Ives Gandra Martins em artigo basilar

Dou muito mais valor a um juiz de primeira instância,
seja federal ou estadual, que passa por um concurso exaustivo,
do que magistrados que, por melhores que sejam,
precisam fazer campanha de amizade
e contar com excelente relacionamento com o presidente da República.
Ives Gandra Martins
“Blog do Fausto Macedo” (Estadão, 08/10/2024)

Inúmeras vezes comentei que, nos mais de 900 posts, nunca abordei temas relacionados à política e aos Três Poderes, em conjunto ou separadamente. Meus temas são essencialmente culturais, máxime a Música e, por vezes, escrevo sobre fatos do cotidiano que me surpreendem. Ao ler artigo do meu irmão Ives, notável jurista, a respeito da constituição do Poder Judiciário, decorrente da apresentação de um trabalho do economista José Pastore, “Custo da insegurança jurídica”, entendi o alcance do seu pensamento quanto às escolhas dos membros dos Tribunais Superiores. Partindo da atual composição do Tribunal Superior do Trabalho, estende-se ao Supremo Tribunal Federal.

Entende Ives Gandra Martins que escolhas para as Cortes Superiores deveriam  contemplar aqueles que passaram por concursos complexos e que têm a experiência adquirida nas várias instâncias jurídicas. Seriam estas que amadurecem o futuro ungido aos Tribunais Superiores.

É tão fácil deduzir que, para a carreira acadêmica em universidade pública, no caso a Universidade de São Paulo, há degraus e eles são percorridos através dos anos ou décadas. A categoria básica é a do Auxiliar de Ensino detentor do curso de graduação. A progressão passa por etapas, Mestrado, Doutorado, Livre Docência e Titulação. Integrei durante alguns anos o Concelho Universitário da USP. Quanto à escolha do Reitor, a Comunidade universitária opina, a Assembleia Universitária seleciona e dela fazem parte: Concelho Universitário, Concelhos Centrais, Congregações das Unidades, Concelhos Deliberativos dos Museus e Institutos Especializados. Há toda uma tramitação que pressupõe debate público entre os postulantes, consulta à comunidade, eleição para composição da lista tríplice, votação e apuração, nomeação do novo Reitor e seu vice pelo Governador. Esse rigor, que deveria existir na escolha de um Ministro dos Tribunais Superiores, inexiste. Um professor bacharel não seria escolhido Reitor da USP, mas um advogado pode ser ungido para o STF após indicação do presidente de plantão e a aprovação pelo Senado, que na realidade – assistindo-se ao histórico — apenas ratifica a escolha presidencial.  Ives Gandra Martins, nesse artigo basilar, comenta: “Hoje, no Supremo Tribunal Federal, temos três Ministros que vieram da magistratura e oito que não vieram. São profissionais competentes, mas amigos do presidente. Apesar de eu respeitar e admirar esses Ministros, com alguns dos quais escrevi livros, essa mentalidade tomou conta do nosso Poder Judiciário, gerando a insegurança jurídica e as distorções que constatamos na excelente apresentação do professor José Pastore, que não serão facilmente reformadas”.

Em outro segmento de “Amigo do rei”, o jurista Ives Gandra Martins escreve: “Vemos a campanha feita pelo governo no sentido de reestatização de determinadas empresas e, ao mesmo tempo, a forma como cargos de empresas estatais, principalmente a Petrobras, têm sido novamente loteados, como eram no passado. Sabemos perfeitamente que, quando a empresa não pertence aos donos, nem aos acionistas, ou a ninguém em particular, torna-se campo fértil para a corrupção”.  Assistimos, durante a extinta Lava Jato, figuras “importantes” nas Estatais e nas Empresas Privadas devolverem rios de dinheiro. Hoje todos gozam da plena liberdade. Sem mais comentários.

Ives Gandra Martins, após historiar o Velho Testamento, conclui “que o pior período de Israel foi quando governado por juízes. É que os juízes não têm contato com o povo”.

