Análise  crítica de François Servenière

O tempo do Barroco integrista passou.
A utilização de instrumentos de época
deixou de ser um dogma
ao qual os músicos são obrigados a aderir
sob pena de serem tratados de heréticos.
François Lesure
(Extraído do encarte do álbum “Rameau L’Oeuvre de Clavier”
Piano – José Eduardo Martins, selo De Rode Pomp – Bélgica)

No post anterior apresentei o ensaio que o ilustre compositor francês George Migot escreveu para a apresentação do álbum de LPs a conter a opera omnia original para teclado de Jean-Philippe Rameau, a primeira gravação mundial ao piano, realizada pela excelsa pianista francesa Marcelle Meyer (1897-1958) nos anos 1950. Ainda hoje essa gravação é referencial, mercê também de toda uma tradição da escuta que, desde o final do século XVIII, foi sendo passada paulatinamente de mestre a aluno, primeiramente tendo como instrumento o pianoforte e, a seguir, o piano.

No presente post, o texto crítico é do igualmente ilustre compositor e pensador francês François Servenière e extraído de seu opúsculo “Une Réflexion sur la discographie du pianiste brésilien José Eduardo Martins” (São Paulo, Giordano, 2012), a analisar meus 22 CDs gravados na Europa. A análise da segunda gravação mundial da obra original para teclado de Rameau interpretada ao piano, que realizei em 1997 na Sala Bulgária, em Sofia, agora acrescida de algumas das transcrições do compositor a partir de sua ópera-balé “Les Indes Galantes”, transcrições que não constam no registro fonográfico de Marcelle Meyer, substancia um conhecimento maior da interpretação ao piano, assim como evidencia a qualidade inefável da criação ramista. Apresentar na íntegra essa análise crítica implica inserir algumas louvações do músico à minha interpretação. Faço-o com o devido retraimento. Subtraindo-me desses elogios, transmito aos leitores que o texto de François Servenière é coeso, e suprimir frases ou segmentos implicaria perda de unidade.

Clique para ouvir no YouTube, com José Eduardo Martins ao piano, Les Niais de Sologne de Jean-Philippe Rameau

“Novamente num álbum duplo encontramos a excepcional interpretação de José Eduardo Martins, que nos faz esquecer a cada CD que um intérprete, um homem com os dedos de ourives, transmite a mensagem de um compositor. É um feito gravar ao piano a integral para teclado do compositor que a destinou originalmente ao cravo. O conjunto da obra não sofre pelo fato da suposta transgressão se não interpretado e gravado em instrumento da época, pois o piano não existia entre 1706 e 1747, período da criação das peças de Rameau para teclado. Diga-se que, na Itália, Bartolomeo Cristofori, que morreria em 1731, já construíra uma pequena série de pianofortes, e que o inventário da família Médicis indica a feitura de um exemplar em 1698. Pareceria evidente que o instrumento ainda estava em evolução e que o clavecin mostrava-se como preferido através de suas ressonâncias, tanto pelos compositores como pelos intérpretes, em detrimento daquele que, após aperfeiçoamentos, tornar-se-ia o rei dos instrumentos, o piano.

A escrita  de Jean-Philippe Rameau, nos dedos de José Eduardo Martins executando-a em um Steinway, não sofre absolutamente nada. Melhor ainda, essa escrita, graças ao estudo e análise sutis do intérprete, transmite os sentimentos do compositor francês com muito mais verdade humana que jamais poderia ser realizada em um cravo. Tanto é verdade que o cravo, instrumento curioso e atrativo a um pianista, rapidamente torna-se monótono por sua pobreza expressiva, mercê da mecânica de cordas pinçadas, processo técnico que não oferece a esse instrumento nenhuma profundidade de toque. Apoiar fortemente ou delicadamente sobre as teclas, como no órgão, não muda absolutamente o som. A técnica do clavecin é informática e binária, 0 ou 1: afundo a tecla, tenho um som, único, diga-se. Esta característica foi, aliás, a causa da relegação do clavecin em instrumento típico de uma época, seguindo-se o aperfeiçoamento do piano, em que a infinita riqueza do timbre é obtida pela variedade do toucher, graças ao princípio das cordas atingidas por martelos de madeira com feltros nas pontas. Nada disso existe no cravo. Uma mecânica autômata tocaria tão bem quanto um intérprete. Seria essa uma das razões que explicaria, para as poucas possibilidades instrumentais, o emprego, para fins interpretativos, de recursos próprios à condução da frase musical. Entre esses os rubati, accelerandi e ritardandi e figuras de estilo, como a decoração e os tremolos, não apenas para modelar o som, mas também para seduzir o público.

