavia, ela pode carregar fatores extramusicais como gestual, vestes e excentricidades. A mídia valoriza ao extremo vídeos que focalizam essencialmente a figura do intérprete, seja ele regente ou instrumentista. Ciente dessa tomada de imagem, o músico tantas vezes extrapola o gestual e o público é levado à idolatria. Na gravação sem imagem e sem público toda a superficialidade desaparece e a figura humana transfigura-se numa “feitura da ausência”. Só importa o som em sua essência essencial.

Rendo-me à gravação. Prefiro gravar a tocar em público, respeitando-o como sempre o fiz. Desde 1995 submeto-me à longa preparação, sabendo que naqueles três dias na Capela Sint-Hilarius, em Mullem, perdida na planura flamenga, a mensagem ficará fixada sem quaisquer artifícios. Já estou a programar o repertório para 2019. Retorno à infância. Meu último CD visitará obras dedicadas ao universo infantil. Carinhosamente olharei para a criança que eu fui e que, aos nove anos de idade, iniciou seus estudos. Estrada percorrida amorosamente. Dádiva.

The third and last day of the course I’m giving on my recording experiences in Europe will focus on the most important aspects to be considered during the recording process at the Sint-Hilarius chapel in Mullem, Belgium.

 

Princípio primeiro: gostar da atividade

Faz-se necessário salientar fato elementar,
pois o intérprete detém o poder essencial.
É através dele que a música existe realmente.
Ao negligenciar essa evidência
corre-se o risco de distorcer todos os problemas da criação musical.
Andrés Souris
(“Conditions de la Musique”)

O workshop que será a apresentado na Sociedade Brasileira de Eubiose nos dias 6, 8 e 13 de Março tem como propósito expor as condições ideais para que uma gravação tenha êxito qualitativo. Expus no blog anterior a premissa dessas três palestras, enfatizando desde as gravações “heroicas” em LPs gravadas no Brasil, tantas vezes em situações técnico-acústicas precárias, apesar da dedicação dos envolvidos, como o passo decisivo que me levou a apenas gravar na Europa em condições excepcionais.

Em quase todas as áreas ocorre o problema da defasagem entre o que realizamos no Brasil e o que é concretizado em países denominados de ponta. Não é demérito constatar a evidência. É realidade. São tantos os fatores endêmicos!!! Nos esportes, na área empresarial, na mídia como um todo, nas artes. Há defasagem em toda a América Ibérica e, se a qualidade excelsa tem de ser buscada, ultrapassar as fronteiras torna-se um imperativo. Quando menciono os esportes, basta verificarmos a falta de apoio de nossas entidades esportivas para com os heroicos atletas brasileiros que lutam, tantas vezes à míngua, para a realização de sonhos quase sempre impossíveis de serem realizados, mercê da incompetência e por vezes desvio de conduta de dirigentes. O futebol brasileiro, hoje ridiculamente realizado em solo pátrio, tantas vezes com público irrisório, nada mais tem a ver com a qualidade ímpar dos grandes times europeus, eivado de jogadores brasileiros talentosos que buscaram plagas melhores.

O mesmo ocorreria com as gravações. Sob outra égide, a busca sempre incessante pela qualidade é traduzida pela necessidade sine qua non de os intérpretes estarem rigorosamente preparados para o mister. Não é apenas gravar, mas sim pensar no resultado final como algo que permanecerá pelo extremo cuidado durante todo o processo, assim como pela divulgação em países afins. Qualidade atrai qualidade. A experiência gravando em três países europeus, distintos culturalmente, faz com que, nessas três palestras que serão apresentadas, métodos, espaços e técnicas diferenciadas durante o processo de gravação caminhem para um único objetivo, atingir-se o melhor nível possível.