Acredito que a rejeição de considerável parcela do povo a respeito dos membros do STF advém da preponderância até abusiva em tantas decisões. Estou a me lembrar de apenas dois Ministros do STF que tive o prazer de conhecer, Ministro Eros Grau (2004-2010) e Ministro Carlos Mário Velloso (1990-2006). Visitei Eros Grau em sua morada em Tiradentes (MG) após recital de órgão que dei na magnífica Igreja Matriz de Santo Antônio, e durante um período fomos membros do Conselho Universitário da USP. Em missão especial chefiada pelo Ministro Carlos Mário Velloso, Ives, João Carlos e eu viajamos à Romênia. Entre reuniões oficiais, João Carlos e eu demos recitais de piano em várias cidades romenas. Ambos os Ministros podiam andar pelas ruas brasileiras sem jamais serem molestados, muito pelo contrário, eram saudados.

Creio fulcral o término do artigo de Ives Gandra Martins: “O trabalho nas faculdades e escolas é crucial para que uma nova geração enfrente esse desafio. Aos 89 anos, essa luta não é mais minha, mas de vocês. Este é o grande drama do Brasil e a verdadeira batalha que enfrentamos. A essa altura, uma batalha que não será fácil. Há de termos, entretanto, uma democracia com harmonia e independência dos Poderes, cada um nos limites constitucionais que lhe foram concedidos”.

Tenho grande orgulho de tê-lo como irmão. Independentemente do grande jurista que é, autor de mais de uma centena de livros, Ives é uma figura irretocável sob todos os aspectos, fato raríssimo na atualidade.

Clique para ouvir, de Tchaikovsky, Doumka. A gravação ao vivo foi realizada pela Rádio Central de Moscou em 1962. É um pequeno tributo ao querido irmão, pois uma de suas músicas preferidas.

Tchaikovsky – Dumka – José Eduardo Martins – piano (youtube.com)

 

After reading a fundamental article by my brother Ives Gandra Martins, a noted jurist, I decided to comment on some of his positions stated in his post “The king’s friend”, published on Fausto Macedo’s blog (’Estadão’, 2024, 10/10).

 

Romance de Edson Amâncio

A mente é instável e desajeitada, vagueando por onde mais deseja.
Portanto, é bom controlar a mente.
Uma mente disciplinada traz felicidade
(sukra).
(“Dhammapada” As palavras de Buda – Nova Acrópole, s.d. Portugal)

Há pouco tempo escrevi sobre recente lançamento de um livro do renomado médico neurologista e neurocirurgião Edson Amâncio (vide blog “Meu Dostoiévski: Os minutos finais”, 20/01/2024). Recentemente o autor me ofereceu uma provocante novela escrita em 1997, “Minha cara impune”. Edson Amâncio é autor de diversos livros, cultivando vários gêneros literários, entre os quais romance, conto, novela e também obras de divulgação científica. Mencionaria “Diário de um médico louco” (romance 2012) e “Experiência de Quase Morte” (2022), entre outros.

“Minha cara impune” tem como enredo um médico do serviço público atendendo legião de enfermos, mas que, durante as rápidas consultas, viaja mentalmente ao passado ou ao cotidiano descolorido. A imaginação silenciosa, bombardeada por pensamentos que se metamorfoseiam, máxime direcionados ao dia a dia que não o satisfaz, coloca em evidência os problemas de toda ordem existentes nos ambientes dos prontos-socorros públicos e vividos pelo médico personagem.

O plantonista sem esperanças atende pacientes portadores dos mais variados males e, sem qualquer emoção, receita medicamentos ou os encaminha para um outro setor. Sente-se o enfado da rotina desde o despertar, o trajeto de moto e o plantão costumeiro. Não poucas vezes se questiona “para fugir à rotina dos hospitais, aos abcessos, às furunculoses, aos corrimentos, aos boduns dos ambulatórios, para quê?” ou então “no maldito plantão de amanhã”. Não há o prazer da ação como médico, mas o amargor constante. O personagem está a viver duas situações claras, a realidade diante dos fatos, seja na prática médica, seja na memória imperiosa que o fustiga sem tréguas, à maneira de uma erupção, sempre que a fala de um paciente ou a constatação de uma doença qualquer faz jorrar o magma imaginário. Edson Amâncio, nessa perene dualidade, interrompendo a realidade do ato médico presente para evocar reminiscências de toda ordem, apresenta o personagem em constante conflito. O leitor se acostuma com esse jogo.

