In Memoriam do Cadeirante Israel Cruz Jackson de Barros

Se me apontares ao impossível,
te sairá baixo o tiro ao possível.
Agostinho da Silva

O percurso da corrida de São Silvestre de 2011 foi dramático (vide Corrida de São Silvestre e Equívocos – Quando Interesses Estranhos Sobrepõem-se à Alegria de Muitos. 07/01/2011). A Yescom, ao inserir a descida da Avenida Brigadeiro Luiz Antônio em direção ao Ibirapuera, após a difícil subida da mesma avenida desde o centro da cidade, sujeitou milhares de atletas amadores a um desgaste físico, mormente das articulações dos joelhos, de maneira, poder-se-ia dizer, irresponsável. A dispersão após a chegada teve lances tragicômicos, com milhares de atletas enlameados devido ao forte aguaceiro durante todo o trajeto e à total falta de infraestrutura, pois inexiste meio de transporte à altura naquela região para atender uma malta imensa. Logo a seguir à corrida, dirigente vangloriava a organização pelo sucesso do “novo” roteiro. Sabedores das lesões a que foram acometidos centenas e centenas de amadores, a Yescom ficou silenciosa, nem enviou questionário prometido aos participantes a solicitar opinião sobre o trajeto de 2011. Fiquei com edema nos joelhos durante bom tempo, tive de fazer ressonância magnética e fisioterapia. Curei-me. Outros corredores com quem converso antes de cada prova sofreram mais, pois meniscos e patelas ficaram bem avariados.

Para a corrida do fim de ano que passou alteraram o horário para o período da manhã, voltou-se ao percurso antigo, mas com uma agravante existente no percurso de 2011, a descida da Major Natanael, verdadeira pirambeira que desce da Dr. Arnaldo até o estádio do Pacaembu e após, sob o nome Desembargador Paulo Passalacqua - plana por algumas dezenas de metros -, apresentando outro declive menos acentuado até a praça Charles Miller. Inútil dizer, e tantos excelentes corredores com quem conversei ratificaram, que submeter o atleta amador a uma descida tão acentuada a pouco mais de 1km da largada é irresponsabilidade plena. O antigo trajeto da Consolação atendia a todas as exigências físicas, descida compatível com a temível subida da Brigadeiro Luís Antônio a cerca de 3km antes da chegada na Paulista. Percebe-se que se está diante de empresários amadores no que concerne ao esporte, pois sem a antevisão do possível erro, equívoco ou acidente.  As organizações de corrida Corpore, Circuito das Estações Adidas e JJS, apenas como exemplos, têm dado demonstrações constantes de boa organização. Por que não seguir o que está a dar certo? Qual a razão de constantes modificações e até descasos por parte da Organização? Jamais responderão; aliás, costume brasileiro enraizado nesse tergiversar realidades quando interesses estão em jogo.

