A Síntese no Pensamento de José Paulo Paes

O sapo saltou na sopa
de um sujeito que sem mais papo
deu-lhe um sopapo e gritou: Opa!
Não tomo sopa de sapo!
José Paulo Paes

Tive o privilégio de conviver, durante alguns anos na década de 90, com José Paulo Paes (1926-1998), escritor, crítico, poeta e tradutor. Integrávamos o Conselho Editorial da Revista do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, presidido durante certo período  pelo saudoso crítico, jornalista e editor Nilo Scalzo. Era motivo de imenso prazer conversar com José Paulo Paes. Temas que viajavam da literatura às artes eram abordados, e recebi de suas mãos alguns livros autografados. Daquele Conselho fazia parte, entre outras figuras acadêmicas, o ilustre sociólogo, escritor e amigo José de Souza Martins.

Quando da tournée de Novembro último pelas terras portuguesas ganhei, da expressiva poetisa Violeta Figueiredo, livros cuja temática era a do universo lúdico infantil. Alguns poemas serviram como inspiração para que o excelente compositor português Eurico Carrapatoso criasse as Six histoires d’enfants pour amuser un artiste, obras apresentadas nos sete recitais realizados (vide YouTube em gravação ao vivo realizada em Évora). Estava, pois, a colocar na estante pertinente dois livros de Violeta Figueiredo quando encontro Poesia para Crianças, de José Paulo Paes (São Paulo, Giordano, 1996), pequeno e substancioso opúsculo do poeta referente a depoimento proferido na V Jornada Nacional de Literatura em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, em 1993. O amigo comum Cláudio Giordano teve a feliz ideia de publicá-lo.

O texto é delicioso. José Paulo Paes revela-se sensível, competente, lúdico, confidente, amoroso. A síntese da síntese em poucas e expressivas páginas. Ao expressar elementos de sua “estratégia” para atingir o coração e entendimento dos miúdos, o autor demonstra  vocação pela ourivesaria poética. Para José Paulo importa a transmissão de um conceito, mais do que priorizar a feitura da rima e, ela, instaurada, o seu significado transcendente para a compreensão: “a rima, ou seja, a semelhança dos sons finais entre duas palavras sucessivas, obriga o leitor a voltar atrás na leitura. Esta passa então a ser feita não linha após linha, sempre para a frente, como na prosa, e sim num ir e vir entre o que está adiante e o que ficou atrás. Com isso, dezautomatiza-se a leitura e se direciona a atenção para o conjunto de significado do texto, não apenas para a sequência deles. O que é um convite e uma ajuda à memorização. É muito comum as pessoas que gostam de poesia decorarem seus poemas preferidos”.

Casado durante décadas com Dora, José Paulo não teve filhos. Sabia com acuidade incutir na mente de seus dois sobrinhos, quando crianças, conceitos para a reflexão, “brincadeiras verbais”, como dizia. Diante de um muro de cemitério, indagou aos pequeninos: “Sabem o que há aí dentro? Eles faziam que não e eu então explicava: Uma plantação de defuntos”. Essa técnica levava-os a entenderem o “ritual gesto da semeadura”. Da incursão a visar ao aguçamento da mente de uma criança, o poeta partiu para a criação de poemas a elas dedicados, mas nunca perdendo a intenção de provocar o instante do novo, da reflexão “mirim”. José Paulo Paes está sempre a fugir da rotina e o inusitado de sua poesia para os miúdos está nessa difícil missão de buscar interligar a realidade com a fantasia. Pura sedução. Não escreveria o poeta que um dos fundamentos da poesia está inerente  em “mostrar a perene novidade da vida e do mundo” naquilo que ele propõe como “estabelecer uma misteriosa unidade cósmica”?

Entende José Paulo Paes que é mais difícil escrever para crianças, mercê do vocabulário mais restrito e da escolha das referências, compreendendo, contudo, que o prazer dessa criação específica é maior para o poeta.

No substancioso opúsculo, José Paulo Paes insere alguns poemas, explicando a seguir a  proposta, no caso “Vida de Sapo”:

O sapo cai
num buraco
e sai.

Mas noutro buraco
cai.