José Eduardo Martins apreende as versões perfeitas de cada peça com o toque aéreo e inspirado que lhe é característico. Não há nenhuma lassidão na escuta, mesmo se ele por vezes não utilize ou pouco acione o pedal forte, processo que lhe teria dado uma maior facilidade na obtenção de certo charme ou sedução do som, outra perspectiva em determinados clímax. Justamente aí reside a riqueza do trabalho de José Eduardo Martins, tudo soa pleno e cantante, pois se ouvem todas as partes, todas as nuances. Todos os estágios sonoros estão em seus devidos lugares, tudo o que deva ser tocado sotto é sotto, tudo o que é canto primordial não sofre qualquer concorrência. Essa perfeição na arquitetura sonora é admirável e procede evidentemente de um enorme trabalho de análise de cada peça, pois nada foi deixado ao acaso. Ao começar a escuta dos dois CDs, estava eu mais circunspecto depois de ouvir as obras de Carlos Seixas (1704-1742), que são mais vivazes, mais variadas, mais latinas, ou seja, mais exuberantes, enquanto as de Jean-Philippe Rameau são mais sóbrias e parecem ter sofrido influência alemã. E então, nestes CDs ramistas, operou-se o charme. A sobriedade da escrita coloca-nos em contato  com um refinamento raro naquela época.

Rameau é considerado o Bach francês. Vê-se como esse período histórico se exprime através da ‘Arte da Fuga’, modelo imposto desde então para os alunos da classe de escritura musical. A escuta da música dessa época remete-nos invariavelmente às mesmas disposições psicológicas e é justamente a essa técnica da fuga, ‘fuga’ em latim, que nós somos tributários. Nossa impressão, tanto para Jean-Philippe Rameau como para Jean-Sébastian Bach, é aquela de um continuum do tempo, herança direta dessa arte no domínio do contraponto, onde a técnica de escritura permite fazer com que a música não pare jamais, a dar a impressão de ir sempre à frente num verdadeiro perpetuum mobile.

O notável François Lesure tece comentários no encarte dos CDs: ‘Nós nos convenceremos ouvindo a gravação de José Eduardo Martins: a preocupação com a arquitetura, assim como a exuberância e o humor da linguagem de Rameau, são perfeitamente valorizados’. Assim, o pianista virtuose nos leva, através de sua incrível e difícil maestria no trato dessa opera omnia, ao objeto intrínseco da escritura ramista. Ele nos libera do tempo, somos conduzidos num mundo paralelo atemporal, metaforicamente, num relógio cuja perfeição mecânica atingiu seu termo. José Eduardo Martins parece mesmo manejar gêneros e lugares, culturas e fronteiras. Ele é o mestre da música, e esta, sob seus dedos, torna-se inebriante e puro deleite após uma longa escuta na tranquilidade. Algo comparável ao que acontece no esporte e nas caminhadas a pé, quando sentimos, após alguns quilômetros, o prazer ilimitado pela liberação de endorfinas, que leva à calma, ao silêncio e ao esquecimento das agruras. Nesses CDs contendo as obras para teclado de Jean-Philippe Rameau, gravados em 1997 na Sala Bulgária, em Sofia, pelo engenheiro de som Atanas Baynov, e lançados pelo selo belga De Rode Pomp em gravação e acústica perfeitas, acontece a elevação de nossa alma, mercê do encontro com um obra magistral, pouco conhecida, pouco difundida em concerto, sob os dedos de um pianista excepcional. Eis a impressão primeira, após sairmos, maravilhados, inebriados de alegria aos escutar essas duas horas de música. E não podemos nos impedir de pensar, tiens, c’est déjà terminé”. (tradução: J.E.M.).

Clique para ouvir no YouTube, com José Eduardo Martins ao piano, Les Cyclopes de Jean-Philippe Rameau

Continuing with the series of posts on Jean-Philippe Rameau, today I publish the French composer François Servenière’s critical appraisal of my recording of Rameau’s complete keyboard works. His appreciation was extracted from the booklet “Une Réflexion sur la Discographie du Pianiste Brésilien José Eduardo Martins” (São Paulo, Giordano, 2012).