E veio a Corrida de São Silvestre 2012 com percurso a apresentar outras alterações e horário modificado. Poder-se-ia dizer que o novo horário agradou. Houve, primeiramente, a corrida dos cadeirantes, após a das mulheres e por fim a geral, esta às 9:00. Toda a minha preocupação, já apontada em blog do início de 2012, quanto às descidas perigosas para atletas amadores, a da Major Natanael e a hoje felizmente esquecida da Brigadeiro Luís Antônio, teve enfim, para consternação de tantos corredores, que souberam tardiamente do fato, o mártir imolado. O experiente atleta cadeirante do Pará, Israel Cruz Jackson de Barros, 40 anos, morreu justamente na fatídica Major Natanael. Levado à Santa Casa, teve morte decretada às 8h50 por parada cardíaca. Pergunto aos organizadores, será que não houve uma só voz a dizer que aquela ladeira bem inclinada não se presta aos cadeirantes? Não pensaram que acidente grave e tragédia poderiam ocorrer? Igualmente no caso dos corredores amadores? Estariam a espoucar o champanhe do Réveillon com a consciência sombria ou a contabilizar o  lucro excessivo dessa tradicional corrida? Na entrevista publicada no Portal Terra, sob o título “Satisfeito, diretor geral pretende manter São Silvestre de manhã” (31 de Dezembro de 2012 – 13:45 – atualizado às 15:08), o senhor Júlio Deodoro louva aspectos da prova sem mencionar a tragédia ocorrida. No mesmo portal (01 de Janeiro de 2013 – 20:28), em matéria intitulada “Cadeirante temia a ladeira da São Silvestre”, tem-se “Os cadeirantes reclamam da inclusão da ladeira da Rua Major Natanael no percurso. Há diversos relatos da dificuldade de manter o controle da cadeira naquele trecho. Mesmo usando os freios, alguns chegam a 50km/h. Na prova anterior, já houve acidentes nessa descida, mas sem a mesma gravidade do episódio ocorrido na segunda-feira. Mesmo assim, a organização manteve o percurso, a despeito do risco que ele oferece aos participantes com cadeiras de rodas” e, friso, em outro grau para corredores de rua. Será um desrespeito à memória de Israel de Barros e um atentado ao bom senso se pensarem manter essa descida que margeia o Cemitério do Araçá. Teria ele morrido em vão? Le peuple a la memoire courte, diz frase proverbial. Estarão os organizadores a pensar nessa possibilidade do rápido esquecimento? O diretor técnico da prova, Manuel Garcia Arroyo, em entrevista à Folha de S.Paulo (02/01/2013), não classificaria de “fatalidade inexplicável” o chocante acontecimento? Afirmaria, ainda, que  “não faz sentido alterar o percurso”  e que avisara os cadeirantes  “não se esqueçam da descida da Major Natanael” (sic). A família do experiente paratleta tragicamente acidentado, mercê da insensatez da organização da São Silvestre, tem de buscar junto à Justiça o mínimo, a reparação cível pela tragédia que se fazia anunciar e que poderá se repetir, caso alteração sensível do trajeto em questão não prevaleça.

Soube apenas à tarde da morte do paratleta.  Após a última São Silvestre comentei que tive joelhos lesionados. Lá pelo mês de Junho estava perfeitamente bem e participei de mais de dez corridas no segundo semestre. E foi bem a Major Natanael, apesar de todos os cuidados que tive ao descer, que está a fazer doer, agora, minhas articulações dos joelhos, episódio que esquecera. 

Se esse declive absurdo foi o ápice da irresponsabilidade, o que dizer da hidratação, quando o primeiro posto estava no km4? Corpore, Circuito das Estações Adidas e JJS pensam nesse item aproximadamente a cada 2km. Do km 4 ao final foram poucos os pontos de hidratação, o que fazia com que atletas amadores buscassem se garantir pegando duas garrafinhas. No início da temível subida da Brigadeiro, de mais de 2km, deveria haver um posto de hidratação. Qual a razão de lá não estar? E o atleta nesse longo aclive transpira bem mais. Isso é fato. Outras organizações geralmente servem água gelada aos participantes. O que tomamos chegava por vezes à temperatura tépida.

Ao chegar, outra falha gritante. Os possantes autofalantes vociferavam que as medalhas estavam sendo entregues no fim da Av. Paulista!!! Assim proclamavam. Pergunto, não é também um descaso para com o atleta que correu 15km, tendo de chegar uma ou mais horas antes da corrida, percorrer o trajeto da Gazeta ao fim da Paulista??? Consegui a minha num pequeno nicho perto da Rua Pamplona ao alegar ser da terceira idade, visível, diga-se.  

Quanto ao “resto” da corrida, não houve transtornos. 25.000 atletas amadores fazem com que quase toda ultrapassagem tenha de ser feita em ziguezague, pois são inúmeros duos, trios e quartetos que, mais lentos, obrigam-nos a desviar, sempre. Mas isso faz parte da festa e é algo até bonito. Contudo, se pensarmos bem, quem ultrapassa chega a correr de um a dois quilômetros a mais devido à sinuosidade. Chegaram a completar a prova 16.253 corredores pela listagem fornecidada até o momento. Cheguei em 12.712 lugar com o tempo líquido de 1:51:30, sempre a correr. Compatível com a idade.