É um buraco
a vida do sapo.
A vida do sapo
é um buraco

Buraco pra cá.
Buraco pra lá.
Tanto buraco
enche o sapo.

Lê-se que há a intenção do jogo de palavras, ficando oculta a popular expressão “encher o saco”. Portanto, uma brincadeira “sapo” e “saco”. Sob outra égide, não se descarte a grande admiração de Paes por Carlos Drummond de Andrade.

Em outro poema, José Paulo Paes confessa tê-lo escrito a partir de lição apreendida com os pequeninos, simplificar. Metamorfose é um exemplo

Um homem
que costumava achar toda gente estúpida
(menos ele próprio)
acordou certa manhã transformado em burro.
Ficou muito triste e durante três
dias não comeu coisa alguma.
Não achava mais gosto em comida de gente
e tinha vergonha de comer
comida de burro
Mas a fome o acabou forçando
a experimentar capim
que ele achou estranhamente saboroso.
Alguns dias mais tarde, já zurrava alegremente.
Passado um mês
puxava carroça pela rua
como a coisa mais natural do mundo.
E quando, muito tempo depois,
ele acordou de novo
transformado em gente
ficou muito triste
e se achou estúpido.

Em Poesia para Crianças, José Paulo Paes ainda discorre sobre uma de suas mais respeitadas atividades, a tradução. Autodidata, conseguiu, com a ajuda de gramáticas, dicionários e, sobretudo, dedicação, ser um tradutor em vários idiomas sem se expressar verbalmente, como bem afirma: “Gaguejo alguma coisa em inglês, nos restantes, sou pouco mais que mudo”. Contudo, graças à estrutura de um poema, “olhos e ouvidos atentos à sonoridade, à forma, aos matizes de significado das palavras, é que consigo compreendê-lo mais a fundo. A tradução é possivelmente a melhor via de acesso à compreensão crítica da literatura em geral e da poesia em particular”. Confessa que durante décadas chegou a traduzir cerca de cem livros, de ficção, de manuais e tantos mais outros por motivo de ordem econômica. Com amargura observou que nesse longo caminho a remuneração era aviltante, a mesma de um datilógrafo em trabalho menos responsável. Chega a dizer que o tradutor, nessas circunstâncias, é o bóia-fria da inteligência.

Só após a aposentadoria pode realizar  traduções por prazer e bem remuneradas, com direitos autorais. Daí surgiram traduções referenciais de obras de Laurence Sterne, de J.K. Huysmans. Escreve que teve “a temeridade de enfrentar para poder partilhar com o leitor brasileiro a minha descoberta pessoal da poesia de Pietro Aretino, Konstantinos Kavákis, W.H.Auden, William Carlos Williams, Friedrich Hölderlin, Paladas de Alexandria e numerosos poetas gregos deste século antologiados em Poesia moderna da Grécia e Poetas gregos contemporâneos”.

José Paulo Paes é referência. Pouco se fala a respeito desse notável intelectual, aliás como ele bem afirmava em 1996, “nestes tempos de tamanho aviltamento da expressão oral e escrita”. Mais e mais somos invadidos a todo instante, através dos meios televisivos, radiofônicos e impressos, por um “besteirol” inimaginável muitas décadas atrás. O poeta açoriano Hector H. Silva já escrevia em 1992 que os Açores estavam sendo tomados pelo linguajar chulo novelesco procedente do Brasil. Acrescentemos os famigerados programas de auditório, que apenas destroem conceitos éticos e da dignidade, a quantidade de outros tantos, com diferentes intenções profanas ou evangélicas, e o quadro está completo.

Que as mensagens de José Paulo Paes expressas em livros sejam lidas pelas novas gerações para que segmento de nossa história literária não seja esquecida.

On the book Poesia para Crianças (Poetry for Children) written by the poet, writer, literary critic and translator José Paulo Paes (1926-1998), whom I had the privilege of knowing personally in the nineties, when we both were members of the editorial board of the University of São Paulo’s Journal of the Brazilian Studies Institute (Revista do Instituto de Estudos Brasileiros – USP).