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Nos dois próximos posts publicarei a apreciação sucinta do poeta e escritor Menotti de Picchia, quando dos recitais da primeira audição no Brasil da obra original para teclado de Jean-Philippe Rameau em 1971, recitais esses que apresentei no Auditório Itália, em São Paulo. Também apresentarei comentários de Claude Debussy sobre Rameau, assim como apreciações críticas advindas dos recitais e gravação.

 

São Paulo ouvirá pela terceira vez a integral interpretada ao piano

Para Rameau, o debate cravo piano não tem mais sentido,
na medida em que não é mais o instrumento
que assegura a priori a autenticidade da obra,
mas o estilo do intérprete.
François Lesure
(Extraído do encarte do álbum “Rameau L’Oeuvre de Clavier”
Piano – José Eduardo Martins, selo De Rode Pomp – Bélgica)

Dedicarei os quatro posts do mês de Agosto ao grande compositor e teórico francês Jean-Philippe Rameau (1683-1764), graças às apresentações que farei no auditório da Sociedade Brasileira de Eubiose, em São Paulo, nos dias 20 e 27 de Agosto, a privilegiar a obra completa original para teclado do insigne músico. Textos escolhidos de ilustres especialistas enriquecerão meus comentários sobre a específica obra de Rameau. Esses posts serão mais longos. Faz-se necessária essa atitude. Se compararmos com a divulgação que houve em 1971, quando da primeira apresentação que realizei da integral no Auditório Itália, em que espontaneamente, diga-se, jornais da cidade dedicaram vastos espaços aos eventos, a total ausência nos dias de hoje ratifica aquilo já denunciado várias vezes por Mario Vargas Llosa, a  decadência nítida da cultura erudita, largamente mencionada em seu magnífico livro “La civilización del espectáculo”. Outros interesses estão em causa atualmente. Nada a fazer. Os cerca de 3.000 leitores que acompanham meu blog semanalmente terão uma espécie de síntese, mormente relativa à criação de Rameau para teclado. Contudo, não negligenciarei outros aspectos primordiais desse imenso compositor.

Nossas escolhas sempre têm origem. Elegemos nossos autores, não os abandonamos mesmo que possam ficar eclipsados durante certo período, pelo fato de agregarmos outros compositores à lista, no acúmulo das décadas da existência.

O primeiro contato que tive com a obra para teclado de Jean-Philippe Rameau interpretada ao piano veio através de dois LPs que meu pai me ofereceu em aniversário no segundo lustro dos anos 1950. Tratava-se de l’Oeuvre pour Clavier, interpretada pela excelsa pianista francesa Marcelle Meyer (1897-1958), um dos nomes maiores do piano em França. Jovem, fiquei subjugado pela qualidade da obra e pela interpretação simplesmente extraordinária da pianista (vide blog “Marcelle Meyer – A redescoberta merecida”, 06/03/2007). O texto do álbum vinha com a assinatura do ilustre compositor, ensaísta e pintor francês George Migot (1891-1976). Motivos já apontados em posts bem anteriores aproximaram-me da obra de Jean-Philippe Rameau para teclado. A integral dessa produção, interpretada ao piano, teve de minha parte duas apresentações anteriores em São Paulo. Em 1971, no Auditório Itália, e em 1983, ano do tricentenário de nascimento do compositor, durante a temporada da Sociedade de Cultura Artística. Para a primeira audição, o folder continha expressivo texto do ilustre poeta e escritor Menotti del Picchia (1892-1988), a saudar os eventos. A comemorativa aos 300 anos, devo-a a convite do saudoso musicólogo Alberto Soares de Almeida, dirigente da SCA. Naquele ano, apresentei igualmente a integral no Teatro São Luiz, em Lisboa, e na Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro. As apresentações em São Paulo e em Lisboa entraram no catálogo de eventos internacionais do ano Rameau publicado pelo Ministère de la Culture da França. Somente em 1997 gravaria a integral original para teclado e algumas das transcrições para cravo de “Les Indes Galantes”, realizadas pelo autor. Deu-se a gravação na sala Bulgária, em Sofia, em 1997, e o lançamento dar-se-ia em Gent em 2000 (selo De Rode Pomp) e em 2009 ( selo Clássicos Editorial).