Numa outra visão, saímos de minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, Canova, Carlos (Batoré) e eu e pegamos o Terminal Bandeira. O coletivo pleno de corredores. Todos descemos na parada a anteceder o túnel 9 de Julho. Meus amigos se posicionaram conforme seus ritmos. A confraternização existe e essa é a grande qualidade de uma corrida de rua. Todos irmanados, sem a existência do “olhar” a classe social.  Encontrara, na Sargento Gonzaguinha, Ricardo, torcedor de nossa triste lusa, mas bravamente a vestir nossa gloriosa camisa. Conversamos um pouco na largada sobre o difícil ano que a Portuguesa deverá enfrentar.  Ao chegar, qual não foi minha surpresa ao ser cumprimentado por leitor de meu blog pelo post sobre a São Silvestre já mencionado. Tinha em conta meu relato daquelas infaustas descidas da Major Natanael e da Brigadeiro, esta em direção ao Ibirapuera. Maurício Jasa é o seu nome. Simpático e alegre, proporcionou-me o prazer de conhecer um leitor antes anônimo.

Que venham outras São Silvestres, mas que os organizadores pensem em primeiro lugar no homem que labuta o ano inteiro e que busca a confraternização de fim de ano no asfalto da cidade. Que interesses menores não maculem a essência essencial dessa corrida. Ela existe há 88 anos e foi idealizada por cidadãos heróicos e sensíveis. Que os 25.000 atletas inscritos não signifiquem apenas o lucro e o pormenor. Uma parcela considerável de atletas amadores aguarda decisões sensatas por parte dos organizadores. Não se deve perder a esperança.   

Luca Vitali, sensível artista, ao ouvir a leitura do presente post ficou bem emocionado. A expressiva figura cadeirante “Em direção à Luz” é uma homenagem a Israel Cruz Jackson de Barros. O artista a apreender a transcendência.     

Once again I ran the traditional Saint Silvester Road Race last 31 December in the hilly streets of São Paulo. In this post I give my impressions of the race, that this year unfortunately ended up in tragedy, in my view due to lack of professionalism of both organizers and sponsors, since the course of the race forced all runners, including those physically disabled, to run down a particularly dangerous steep slope.

 

Missivas Cativantes de Musicista Norte-Americana

Posso afirmar que este livro é um bom livro,
tão bom como Charles Auchester, meu romance preferido,
e espero que ele fará compreender aos jovens que,
para se chegar ao conhecimento pleno de qualquer arte,
há a necessidade de muitos anos de estudo, de esforços e de disciplina.
O poeta H.W. Longfellow (1807-1882) ao editor das cartas,
após ter ouvido a leitura do manuscrito.

A literatura sobre música escrita durante o vasto período romântico tem características específicas. As biografias salientam a presença do herói, os escritos sobre a história apresentam períodos idealizados e as brisas românticas parecem circular em espaços etéreos. Compositores que deixaram larga produção epistolar debruçam-se sobre afetos os mais variados, mudanças de humor, nostalgia e dor. A troca de cartas entre memorialistas natos bem evidencia um universo muito distante de nossa atualidade.

Durante minha formação em Paris, na transição dos anos 1950-1960, um de meus prazeres era buscar nos bouquinistes livros que me pudessem entreter nos momentos de descontração. Obras epistolares me interessavam muito e lembro-me da  leitura das cartas de um mestre da língua francesa, Gustave Flaubert (1821-1880), ao seu colega russo, o poeta e escritor Ivan Turgueniev (1818-1883); a riquíssima troca de correspondências entre Wagner e Liszt, entre tantas outras obras do gênero. Aprende-se muito com essas confissões que se metamorfoseiam ao passar para personagens criados, literária e musicalmente. Em uma das investidas, encontrei o livro Music Study in Germany, na tradução francesa de Mme B. Sourdillon do original em inglês, sob o título Lettres d’une Musicienne Américaine (Paris, Dujarric, 1907, 299 pgs.). Interessou-me, li alguns trechos, mas em plena época de estudos pianísticos que chegavam, por vezes, a dez horas diárias, posterguei a leitura para… mais tarde. Chamou-me a atenção àquela época o precioso prefácio do ilustre compositor francês Vincent d’Indy (1851-1931) que, estando na Alemanha para estudos, conhece fortuitamente Amy Fay. Tantas outras literaturas percorridas durante décadas e o livro de Amy Fay acabaria em uma estante, bem ao alto. Há poucos meses, buscando outra obra a fim de fundamentar um texto, encontrei ao fundo de prateleira as cartas de Amy Fay à sua irmã Harriet Melusina Fay (Zina), primeira mulher do ilustre Charles S. Peirce (1839-1914), lógico, filósofo, matemático e também conhecido como o “pai do pragmatismo”.