Após a gravação da integral para violino e piano de Henrique Oswald com Paul Klinck ao violino, registro realizado na Rádio de Bruxelas em 1995 para o selo PKP, foram três outras gravações em Sófia, na Bulgária. Primeiramente os dois Concertos para dois cravos de J.S.Bach (pianos, no caso) e orquestra de câmara, a fim de completar a integral para o instrumento solo realizada por meu irmão João Carlos. Gravamos na Sala Bulgária com a direção segura de Plamen Djurov. Em pleno inverno de 1996, a temperatura chegou aos -15º. A seguir recebi o convite de Heiner Stadler, diretor do selo Labor, para o primeiro CD de uma série (“Musik of Tribute”) com vários intérpretes, toda lançada pelo selo nos Estados Unidos. Assim, gravei no verão do mesmo ano “Music of Tribute” – vol. 1, com obras de nosso grande compositor Villa-Lobos e outras de autores consagrados, que lhe dedicaram homenagens pela passagem do centenário de nascimento em 1987, e que resultaram num caderno com as partituras que eu editei na Universidade de São Paulo no ano em pauta.

A gravação de “Music of Tribute” levou à seguinte, realizada no verão de 1997, com a integral de Jean-Philippe Rameau para teclado em dois CDs. Tendo chegado três dias antes, devido à defasagem horária acentuada, preferi ficar recluso em meu quarto no Hotel Bulgária. Para tanto levei meu teclado mudo e nele estudei minhas horas antes da gravação. O primeiro piano de fato após essa preparação foi um magnífico Steinway & Sons durante as gravações, que se estenderam por três noites. Heiner Stadler, em sua vasta experiência, testou várias salas europeias para as gravações de João Carlos em torno de Bach. A Sala Bulgária, em Sófia, teve de sua parte a plena acolhida. Toda revestida de madeira e com poltronas do mesmo material. A extraordinária acústica dessa grande sala abrigou a integral de Rameau com suas harmonias ousadas, a elegância dos contornos melódicos, a magistral organização formal e… os quase 5.300 ornamentos da fantástica obra ramista. O saudoso engenheiro de som Atanas Baynov, um especialista hors concours.

Entendo o ato de gravar como uma missão. Foi André Posman, diretor da De Rode Pomp, na Bélgica, que, após dois ou três recitais em anos sucessivos em sua temporada musical na cidade de Gent, chamou-me à sua sala e disse-me “professor, chegou o momento de o senhor deixar a sua herança”. Uma relação que dura até o presente me ligaria decididamente à cidade de Gent, sede da extinta De Rode Pomp, empresa responsável pela série ininterrupta de CDs que gravaria de 1999 até 2009, sendo que outras se prolongariam até 2015 para outros selos. Em 2019 penso gravar meu último CD. Sempre lembro o grande escritor e poeta português Guerra Junqueiro: “o tempo é insubornável”. Houve apenas uma exceção durante esse longo período, a gravação do CD “Viagens na Minha Terra”, unicamente com obras do notável compositor português Fernando Lopes-Graça. Gravei-o em 2003 na bela e lendária Leiria e o CD saiu sob a égide do selo Portugaler.