A presente integral reveste-se de importância singular, mercê da qualidade de uma produção excepcional e também graças à inexistência de uma adesão maior à divulgação, em nosso meio, das obras para teclado de Jean-Philippe Rameau executadas ao piano. Passaram-se 45 e 33 anos das apresentações mencionadas e o silêncio será quebrado neste Agosto, tão pleno de acontecimentos outros.

Ouvir os LPs na interpretação de Marcelle Meyer representou para o jovem que eu era uma das mais sensíveis revelações musicais de minha vida. A corroborar a qualidade dos LPs (Les Discophiles Français, (DF 98-99), o magnífico texto de George Migot. Reproduzo para o leitor alguns segmentos desse ensaio preciso, escrito na década de 1950, frise-se, mas atualíssimo em tantos pontos fulcrais:

“Enquanto esse mestre, entre os maiores, não ocupar o lugar a que tem direito, a História da Música, no século XVIII e nos vindouros, não terá a sua total orientação. Efetivamente, nem a escola austro-alemã, tampouco a italiana desse século XVIII, formularam, juntas ou separadamente, toda a estética, toda a vida, toda a beleza. Essas duas escolas, com seus mestres músicos, não apresentaram esteticamente senão uma parte daquilo que se convencionou nomear classicismo. O teatro sinfônico e lírico de Rameau para o século XVIII é tão importante como aquele de Berlioz e de Wagner para o século XIX e de Debussy para o século XX. O inovador é incontestavelmente Rameau ao renovar a concepção da harmonia obedecendo a uma ordem perfeita. Rameau seguia o ritmo do coração”.

Clique para ouvir no YouTube, com Marcelle Meyer ao piano, Le Rappel des Oiseaux de J-P.Rameau

Georges Migot comenta as possíveis causas de Rameau, compositor, ter sido ocultado pela história:

“Qual a causa do ostracismo de Rameau? A Revolução Francesa fez de Rameau aquele que poderia ser. Representar suas obras em público – e o teatro lírico assim exige – seria revelar a magnificência de um outro regime. Passada a Revolução, a música francesa praticada durante o esplendor de Versalhes foi olvidada, até a aparição de Hector Berlioz, que à época foi consagrado inicialmente como músico europeu, antes mesmo de ter sido reconhecido como compositor francês”. Em vários escritos na década de 1970 já mencionava que uma outra razão teria sido a prevalência dos valores profanos na obra de Rameau, diversamente daqueles de seu exato contemporâneo, J.S.Bach, pois a vasta criação de obras religiosas do Kantor alemão não sofreria questionamentos. A magnificência das óperas monárquicas, com enredos voltados prioritariamente ao mitológico e apoiadas por maquinaria extraordinária, já não mais encontrava espaço na sociedade francesa, no caso específico. Um duro golpe já acontecera quando, ao modelo francês monárquico, foi proposto o modelo da ópera italiana, com enredos populares. Jean-Philippe Rameau e Jean-Jacques Rousseau e os adeptos das duas correntes se antagonizaram na célebre “Querelle des Bouffons” ou “Guerre des Coins” (1752-1754). Dezenas de escritos e panfletos publicados!!! Mais de sessenta!!!  Prenúncio da Revolução Francesa. Na realidade, Rousseau, filósofo mas músico diminuto, mais do que pregar uma ideologia visou ao homem Rameau, que fizera comentários não elogiosos a uma sua obra musical, e aquele não esqueceria o fato.

Continuemos com George Migot:

“Sem Intérpretes formados nas escolas de música ao serviço da obra de Jean-Philippe Rameau, público algum pode se reunir em torno dela”.

“A obra para cravo de Rameau traz para a música um testemunho durável, igual em qualidade, mas de diferente natureza se comparada à de J.S.Bach. Seu charme, no senso estrito da palavra, é semelhante na ternura e no patetismo; seu espírito e sua ‘raça’ respondem à proposição de Watteau e exprimem-se em formas cujo movimento e lógica estética realizam um classicismo impregnado da arquitetura do Palácio de Versalhes, satisfazendo ao mesmo tempo a inteligência e a sensibilidade, a Natureza e o Homem. Essas obras para teclado têm uma grande importância: introduzem a opera omnia de Rameau. Não podemos escutar essas composições através de um conhecimento das obras de Bach ou de seus contemporâneos italianos: a prosódia expressiva é diferente, assim como distinta é a de Racine comparada à de Schiller. Rameau, inovador,  libera-se de determinadas disciplinas de escritura para realizar outras, a arquitetar, como sói acontecer, a pujança expressiva das harmonias, a ousadia de suas modulações e, por vezes, uma emocionante rudeza em sua sóbria escritura. Não se trata mais de um helenismo sonoro duplo ou triplo, mas de um ato arquitetural sonoro. Música nova, anunciadora de uma nova etapa através de sua escritura vertical, onde os contrapontos são tratados como nervuras na arquitetura”.