A rotina do plantonista é sempre revisitada. Um exemplo bem exemplifica algo que ocorre diariamente em situações análogas reais: “Quando entrou, ‘Senhor doutor, vim tirar a pressão’, ele não sabia que eu estava lá há mais de dez horas naquele cubículo, sob as lerdas pás de um ventilador envolto em poeira e teias de aranha, rangendo e expulsando uma coluna de ar infectado, no pequeno espaço onde eu me comprimia, atrás de uma mesa fórmica, segurando uma caneta”. E tem significado o solilóquio do médico de plantão diante do paciente: “Minha cara impune, igual àquela hora, ou depois de um porre salomônico que endireita o pensamento e me prepara para o dia seguinte e os outros plantões que ainda terei de enfrentar pela vida afora, a mesma cara letárgica, suarenta, de barba amanhecida, dos incontáveis plantões, dos inumeráveis simulacros cotidianos, iludia-o com eficiência de mascate tantas vezes praticada na solidão dos consultórios, não o deixando adivinhar o desprazer controlado daquele momento”. E mais, “Pego uma toalha manchada, displicentemente abandonada sobre a pia, abano-a no ar tentando diluir o bodum que restou da mistura de odores humanos e fumaça de cigarros acumulada no ar”. Em capítulo outro: “É raro, raríssimo, me procurarem no plantão pelo nome. Aqui não se diz o nome aos pacientes. A assinatura é ilegível. São essas as artimanhas que nos livram precariamente, é bem verdade, de termos os nomes estampados nas páginas policiais ou nas manchetes da imprensa marrom: ‘Médico demora duas horas para atender criancinha morta na fila!’ Engulo o café e autorizo Bernarda a trazer quem me procura”.

Relatos hodiernos, publicados pelos tantos meios de comunicação, exemplificam a carência do atendimento nos prontos-socorros públicos, quando, tantas vezes, consultas e cirurgias são fixadas em longuíssima data, sendo que o mal sem tréguas jamais aguarda agendamentos distantes.

Na realidade há uma gama ampla de profissionais da saúde no serviço público, de ótimos e dedicados aos que entendem os plantões como horários de tédio. Há cerca de duas décadas uma prestadora de serviços domésticos me afirmou que o seu maior desalento, quando em consulta nos prontos-socorros oficiais, era a longa espera e o atendimento rapidíssimo, tantas vezes sem que o médico de plantão sequer olhasse para o seu rosto. Em todas as profissões há os vocacionados e, para tantos desses, o trabalho ao qual se dedicam é uma dádiva. São os que amam a profissão e corroboram as opiniões positivas, a contrapor o tão criticado serviço médico público. Sob outra égide, quantos não são aqueles que entram no curso superior em determinada área do conhecimento e após meses, ou mesmo bem mais do que esse período, entendendo o não envolvimento em determinado curso, abandona-o para tentar um outro, encontrando-se. Essa mudança, que requer coragem, geralmente resultará em profissionais certos das escolhas feitas. Àqueles sem o apelo vocacional, a profissão será apenas o mal necessário. Legião se esquece do juramento de Hipócrates. Outros seguirão, como vocacionados, os preceitos do lendário médico grego.

“Minha cara impune” não apenas configura a realidade existente nos prontos-socorros públicos e suas instalações tantas vezes precárias, como o desprazer de tantos profissionais voltados ao atendimento de multidão de pacientes em consultas rápidas, sem qualquer interação médico-paciente. Rotina, simplesmente. Pouco provável que, submetidos a esse labor, um profissional da área não realize seus voos mentais. Rotina, má remuneração, atenção constante quanto aos diagnósticos, impessoalidade “Aqui não se diz o nome do médico. A assinatura é ilegível”, palavras que dimensionam o livro de Edson Amâncio, que não deixa de ter um componente essencial, a denúncia.