Num sentido abrangente consideraria três tipos de intérprete frente à gravação. Há aquele, que durante a trajetória, perpetuou o repertório por ele visitado desde os anos de aprendizado, incorporando inúmeras outras composições, todas pertencentes à tradição vigente, que remonta à segunda metade do século XVIII, mas estancando suas preocupações a partir do que foi escrito basicamente na segunda metade do século XX. Desafio sim, todavia parte considerável desse repertório já foi gravada dezenas de vezes, quiçá centenas, tantas dessas gravações realizadas por pianistas excelsos. É fato. Temos também o pianista que faz parte da lista de intérpretes das grandes gravadoras. Nesse caso, não são poucas as vezes em que ele aceita gravar repertório imposto pela empresa. Creio já ter narrado que, por volta de 2005, dias antes de uma gravação pelo selo belga De Rode Pomp, dei recital, como habitualmente fazia, com o programa que seria registrado fonograficamente na Capela Sint-Hilarius, em Mullem, que remonta ao século XI. Depois do recital, jantava com músicos belgas no restaurante da De Rode Pomp, quando fui apresentado a um agente de uma das mais prestigiadas gravadoras do planeta. Esse emissário veio de Bruxelas. Assistiu ao recital e viu nas prateleiras da sede da instituição cultural de Gent a série de meus CDs. Disse-me que gostaria que eu estivesse na lista de pianistas da organização. Agradeci, mas fiz-lhe três perguntas concernentes à atuação: poderia escolher o repertório, o local da gravação e escrever o texto incorporado à caixa do CD? A resposta foi sempre não, pois a organização determinava o repertório, o local da gravação em algum ponto do planeta e o texto era da responsabilidade da empresa. André Posman, diretor da De Rode Pomp, passava pelo local, logo após essas negativas. Levantei-me, dei-lhe um beijo na face e disse – ambos sorrindo – “pour l’eternité”. Conto esse episódio pelo fato de que é fácil detectar – consideremos a grande qualidade desses intérpretes, frise-se – nesse repertório preparado açodadamente, gravado e colocado no mercado, o pouco envolvimento do contratado, mesmo que habilmente executado. Não houve a decantação necessária, o debruçar lento que leva à integração com a obra executada. Como dizia um amigo músico belga, “execuções planas”. Sob outro aspecto, é difícil para o ouvinte leigo diferenciar interpretações. Essas grandes organizações estão há tempos repertoriando integrais e para tanto têm de manter entre seus artistas aqueles confiáveis. O único problema é que, na maioria dos casos, o dirigente, big boss, durante sua trajetória como empresário de sucesso, pode ter dirigido anteriormente uma empresa voltada à alimentação, aos produtos de perfumaria, à automobilística ou sabe-se lá quais entidades de outras áreas. Importa-lhe o mercado. Uma terceira categoria, na qual me incluo, esteve ou está ligada às microgravadoras seletivas que, logicamente, lançam pequena quantidade de CDs. Na De Rode Pomp, jamais André Posman impôs programa a ser gravado. Preferenciam o repertório pouco frequentado. Para o selo gravei 12 CDs, sempre a ter como engenheiro de som Johan Kennivé, um dos mais importantes da Europa. Outros sete para selos diversos foram gravados por Kennivé, sempre na Capela Sint-Hilarius. Sobre a mística capela escrevi vários posts ao longo de onze anos de blogs ininterruptos, completados presentemente.

Quanto a essa terceira categoria, há mínima guarida por parte da mídia. Na prática, ela menospreza o desconhecido e, como a massificação é fato inconteste, quanto mais o que está a agradar perdura, mais ela divulga. Na música dita de concerto, o repertório super ventilado; na música popular, o sucesso de plantão é exaltado ad nauseam. No meu livro “José Eduardo Martins – un pianiste brésilien” (série Témoignages, Paris Sorbonne, 2012) comparava o repertório extraordinário pouco ou nada frequentado com a parte submersa de um iceberg. O grande público conhece essencialmente a ponta desse iceberg e a cultua. Juan Carlos Paz (1901-1972), notável músico e crítico argentino, era extremamente cáustico em relação a esse apego desmesurado à ponta do colossal bloco de gelo, como assim denomino. Escreve: “nefasta disciplina geradora de virtuosos que, durante trinta anos ou mais, passearam os seus repertórios chopiniano, lisztiano, beethoviniano diante de esclerosados, estáticos e estúpidos auditórios que desejam ouvir a cada dia as mesmas obras e a quem só interessa o espetáculo desportivo com que os brinda o pianista favorito”. Sua posição extrema revela contudo a perpetuação do repertório sempre repetido. Diria que as sociedades de concerto fazem esparsamente concessão (remorso inconsciente?) ao passado olvidado.

Atraiu-me, desde os anos 1970, o repertório magistral pouco ventilado ou nada frequentado. Dos 12 CDs gravados para o selo De Rode Pomp, se exceções há, como os “Quadros de uma Exposição” de Moussorgsky ou a “Humoresque” de Schumann, magistralmente gravados por pianistas relevantes, foi pelo fato de integrarem um núcleo específico, pois em contexto definido, uma ideia a entender essas obras como pertinentes a um projeto.

No terceiro e último post tratarei de aspectos interessantes que fixei na memória durante os 22 anos a gravar no Exterior. Nele destacarei a importância fulcral do engenheiro de som. Johan Kennivé, técnico inexcedível, é igualmente psiquiatra. Amalgamamo-nos. Uma segunda metáfora a lembrar o iceberg também estará em pauta.

Resuming the subject of the forthcoming talks I will give on my recording experience in Europe, I plan to comment on performers that play the same repertoire over and over again and on my choice of promoting new masters instead of offering the same alternatives year in, year out, not forgetting to mention that every choice must be paid for.