George Migot penetra a seguir num campo que, durante as décadas que se seguiram, foi verdadeiramente minado: o instrumento.

“Nesta gravação (referindo-se à Marcelle Meyer) o piano sucede o clavecin para revelar a música encontrável nessas páginas. Semelhante sucessão instrumental está na tradição. Desde a Idade Média, na verdade até o século XVI, na música vocal, muitas vezes uma ou várias partes cantadas de uma obra eram confiadas aos instrumentos, destinando-as em determinadas oportunidades em sua totalidade. A música não perdeu seus direitos. Na sequência histórica, os atuais instrumentos do quarteto de cordas substituíram pouco a pouco os da família anterior, assim como os de sopro, seus antepassados e o órgão moderno, os ancestrais instrumentos do gênero. Uma obra é antes de tudo música e isso além mesmo do instrumento que a faz ser ouvida. Quantas não foram as peças de órgão de Bach que o compositor não tocava ao cravo ou inversamente? As obras antigas não perdem nada de sua vida interior. Obras de Bach são impostas nos concursos de piano. Por que não as de Rameau? Se a cor instrumental renova-se, a música estará sempre presente. Entender que a cor instrumental imponha-se como necessidade absoluta é acreditar que ela supere o intrínseco valor de uma obra. Sem negar, essa não é minha intenção, e há prazer verdadeiro ao ouvirmos os timbres instrumentais antigos. Não devemos chegar a um estado de espírito semelhante ao do espectador que não aceita ouvir uma obra de Corneille ou de Racine a não ser que interpretada por atores pronunciando as palavras à la manière do século XVII e vestidos com roupas realmente empoeiradas da época”. Mencionaria que, no tricentenário de Carlos Seixas (1704-1742), o coordenador do festival dedicado ao ilustre coimbrão, Prof. Dr. José Maria Pedrosa Cardoso, teve a feliz ideia de realizar na cidade que o viu nascer, Coimbra, Colóquio comemorativo. Três recitais foram programados e a obra para teclado do ilustre conimbricense foi ouvida ao cravo e ao piano na magnífica Biblioteca Joanina e ao órgão na bela capela no Pátio das Escolas da Universidade de Coimbra. Recepção plena!!! Incumbi-me do recital ao piano, apresentando mais de uma dezena de Sonatas para teclado.

George Migot atinge o cerne da questão, as fundamentais de Rameau, base primeira de toda a construção de seu “Traité de l’Harmonie réduite a ses principes naturels” de 1722.

“Indo mais longe, podemos pensar que a concepção harmônica e o baixo fundamental ramista permitem a utilização de um instrumento mais ‘ressonante’ do que o cravo, e o fato não se apresenta como atentatório à obra, muito ao contrário. Se Bach ocupa o lugar que lhe é merecido, é também pela razão de sua divulgação ao piano. Por que não se privilegiar Rameau, cuja escritura vertical, a responder a todas as pesquisas sobre a harmonia, pode resultar magnífica resposta graças às qualidades do piano?  Sob outra égide, constitui verdadeiro maravilhamento ouvir toda a vida esplendorosa de uma obra fora de sua época instrumental. Essa assertiva permite dizer-se que a música está entre a notas e não sobre as notas e os timbres instrumentais decorrentes”.

Numa idealização de autores que escreveram para o cravo, Migot comenta:

“Poderíamos acreditar que Bach ou Rameau teriam sido ‘seduzidos’ se ouvissem suas composições para cravo executadas ao piano. François Couperin, o Grande, pressentia para suas obras um outro instrumento que o clavecin. Explica-se: organista como Rameau e Bach, tinha ele conhecimento do valor expressivo dos sons sustentados”.

Georges Migot conclui, a observar a escuta da obra de teclado de Jean-Philippe Rameau interpretada ao piano na magistral execução de Marcelle Meyer:

Estamos agora preparados para ouvir todas as obras de clavecin do grande Jean-Philippe Rameau interpretadas ao piano. Cada peça deverá ser analisada na plasticidade de suas linhas, em suas harmonias, em suas modulações onde se manifestam o tonal e o modal, em sua arquitetura. Constataremos, então, que esse conjunto constitui o Pórtico por onde transcorre a música dos séculos passados em direção à música moderna.