Se a trajetória de Amy Fay, após a permanência durante  anos na Alemanha a partir de 1869, a fim de estudar piano, seria muito profícua não apenas para a didática pianística, mas através de incontáveis passos empreendidos no desiderato de fazer ver à sociedade o relevante papel que a mulher teria de desempenhar, considere-se que a força dessa valorosa musicista teria vindo desses anos a trabalhar seu instrumento com alguns dos maiores mestres do período.

O livro é simplesmente delicioso e traz a cada página traços marcantes das personalidades das figuras ilustres e de estudantes seus colegas, da vida musical em Berlin e Weimar, dos concertos e saraus, dos interiores das casas, dos passeios empreendidos, um deles com sua irmã e Charles Peirce. Diálogos mantidos com músicos relevantes dão a veracidade que pode ser comprovada através de estudos realizados, mormente a partir da segunda metade do século XX, por historiadores e musicólogos.

Foi uma privilegiada ao estudar com mestres como Carl Tausig (1841-1871), Theodor Kullak (1818-1882), Franz Liszt (1811-1886) e Ludwig Deppe (1828-1890). Ao visitar Friedrick Wieck (1785-1873), pai de Clara Schumann, comenta inclusive alguns aspectos ligados à sua didática. Debruça-se sobre cada professor e seus ensinamentos, distingue claramente métodos de ensino, características humanas no trato com alunos, interpretação de notáveis músicos como Joseph Joachim (1831-1907), Clara Schumann (1819-1896), Anton Rubinstein (1829-1894), Hans von Bülow (1830-1894), e capta na essência o perfil psicológico de um compositor que  admirava, mas de temperamento complexo, Richard Wagner (1813-1883).

O livro reúne parte considerável da correspondência à irmã, pois as mais íntimas não foram selecionadas por Zina. Não obstante, importa considerar que o panorama pianístico interpretativo e pedagógico, através da qualidade dos personagens, está nitidamente delineado.

Amy Fay, nesses anos germânicos, relata preferencialmente suas impressões musicais como estudante de piano, ouvinte e observadora da vida nas cidades em que esteve. É minuciosa ao  olhar para os interiores das casas, dos quartos, dos salões, pois nada lhe passa desapercebido. Sob aspecto outro, tem o gosto pela natureza e por vezes a descreve. Seria contudo no imenso conteúdo verossímil, e não tratado nos muitos compêndios biográficos ou da história da música, que a coletânea de cartas de Amy Fay adquire importância imensa, a apontar para as dezenas de edições nos Estados Unidos, assim como nas várias traduções feitas da obra.

Através do relato de Fay pode-se entender que pouco teria mudado em muitas das práticas didático-musicais. A denominada master class era algo habitual nos cursos oferecidos por Tausig, Kullak e Liszt, como exemplos. Reuniam alunos escolhidos, tutelados ou não, amigos e  visitantes.  Quanto ao repertório, as Sonatas de Beethoven, obras de Schumann, Chopin e Liszt eram as mais frequentadas. A missivista citou a irritação de Liszt quando uma aluna apresentou-lhe o Scherzo em si bemol menor de Chopin, pois, apesar da grande amizade e admiração que manteve com o compositor polonês, já estaria cansado de ouvir a conhecida obra. Em relação à mesmice repertorial, Amy Fay cita aquele que mais lhe transmitiu ensinamentos técnico-pianísticos, Ludwig Deppe, que também foi regente, diretor da Ópera Real e professor de piano da Imperatriz da Alemanha. Uma aluna apresentou ao maestro o Concerto para piano e orquestra nº 5 de Beethoven. Comenta a missivista “Ela havia preparado o grande concerto em mi bemol de Beethoven, que todos tocam aqui. Deppe sentiu, ao ouvi-la, o mesmo enfado e dificuldades que Liszt no que se refere ao scherzo em si bemol de Chopin. ‘Pobres regentes somos nós!’ diz ele, continuarão os artistas a nos trazer sempre o concerto em mi bemol de Beethoven? … Hoje todo mundo quer o grande repertório. A grande torrente rápida está na moda, mas quem pode simbolizar no seu toque o riacho e suas ondulações e as rugas graciosas nesse oscilar delicado! Ninguém mais destina sua interpretação a essas bonitas passagens”. Amy Fay ainda observa: “Contudo, o professr Deppe escutou pacientemente, pela milésima vez, o concerto em mi bemol que a jovem Steiniger apresentou”. O leitor poderá observar que a repetição repertorial, que reiteradamente tenho criticado, não é prática recente, mas tendência que se prolonga por bem mais de dois séculos!