In his novel ‘Minha face impune’, the renowned neurosurgeon and writer Edson Amâncio introduces a character who, as a doctor, works dejectedly in the emergency room of a public hospital. During his quick and endless consultations, his mind travels through his imagination.

Alguns aspectos das linguagens musicais de dois grandes mestres

Os compositores que “entraram” no repertório desde meados de 1800,
de Josquin des Prés (c.1440-1521) a Béla  Bartók (1881-1945),
não o fizeram apenas porque a sua música é de alta qualidade,
mas porque tiveram um apoio poderoso.
J.Peter Burkhouder (1954-)

Neste terceiro post dedicado às criações para cravo de Domenico Scarlatti e Carlos Seixas abordarei alguns processos composicionais que, apesar de formalmente estruturados em padrões praticados em vários países europeus no mesmo período, divergem, o que seria natural, através das “impressões digitais” de cada autor. Processos técnico-tecladísticos, incluindo ornamentação, distinguem igualmente os dois Mestres.

Domenico Scarlatti, ao chegar em Lisboa em 1719 a convite de D. João V, já era músico consagrado em vários centros europeus. Carlos Seixas àquela altura tinha apenas 15 anos, sendo que o músico napolitano admirava as interpretações do jovem músico conimbricense. Macario Santiago Kastner (vide os dois blogs anteriores) bem se posiciona ao não sentir influências que porventura Scarlatti pudesse ter sobre Seixas. Claramente são linguagens distintas e, se proximidades existem, devem-se à “obediência” a determinados elementos dogmáticos da forma que vigoravam na Europa e da própria técnica digital empregada à altura.

Compositor respeitado em centros europeus, máxime por criações outras que não especificamente para cravo, quando em Lisboa, a partir de Novembro de 1719, Scarlatti  mantém a linguagem de suas Sonatas para teclado, sendo que, ao ser preceptor da Infanta Maria Bárbara, precoce e talentosa cravista, progressivamente a escrita para cravo se enriquece e adquire uma maior virtuosidade, a acompanhar a própria evolução técnico-interpretativa da discípula real, fato que continuaria ao longo das suas existências. Basicamente Scarlatti utilizava-se da forma consagrada no período, bipartida e monotemática. Após Lisboa, agregaria novas soluções e, instalado em Madrid, sempre próximo a então Rainha Consorte, após o casamento com o Rei D. Fernando VI, Scarlatti, no amparo da realeza, escreverá a grande maioria de suas criações para cravo. Amplia-se o virtuosismo e determinadas práticas, como a das mãos alternadas, estarão presentes em inúmeras criações para cravo. Suas Sonatas têm maior regularidade escritural se comparadas às de Carlos Seixas, mormente pela constância da destinação às mãos da personalidade real.

Santiago Kastner observa que “Seixas apresenta só excepcionalmente e contadas vezes o tipo de sonata monotemática inteiramente simétrica da feição”.  As dimensões das 105 Sonatas conhecidas de Seixas, extraindo-se os minuetos ou outras curtas peças introduzidas pelo compositor após o tempo primeiro de Sonata, evidenciam diferenças enormes quanto à quantidade de compassos, que podem variar sensivelmente. Saliente-se que Seixas demonstra uma nítida preferência por tratamento outro da forma bipartida e monotemática, alterando-a inúmeras vezes, alargando sensivelmente a segunda parte, que, pela tradição, mantinha usualmente a mesma dimensão da primeira parte. Da edição das Sonatas de Seixas realizada por Santiago Kastner e publicadas pela Fundação Calouste Gulbenkian, mencionaria quatro exemplos sensíveis: Sonata nº 13 (1ª parte, 96 compassos, 2ª parte 177), Sonata nº 16 (62-121), Sonata nº 78 (31-56) e a extraordinária nº 10 (133-257, total 390 compassos!!!). Distender a 2ª parte possibilitou a Seixas introduzir novos elementos, modular mais e degustar, por vezes, o cromatismo na mão esquerda. A modulação constante proporciona ao pianista, no caso, uma certa flexibilização breve, que “antevê” o denominado rubato tão apregoado no romantismo. Sob outra égide, é bem provável que o compositor português, que permaneceu sempre em seu país, sem ter cruzado as fronteiras, tenha em algumas de suas Sonatas uma linguagem “mais simples”, quando a pensar nas mãos de seus alunos de níveis diversos. Para tanto, há Sonatas curtíssimas mantendo a forma bipartida e monotemática em sua essencialidade: Sonata nº 34 (34 compassos), Sonata nº 37 (24 compassos).