Ouçamos essas páginas não somente com a emoção musical (no sentido exato da palavra), mas também descobrindo a nobre arquitetura até nas páginas mais descontraídas, assim como toda a rítmica interior. Assim como Bach, do mesmo período, diga-se, é gênio terminal de uma época da música, é Rameau anunciador de uma nova época. Não é mais um gótico em sua síntese posterior: é uma arquitetura nova. Rameau extasiou seus coetâneos, assim como fez Debussy. Sua linha sonora não é mais decorativa: ela é plástica. Foi criada tanto no Espaço como no Tempo.

Escutemos, com ouvidos renovados e liberados de todos partis pris,  a admirável mensagem musical de Jean-Philippe Rameau por Marcelle Meyer”. (tradução J.E.M.).

Ensaio emblemático, que já perdura desde os anos 1950.

Clique para ouvir no YouTube, com Marcelle Meyer ao piano, Gavote et ses doubles de J-P.Rameau

Tendo sido o segundo pianista a gravar a integral de Rameau para teclado (obra original), acrescida de algumas das transcrições feitas pelo autor de “Les Indes Galantes”, apresentarei no próximo post o texto fulcral do compositor e pensador francês François Servenière, datado de 2011, a analisar o álbum mencionado e extraído de “Réflexion sur la discographie du pianiste brésilien José Eduardo Martins”.

As my recitals in São Paulo with the complete keyboard works by Jean-Philippe Rameau approach, the next four blogs will be dedicated to relevant articles and opinions written on this great composer and my considerations about his works for clavier. To begin with, I translate segments of a critical appraisal made by the French composer, poet and painter George Migot (1891-1976) of the first recording of Rameau’s complete “pieces de clavecin” played on the piano with magnificent artistry by the French pianist Marcelle Meyer (1897-1958).

 

 

 

 

 

Heitor Rosa e seus contos hilariantes

Então
os sinos irromperam
de alegria
no teu místico voo.
Idalete Giga
(“O Canto da Palavra”)

Heitor Rosa, um sábio, antes mesmo de ter enveredado pela literatura. Professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade de Goiás, ocupou cargos acadêmicos relevantes. Renomado hepatologista brasileiro e autor de inúmeros artigos significativos para publicações científicas de sua área, Heitor Rosa não se restringiu unicamente à medicina. O imaginário, após os horários de uma atividade profissional que prossegue exitosa, levou-o a viagens as mais extraordinárias pela história das práticas médicas, tratamento e posologia. Estudou profundamente ervas e poções utilizadas, mormente  a partir da Idade Média. A sabedoria de Heitor Rosa expande-se de maneira elástica, chegando às práticas mais hodiernas da medicina.

Considere-se que parte considerável desse precioso acervo, que corrobora o conhecimento acumulado durante séculos, encontra-se empoeirada em quantidade enorme de compêndios sobre procedimentos médicos  variados, que permanecem quase sem visitação nas Bibliotecas espalhadas pelo mundo. O desconhecimento e a não frequência a essas raridades tornam inviáveis, na atualidade, compreendê-los em sua abrangência graças à diminuta divulgação. Antolha-se-me que, em  quase todas as áreas, o descaso pelo passado oblitera irremediavelmente a análise precisa do presente.

Conheci Heitor Rosa em Goiânia. Quando na cidade para recitais ou curso estudo em seu apartamento, no piano diariamente frequentado por sua esposa, a professora da Escola de Música e de Artes Cênicas da UFG, Consuelo Quireze Rosa. Conversas com o prezado amigo são riquíssimas nas tantas temáticas abordadas, pois não temos limites nesses diálogos prazerosos. Escritor dos bons, ofereceu-me há anos dois livros referenciais, “Memórias de um Cirurgião Barbeiro” (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2006) e “Julgamento em Notre Dame” (São Paulo, Livronovo, 2009). O primeiro, já lido com todo interesse, espero resenhá-lo ainda neste ano. Nesta última viagem a Goiânia, para participar do VIº Simpósio de Musicologia promovido pela EMAC-UFG, presenteou-me com livro bem anterior, “O Enigma da 5ª Sinfonia” (São Paulo, Ecrituras, 2000).