 

Realidades

Não há homem algum que não possa ser elogiado;
às vezes os assassinos têm pontaria excelente;
e não existe homem algum que não possa ser censurado;
houve santos que não tomavam banho.
Agostinho da Silva

Tivemos ultimamente uma série emocionante de eventos envolvendo modalidades esportivas. Com a aproximação das Olimpíadas, mais acentuadamente o tema toma dimensões. Admirador dos esportes em geral, assisti a algumas competições de atletismo nessa preparação final para o grande acontecimento esportivo a cada quatro anos, assim como decisões emocionantes de modalidades coletivas, como as das Ligas masculina e feminina de vôlei. Impressiona o número crescente de público que assiste aos jogos de que participa a  nata do vôlei mundial. Não há mistério, pois quando a qualidade extrapola a normalidade, todos prestigiam. Também a decisão do basquete feminino, apesar de desnível claro em relação ao vôlei,  foi um belo acontecimento e a vitória da equipe de  Americana, bem justa.

As Fórmulas Indy e 1 têm adeptos ferrenhos, se é que podemos considerá-las modalidades esportivas, mas a ausência de brasileiros que possam lutar pelo pódio na F1 diminui o entusiasmo. Não obstante, seria possível entender o crescente apelo pela Indy pelo fato de que alguns brasileiros são muito bons. Quanto ao tênis, nossos jogadores são coadjuvantes de uma ou quiçá duas partidas em torneios internacionais; portanto, longe estão de figurar entre os top ten. Belos tempos de antão, quando Maria Esther Bueno e, mais recentemente, Gustavo Kuerten, o Guga, encantavam multidões. Esperemos que um dia mais um gênio da raquete alegre entusiastas pela bolinha. Como leigo, observo o grande avanço que há anos o vôlei conquistou ao eliminar o segundo saque. No tênis torna-se incompreensivel, hoje, o segundo ou terceiro serviço, o que propicia, por vezes, jogos intermináveis e enfadonhos, pois todo tenista despeja a sua força no primeiro saque, com direito a reconsiderar a jogada se a bolinha bater ou tocar de leve na rede. Entendo como atraso histórico, mormente após a decisão da Federação Internacional de Voleibol (FIVB) ter eliminado essa verdadeira “chatice” do segundo serviço,  tornando os jogos emocionantes. Considere-se o fato de que o tênis longe está de ser esporte do povo entre nós.

Quanto ao futebol pátrio, é lamentável o quadro presente. Estádios com pequeno público, mesmo em jogos importantes,  vedetismos,  extravagâncias de alguns jogadores e, sobretudo, uma deficiente condição de nossos técnicos de futebol. Os mais conhecidos já passaram por muitos clubes. Vão e voltam. Hoje, qual deles teria sequer a condição de receber convite de um grande time europeu? Quando muito Japão, leste da Europa, países árabes… Técnicos modernos e atualizados têm dado provas no velho continente de que ficou no passado o conceito da primazia de nosso futebol. Meu bom amigo Vital já definia a realidade brasileira: “técnico é bom quando entra, melhor ainda quando sai”. Durante anos o Brasil figurou no topo da lista de seleções promovida pela FIFA. Despencou. Não se veem táticas inovadoras, mas chavões em campo, repetições ad nauseam do decantado “chuveirinho” e de determinadas jogadas, desinteresse no desarme, erros elementares e abusivos de passes, lentidão, excesso de lances faltosos, verdadeira queda de qualidade futebolística se comparação for feita com o que se pratica na Europa, arbitragens por vezes eivadas de equívocos grosseiros, chaga das torcidas organizadas a afastar o verdadeiro público ordeiro. Para o dirigente de clube, deve ser um martírio observar estádios lotados, campos impecáveis e táticas inovadoras d’além mar. Como se está a jogar bem na Europa! Que abissal diferença com o futebol praticado na América do Sul e a Libertadores da América é exemplo perfeito do desnível a que chegou o futebol do Continente. Mais e mais encontramos entre nós, graças à televisão, torcedores dos grandes times europeus, pois quem gosta de futebol admira o bom jogo. Está-se a praticar na Europa um futebol rápido, inteligente, com poucos erros de passes, movimentação constante e jogadores realizando várias funções. Estamos, no Brasil, a quase atingir a era dos quelônios, pois é lento, muito lento o futebol praticado no país. Sob outra égide, quando as câmaras focalizam alguns estádios daqui e do continente, pode-se verificar a indigência. Campos sem grama e sem drenagem adequada, arquibancadas velhas e sujas, estrutura geral digna de pena. Em blog bem anterior escrevi que os times do hemisfério sul não teriam o menor fôlego qualitativo para enfrentar, integralmente, determinados campeonatos europeus, e que nosso nível continental estaria à altura da segunda divisão dos países de ponta do velho continente. Realidade  insofismável. Quando talento desponta nos gramados brasileiros, uma enxurrada de empresários  cobiça o jovem e este, imediatamente, passa a sonhar com a Europa.