Num aspecto outro, considere-se a distribuição do técnico-tecladístico pelas mãos. Santiago Kastner observa com acuidade: “É um facto notável que todas as sonatas de Domenico Scarlatti conservadas em Portugal e em manuscritos portugueses evidenciam uma técnica da mão esquerda muito mais simples do que outras sonatas suas. Essas sonatas, consignadas em Portugal, não revelam a técnica equilibradíssima e tão virtuosa repartida igualmente entre as duas mãos que conhecemos das suas obras da época madrilena. Nas sonatas compostas em Lisboa, onde a parte da mão esquerda resulta bastante mais fácil do que a parte da direita, a técnica instrumental e manual de Scarlatti não se diferencia grandemente da técnica de Seixas, que cede à mão direita a preponderância das dificuldades técnicas”. Em várias Sonatas, Seixas divide essas dificuldades entre as duas mãos. Todavia a distribuição a preponderar a mão direita, como visto, proporcionaria a Seixas uma mão esquerda muito atuante nas sendas da harmonia e o emprego, por vezes, de longos cromatismos, motivo que ao piano resulta na graduação sensível de crescendos ou diminuendos.

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, a mencionada Sonata em Dó Maior nº 10, na interpretação de J.E.M.

Sonata nº 10.

No colóquio promovido pela Universidade de Coimbra em 2004, a assinalar o tricentenário de nascimento de Carlos Seixas, houve palestras cujos textos foram publicados, recitais e concerto. Engenhosamente, os organizadores propuseram três recitais: órgão na Capela Real de Universidade (José Luís Uriol no órgão), cravo e piano na Biblioteca Joanina, Ketil Haugsand e J.E.M., respectivamente.

Quanto aos ornamentos, os compositores franceses do período utilizaram feericamente a ornamentação. Fazia parte essencial de suas escritas. François Couperin (1668-1733) e Jean-Philippe Rameau (1683-1764) estabeleceram tabelas de agréments para a devida execução de suas obras. Trinados,  mordentes, apogiaturas proliferam em suas criações. Um exemplo típico encontramos em L’Égyptienne de Rameau.

Clique para ouvir, de Jean-Philippe Rameau, L’Egyptienne, na interpretação de J.E.M:

Jean-Philippe Rameau – L’Egyptienne – José Eduardo Martins – piano (youtube.com)

Na Alemanha, e mormente na Itália, os compositores foram mais econômicos em relação à ornamentação. O biógrafo maior de Scarlatti, Ralph Kirkpatrick, observa que o compositor napolitano emprega trinados, mordentes, apogiaturas e outras sinalizações quando necessário. Pondera: “Assim como a maioria dos compositores italianos, Scarlatti nunca fez uso de um vocabulário inteiramente codificado e coerente para a ornamentação musical…”. Criteriosamente, o estudioso observa que, em sua pesquisa, “todos os exemplos tirados das Sonatas scarlatianas foram de acordo com uma recolha de manuscritos, de onde se concluem numerosas diferenças com as edições de Alessandro Longo, infelizmente inexata no que concerne à ornamentação”.