O debruçamento de Heitor Rosa sobre práticas cirúrgicas, processos de manipulação de medicamentos e instrumental utilizado enriqueceu seu imaginário. Seria possível também entender que as ideias concernentes às narrativas tenham estimulado a pesquisa. Há sempre mistérios a envolver a criação.

Em “O Enigma da 5ª Sinfonia” Rosa apresenta contos, por vezes hilariantes e plenos de humor. Essa alternância conduz o leitor à vontade de continuar a penetrar nas histórias que se sucedem. Frise-se, o médico consagrado está presente em muitos dos contos, não fisicamente, mas a  transmitir seu conhecimento da história da medicina, aplicando-o aos vários personagens, alguns grandes figuras do passado, em situações relativas aos possíveis males que porventura tenham sofrido.

Pleno de humor, o conto “Fiat Lux”, a envolver um suposto cálculo na bexiga de Sir Isaac Newton (1642-1727). Jocoso o fantasioso diálogo com o médico instado a consultá-lo em 1726, mercê de hipotética incontinência urinária do notável cientista, matemático, físico, filósofo, astrônomo, teólogo e alquimista. Insiro parte dessa conversa:

“- Sire, estou certo de que tendes cálculos.
- Isso todo mundo sabe, eu vivo de cálculos. Não vieste de tão longe para dizer-me isso.
- Quero dizer na bexiga…
- E é grave?
- Com mais observação posso calcular a gravidade.
- Não sejais pretensioso. Quem calcula a gravidade sou eu e já fiz isso há vinte anos atrás.
- Está bem. Vou fazer uma fórmula para os vossos cálculos e ficareis sem dores.
- Não. Vós não entendestes nada. As fórmulas resultantes dos meus cálculos já foram publicadas. Sabeis realmente quem sou?
- Acho que quem não entendeu fostes vós, senhor. Estou querendo segredar-vos que tendes uma pedra…
- Se viestes aqui pensando que eu tenho o segredo da pedra filosofal, estais perdendo o vosso tempo, amigo, e sendo impertinente.
- Sois obsessivo, senhor. Desde que aqui cheguei não me deixais concluir o pensamento,  pois há vários minutos tento dizer que tendes uma pedra na bexiga e quero formular um remédio para vossas dores.
- Por que não dissestes claramente? Por vezes eu não sei distinguir as leis da minha natureza daquelas da natureza universal e posso confundir as palavras”.

No desenrolar do conto em apreço, Heitor Rosa demonstra todo um conhecimento das práticas  e medicações àquela época empregadas.

Não menos hilariante o conto que empresta título ao livro, “O Enigma da 5ª Sinfonia”. Partindo de um pequeno tratado sobre percussão clínica de 1761, de autoria do médico austríaco Leopold Auenbrugger, Rosa percorre algumas décadas e “está” em Viena a narrar o diálogo de  médicos a respeito do precioso tratado e o diagnóstico que poderia advir em doenças do tórax e do abdome. Enfim, ei-los diante de Ludwig van  Beethoven (1770-1827), que estaria a sofrer de problemas no abdome. Novamente transcrevo segmento do conto em que o suposto Dr. Rosen (!!!) demonstra o cuidado que levaria ao diagnóstico:

“Minha mão esquerda estava espalmada sobre o abdome, enquanto que um dedo da mão direita martelava firme e ritmicamente sobre um dos dedos espalmados. Os sons iam aparecendo e mudando de timbre à medida que novas áreas iam sendo percutidas. O som maciço nos flancos denunciava uma provável presença de hidropisia, enquanto que do centro da barriga ecoavam os sons de um tambor, acusando a presença de gases nos intestinos. Percuti novamente a área e fui subitamente interrompido por uma ordem imperiosa e angustiada.

- Pare! disse Beethoven. Pare, não quero mais sentir este som.
- Perdão, mestre, não tive a intenção de provocar-lhe dor.
- Eu não estou sentindo dores… Ou melhor, minha dor é outra. Eu disse que não quero mais sentir os meus sons.
- O senhor quer dizer que ouviu os sons?
- Não, para ouvir os meus sons eu não preciso escutá-los.
- Não entendi. Mas por que devo interromper o exame? Não compreendo…
- O senhor não sabe e nem deve compreender. Oh! Deus, estas batidas, estes sons batendo à minha porta. É assim que o destino bate à porta?
- Bem, eu não sei… mas não tinha a intenção de incomodá-lo.
- Não é o senhor que me incomoda, é o destino.
- Mas o que tem o destino a ver com meu exame?
Pareceu-me que ele delirava, tal a reação incontrolável que minhas pancadinhas provocaram no mestre.
- Basta, doutor Rosen O senhor não sabe o que está dizendo e nem vou explicar-lhe.
Beethoven vestiu a sua camisa e sem uma palavra dirigiu-se ao piano na sala contígua, sentou-se e decididamente tocou: Sol, Sol, Sol, Mi bemol”.