Para um músico, sobretudo pianista, o conjunto epistolar de Amy Fay, escrito na Alemanha durante os anos de estudos, revela as tipicidades ainda existentes na transmissão professor aluno, quando em nível elevado. Tausig, jovem, impetuoso e pianista destacado, é apresentado com características pedagógicas a depender de provável “ciclotimia”. Kullak, autor de tantos métodos de piano, mormente os estudos de oitavas, surge como mestre capaz de solucionar os problemas do aluno através do exemplo em sala de aula. Liszt, generoso, atencioso, mas a atentar para as grandes linhas de uma obra, tem a aura do demiurgo. Seria contudo Deppe o professor que, sur le tard, propiciaria o trabalho técnico-pianístico laboratorial que se fazia necessário. Amy Fay teve não só de refazer desde exercícios e estudos que são a base do aprendizado de todo pianista, como, a partir de observação arguta, transmiti-los por escrito à sua irmã. Basicamente, a técnica dos cinco dedos apreendendo na abrangência escalas, arpejos, acordes, assim como a posição correta das mãos, articulação, relaxamento para a melhor execução e pedal representariam um regresso aos “princípios”, após ter trabalhado com mestres excelsos. Em nenhum instante se insurge contra o fato, apenas lamenta não ter iniciado o seu aperfeiçoamento na Alemanha pela orientação de Deppe. Considere-se que esses princípios fundamentais de Deppe são ainda muitíssimo válidos.

Se o livro é riquíssimo nessas observações que passam ao largo dos tratados de história ou das biografias, pois vivenciadas  por observadora sensível e atenta, não descartemos determinados tópicos de humor. Escreve Amy Fay na carta enviada à irmã da cidade de Weimar no dia 24 de Julho de 1873: “Segunda-feira tive um dos mais agradáveis tête à tête com Liszt, motivado pelo acaso. Tive a oportunidade de ir ao seu encontro e, coisa estranha, ele estava só, ocupado na escrita. Insistiu para que ficasse alguns instantes e tivemos uma conversa alegre e descontraída. Era a primeira vez que eu conseguia conversar realmente com Liszt. Ele estava bem espirituoso. Falamos da faculdade da mímica e ele contou-me uma anedota bem divertida sobre Chopin. Disse-me que, quando jovem, alguém revelara-lhe que Chopin tinha um dom de imitar personagens. Pediu, pois, que o amigo viesse à sua casa evidenciar essa habilidade. Certo dia Chopin o visita, coloca uma peruca loira e se veste com a indumentária de Liszt. ‘Eu era bem loiro nessa época, disse Liszt. Tendo um de meus amigos chegado,  Chopin foi ao seu encontro a imitar de maneira tão perfeita a minha voz que o visitante, acreditando dirigir-se a mim,  marcou um encontro para o dia seguinte. E eu estava no quarto. Não é extraordinário?’, completou”.

Quantas não foram as trocas de cartas entre estudantes fora de seus lares com familiares? Quantas obras não ficaram no ostracismo o mais abissal? Várias foram as confluências que levaram Music Study in Germany à grande difusão. Primeiramente, deve-se à irmã da autora, Harriet Melusina Fay, a edição, em 1880, da correspondência epistolar selecionada.  Outros fatores, como as qualidades de observação e redação de Amy Fay; os seis anos na Alemanha, um dos centros referencias para a música na Europa; conseguir ser aceita em classes de professores de primeiríssima linha e que permaneceram na história da música, como Liszt e Tausig na performance e Kullak e Deppe na didática; haver conhecido Wagner, Hans von Bülow, Joachim, Clara Schumann, Anton Rubinstein e tantos outros e deles traçar perfis acentuados; comentar recitais e concertos; narrar interiores das casas e a culinária típica; discernir costumes e o pulsar das cidades por onde passou; interpretar coleguismo e outros  pormenores vistos e assimilados fazem da obra em apreço, lida por mim na tradução francesa publicada em 1907, uma narrativa real. Seus personagens flutuam desde então na imensa bibliografia sobre música, sempre in progress. Verdadeiro deleite para o leitor. O livro pode ser encontrado através da internet nos sites especializados, pois continua a ser editado na língua inglesa. 