Clique para ouvir, de Scarlatti, a Sonata em Dó Maior, L3, na interpretação de Regina Normanha Martins ao vivo. Capela Saint-Hylarius, Mullem, Bélgica, 2001:

https://youtu.be/AYj7D0E-aMw?si=HwiHKGyrKRdvAlhc

Em Portugal, Carlos Seixas se mostra bem reservado quanto à ornamentação. Macario Santiago Kastner pondera: “Desconhece Seixas a rica ornamentação dos estrangeiros. Embora que algumas vezes um ou outro ornamento possa parecer subentendido e não ser expressamente indicado pelo autor, e ainda estar autorizado o intérprete de acrescentar, segundo o seu critério e bom gosto, algum ornamento com o fim de avivar e embelecer o discurso musical e de torná-lo mais sonoroso no instrumento de tecla, nem por isso os pentagramas de Seixas adquiririam o aspecto florido da maioria dos autores estrangeiros”. Infelizmente, o “algum ornamento” redigido por Kastner, na atualidade tem proliferado, e determinados intérpretes têm arbitrariamente inserido um sem número de ornamentos inexistentes nos manuscritos do compositor coimbrão, principalmente quando interpretados no instrumento original, o cravo. Creio que, pelo fato de o piano possibilitar o amplo emprego da dinâmica, da articulação e da acentuação, os intérpretes das criações de Carlos Seixas se mostram mais fiéis à escrita original do compositor, o que poderá ser entendido até como paradoxal.

Ralph Kirkpatrick (1911-1984), que realizou edição, catalogação e um livro basilar sobre Domenico Scarlatti contendo quase 500 páginas, dedica apenas meia página a Carlos Seixas e escreve: “Comparado a Scarlatti, Seixas permanece como um compositor de segunda categoria”. (Princeton University Press, 1953). Havia, à altura, apenas as edições, sob os cuidados do cravista e musicólogo Santiago Kastner, de algumas Sonatas de Seixas publicadas na Alemanha, fato que aponta para o desconhecimento do compositor português por parte de Ralph Kirkpatrick. Entre 1965-1992 seriam publicadas 80 Sonatas de Seixas, mais outras 25, igualmente sob os cuidados de Kastner, pois musicólogos consideram que centenas se perderam no terremoto de 1755. O notável musicólogo José Maria Pedrosa (1942-2021) afirma: “Pode-se dizer que Portugal despertou finalmente para Carlos Seixas na segunda metade do século XX”. Como comentei anteriormente, há sim desigualdades nas Sonatas de Carlos Seixas, mercê das destinações explícitas dos dois compositores. Não obstante, jamais Carlos Seixas poderia ser considerado músico menor. Nesse Quarto Encontro, Regina e eu selecionamos Sonatas que evidenciam, sim, a maestria de dois compositores do maior quilate.

A História da Música tem exemplos de compositores que, redescobertos, ainda precisaram de décadas para serem entendidos como de excelência e, pouco a pouco, ingressarem nos repertórios. No interregno que separa o achado à acolhida pelos intérpretes e, consequentemente, pelo público, dúvidas pairaram. Felix Mendelssohn Bartholdi (1809-1847) “redescobriu” J.S.Bach e sabemos os resultados, Camille Saint-Saëns (1835-1921) fez o mesmo com a obra de Jean-Philippe Rameau (1683-1764). Em termos pátrios, Henrique Oswald (1852-1931) teve maior divulgação desde a década de 1980, graças à dedicação de sua neta, a saudosa Maria Isabel Oswald Monteiro. Juntos, iniciamos uma recuperação que, felizmente, resultou na primeira tese sobre  compositor, que defendi junto à USP em 1988, tendo gravado cinco LPs no Brasil e quatro CDs na Bélgica com criações de Oswald. Hoje já são mais de uma dezena de teses defendidas no Brasil e no Exterior. Recitais e concertos realizados por intérpretes de valor corroboram a divulgação da obra de Henrique Oswald.

A não revelação maior das criações de um autor de mérito quase sempre minimiza o seu valor, principalmente quando encobertas pelas névoas. Apenas a passagem do tempo trará alicerces seguros para que a divulgação desperte o acolhimento definitivo. A pesquisa séria tem revelado tesouros sepultos. Ouçamos Domenico Scarlatti e Carlos Seixas, figuras exponenciais entre aqueles que se notabilizaram na criação de obras para cravo e suas nomenclaturas pela Europa, clavicembalo, clavecin, harpsichord, klavier…

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, Sonata em lá menor nº68, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=xMfY0S0pBH8

In this third post, I’ll comment on the similarities and some differences between the two remarkable composers, Domenico Scarlatti and Carlos Seixas.