O narrador, Dr.Rosen, demonstra seus conhecimentos ao transcrever a receita adequada: “Prescrevi-lhe uma poção de ratânia, para tomar às colheradas, e gotas de ipecacuanha. Valeram-me os medicamentos que trouxera de Paris. A medicina francesa enriquecera-se bastante com o conhecimento médico das plantas exóticas com propriedades medicinais, trazidas das mais remotas regiões da terra; essas novas aquisições e suas formulações já podiam ser estudadas na Pharmacopée Royale Galenique et Chymique“. As inúmeras viagens ao Exterior, inclusive estágios prolongados em centros médicos renomados, foram essenciais a Heitor Rosa em seus aprofundamentos sobre a história da medicina.

O conto se desenrola e, para a primeira audição da “Quinta Sinfonia”, o Dr. Rosen foi convidado. Ficaria extasiado ao ouvir o “resultado” das suas batidas percussivas no abdome do compositor e… revindicaria a coautoria temática.

Gargalhei durante a leitura do conto “Regresso ou regressão?”, no qual um comerciante com total idiossincrasia por voos enfim consulta um psicanalista. Todo o transcorrer da narrativa em que o consultado Saul Divino é tratado pelo médico Godofredo, as regressões através do hipnotismo que o levam primeiramente aos tempos de Santos Dumont e, numa segunda sessão, aos de Leonardo Da Vinci, são simplesmente de imensa imaginação.

O auto,  “O achatamento do monte Paschual”, peça em um ato, apresenta com a comicidade necessária e com o conhecimento histórico prévio de Heitor Rosa, a navegação de Pedro Álvares Cabral, desvio da rota e muitas surpresas. Entre os personagens principais: “Pedr’Alvarez Cabral, Capitão Pero Escolar, Pedro Vaz Caminha, Luis Camoens, Frei Henrique Coimbra e o Sururgião”.

“Houve um tempo em que não havia juízes em Israel e cada um fazia o que lhe desse na cabeça ou o que julgasse melhor. Mas depois houve um tempo em que havia juízes. Uma pessoa se tornava juiz por um dos três caminhos: por escolha do povo, por autoaclamação ou por desígnio divino”. Heitor Rosa, em “Juízes Finais”, conduz um longo julgamento de juízes em tempos bíblicos, perante o Sumo Sacerdote Jabeslão e o grupo de anciãos, a resultar na absolvição de todos. Induziria o leitor a traçar paralelismos…

Os dois últimos contos, curtos, mas engraçadíssimos, levam-nos a conhecer Creusa “… que entrou em nossa vida por acaso, ou melhor, só porque precisávamos de alguém que arrumasse a casa”. Creusa, de 120 quilos, estabanada, destruiria, na arrumação e na ausência do “patrão”, dois manuscritos do século X como papel velho, retiraria todos os livros da biblioteca, recolocando-os ao seu critério, passaria bom bril em todos os CDs a fim de limpá-los e… cantava, ou melhor, “gargarejava”.

A nossa vida cultural está às avessas. São os holofotes que “determinam a qualidade” e não o valor intrínseco de um autor. Em todas as áreas culturais. São divulgados ad nauseam autores que, na realidade, têm a “auréola” da mediocridade. Conhece o Brasil Heitor Rosa? Editoras mais representativas no Brasil publicam seus livros? Nada a fazer nesse universo mediático nivelado rigorosamente por baixo.

This post comments on the book “O Enigma da 5a. Sinfonia” (The Enigma of the 5th Symphony), written by the gastroenterologist Heitor Rosa. A serious researcher of medical practices from the past, his stories with fictitious and historical characters blended together completely captivate readers with conciseness, humor and imagination, at the same time giving a lesson on medicine history. It’s time to shed light on this talented and highly underestimated writer whose books deserve better promotion and marketing.