My comments on the book “Music Study in Germany”, written by the American pianist Amy Fay, in which – through letters written to her sister – she gives a vivid account of her music studies abroad from 1869 to 1875. The volume has had countless reissues and it can be explained by the fact that Amy Fay studied with la crème de la crème of those days: Franz Liszt, Theodor Kullak, Carl Tausig, Ludwig Deppe. She also went to concerts of celebrated musicians of the time, like Wagner, Anton Rubinstein, Clara Schumann. Observant, she offers little known details of her teachers’ methods and personalities, impressions of her concert-going experiences and of German customs and manners. A delightful detailed portrait of an era with an endless stream of luminaries, highly recommended for classical music enthusiasts.

 

Euforia Acalentada Desde Sempre

Víamos na televisão que tinha gente que vendia carro,
que deixava o emprego (para acompanhar o time no Japão).
Todas essas coisas, quando entramos em campo,
fazem a gente dar tudo que tem.
Elas merecem esse momento de felicidade.
Paolo Guerrero (autor do gol do título)
“Folha de São Paulo” (20/12/2012)

Após um evento relevante que a mídia disseca ad nauseam, prefiro aguardar um pouco. A reflexão faz bem e evita que o calor dos fatos altere a razão. Durante esses últimos dias não deixei de pensar a respeito do bicampeonato mundial interclubes FIFA conquistado pelo Corinthians. Vale a pena relembrar o primeiro deles, obtido em 2000 no Brasil e tão criticado pelos torcedores de outras agremiações. Posso tecer considerações sem quaisquer outras posições, pois meu time é a infortunada Portuguesa de Desportos. Contudo, quando da primeira conquista mundial do Corinthians, acompanhei meu saudoso genro José Rinaldo ao estádio do Morumbi, a fim de assistir ao jogo entre seu time e o poderoso Real Madrid. Lembro-me da tormenta que desabou sobre São Paulo, a nossa heroica caminhada até o estádio com água bem acima dos tornozelos. José Rinaldo, seu amigo Elias e eu assistimos à contenda literalmente encharcados. Um total descaso por parte da Prefeitura e do São Paulo Futebol Clube, proprietário da grande, mas desprotegida, arena. Em jogo memorável contra o Vasco da Gama no Rio de Janeiro, o Corinthians obteria a seguir o almejado título.

A equipe paulista, tão criticada pelos opositores por motivo ligado ao título conquistado no Brasil, sofreu dissabores posteriores, foi rebaixada para a série B, do campeonato brasileiro, mas reagiu, mesmo que bem amparada pelas transmissões de seus jogos na B sempre no mesmo dia e horário da semana, fato inédito, um privilégio de nenhuma outra agremiação sequer desfrutou. Frente aos milhões de torcedores – consumidores em potencial – espalhados pelo Brasil,  a mídia mostra sempre sua face pragmática. Nada a fazer. Todavia, desde jovem ouvia os torcedores de outros times desprezarem totalmente o apaixonado corintiano, considerando-o – quantas milhares de piadas não surgiram ao longo das décadas – um membro da plebe, da periferia, um ser menor, delinquente e outros atributos desairosos. Enfatizavam que o Corinthians só ganhava torneios regionais.

Após regressar para a denominada “primeirona” teve altos e baixos, mas, sob a tutela do controvertido Andrés Sánchez, certamente o melhor presidente da história do Corinthians,  conseguiu feitos extraordinários, mormente sob a direção técnica do competente Tite. Após titubeios iniciais, conquistou a tríplice coroa:  Campeonato Brasileiro, Libertadores da América e, agora, Campeonato Mundial de Clubes da FIFA. Nada veio ao acaso. Houve planejamento e sentido de dimensão de valores. Estou a me lembrar do vexame que o Santos proporcionou em 2011, após humilhante derrota frente ao Barcelona. Nesse caso, não houve o planejamento necessário, pois meses antes a equipe santista deixava de atuar com esmero no campeonato brasileiro, poupando-se para o confronto em Tóquio. Jogaram acanhados, como a reverenciar o forte time catalão e os 4×0 bem poderiam ter sido 6, 7, 8… Com o Corinthians deu-se o contrário. Aprenderam a lição desastrosa do time santista. Planificaram-se após a Libertadores e, sem abandonar o campeonato brasileiro, transformaram-no em um laboratório e o resultado positivo aconteceu, friso, não motivado por acaso.

Algo impressiona. Amigos do Exterior me escreveram surpreendidos pela imensa massa humana que viajou para o outro lado do mundo a fim de, tantas vezes com sacrifícios, prestigiar o carinhosamente denominado Timão. É para se pensar. Mesmo em situações calamitosas sob o aspecto técnico, o Corinthians leva multidões. Fiéis, bando de loucos e mais outras expressões engrandecem esse incrível contingente humano. Outras equipes brasileiras, quando em má fase, são praticamente esquecidas pelos adeptos. O Corinthians não. Um de meus amigos da Bélgica leu em site do país que consideravam o jogo final contra o Chelsea como a maior “diáspora” esportiva – tendo-se em vista a distância – já ocorrida em termos mundiais. Isso é fato e é bonito. Chegaram ao Japão torcedores vindos do Brasil,  Austrália, da Europa e dos U.S.A., sem contar as dezenas de milhares de brasileiros que lá vivem,  certamente muitos corintianos.

Estava eu a participar da Corrida de Rua Sargento Gonzaguinha (15km), verdadeira preparação para a São Silvestre (15km), no dia 16 último pela manhã. Prova em plena marginal Tietê, circundando Anhembi, sambódromo e tantas outras ruas e avenidas. A corrida começara pouco antes do início do jogo. Durante meu tempo a correr (1:43:08) só ouvia fogos e gritaria. Em todo o percurso. Finda a prova, no recebimento das medalhas de participação, veio o gol corintiano e aquela região da Av. Cruzeiro do Sul explodiu. Carlos (Batoré) e eu voltamos pelo trajeto da ida, ou seja, metrô Armênia até a estação São Bento, ônibus no terminal Bandeira até o Brooklin. Tudo a pipocar. Realmente uma festa.

Com certeza, essa torcida deverá crescer ainda mais. Tudo indica que o Corinthians, hoje o time brasileiro melhor ranqueado em avaliações internacionais, estará a receber patrocínios ainda mais interessantes. Bom para a “nação” corinthiana, ótimo para o Brasil, tão desprestigiado nos últimos anos sob o aspecto futebolístico. E ainda terá seu próprio estádio.

Minha opção foi torcer nessa competição para o Corinthians e, alegria maior, ver a efusiva manifestação de três de minhas netas, que reverenciam o time escolhido pelo saudoso pai. Eis um pequeno exemplo do que é ser corintiano. Isabel (18), a segunda neta, estava na Alemanha quando da Libertadores. O fuso horário não a impediu de assistir, via internet, à transmissão dos jogos. Finda a conquista, segundo seu relato, corria pela casa de sua tia paterna, em plena madrugada, a gritar em “silêncio”, pois todos dormiam na moradia. O valor de uma torcida é incomensurável. Hoje, a maior do Brasil. Merecem-se time e torcedores. Exemplo de amor e de dedicação. Não fosse esse “bando de loucos”, como se denomina a massa do Timão, o Corinthians não teria essa força. O título deverá dissipar traumas de outrora. Oxalá o “nação” corintiana continue a dar o belo exemplo proporcionado nesse bicampeonato. É o que todos esperamos.

A todos os generosos leitores desejo um Natal aconchegante. Que o espírito essencial da comemoração dessa data maior da cristandade contagie todos nós nessa busca eterna do aperfeiçoamento interior.

On Corinthians’ 1-0 win over Chelsea in the final of the 2012 FIFA Club  World Cup in Yokohama last Sunday and the fantastic mass pilgrimage of the club’s faithful followers from all continents to Japan, the “Corinthian” invasion that painted in black and white the Toyota stadium, hugely outnumbering Chelsea’s fans. Such show of force no doubt pushed the team from São Paulo to victory.