A Portuguesa de Desportos findou o Campeonato Nacional da série B de 2011 com 17 pontos de vantagem sobre o segundo colocado. Uma façanha, aparência da realidade. Antes do início do Campeonato Estadual, a lusa vendeu seus principais jogadores, enquanto os quatro grandes compraram jogadores de bom nível e até os times menores fizeram contratações. Àquela altura, disse aos meus amigos aposentados, que se encontram todos os dias na mesma esquina, que tinha a convicção plena de que a Portuguesa iria para a série B do Paulistão. Não acreditaram. Sucessivas diretorias não profissionais, dirigentes emotivos, sem preparo para a condução do futebol-empresa, destruíram todas as chances da equipe. Membros da grande colônia portuguesa sempre dirigiram a Associação. Não há o menor profissionalismo, pois todos amadores no mister da direção esportiva. Creio que o técnico é o culpado menor, pois o que fazer diante da incompetência superior? A Portuguesa de tantas tradições foi humilhada e a queda para a segunda divisão do Campeonato Paulista, absolutamente previsível. Também durante o desenrolar da primeira fase do denominado Paulistão disse aos amigos que, para o Campeonato Nacional que terá início brevemente, três equipes deverão cair. Responderam-me que são quatro, ao que retruquei que o quarto já é certo, a Portuguesa. Sob outra égide, como torcedor da lusa, mas felizmente distante do sentimento de paixão, o que me levou a ir ao Estádio do Canindé apenas três vezes desde a inauguração há décadas,  não poderia, seria lógico deduzir, verter emoção por equipe que, desde o saudoso Oswaldo Teixeira Duarte, é dirigida por não profissionais. Meu irmão João Carlos, Vital Vieira Curto e tantos outros, ainda apaixonados pela lusa, convidam-me frequentemente, mas sempre declino. Defendo há muito tempo que, devido ao número ínfimo de torcedores e ao amadorismo das sucessivas direções, deveriam extinguir o futebol profissional ou fundi-lo com qualquer outra agremiação, como fizeram no Estado do Paraná, com certo êxito.  Seria um bem incomensurável para o Esporte. Há tantas outras modalidades a que a Associação Portuguesa de Desportos poderia dedicar-se! Seria mais digno, creio eu. A vaidade diretiva permitiria? A paixão exacerbada de uns poucos torcedores concordaria? Acredito que não, e as sucessivas humilhações deverão continuar, para nostalgia dos saudosistas e aborrecimento para os que ainda confiam.

This post is about sports in Brazil. As a fan of sports events, I can only regret the situation when compared to that of other countries. Apart from volleyball, that has had many achievements in the last decades and enjoys rising popularity, and the women’s national basketball team that also improved a lot, everything else is decadent. In Formula One, for years we have not seen drivers that can level with the notable ones of the past; in tennis tournaments the country is merely a bad supporting actor, with uncompetitive players. But it is in football, the national passion, that decline is at its peak. With stadiums in shameful conditions, shrinking audience, 2nd rate coaches, low level performances and the “prima donna” status of some players, the once almost unbeatable Brazilian squad is a shadow of what it used to be. The opposite is seen in Europe: first class soccer stadiums without empty seats and top players that really give a show: precise attack, possession of the ball, passing it around with accuracy in quick touches, runs and speed, technique and tactics. It is football at its best, while our football today could be compared to that of the 2nd Division of some European countries. We should learn from them!

 

Caminhos do Eterno Desafio

Quando escalo uma montanha
me sinto mais próximo de Deus.
Vitor Negrete

Vitor me avisou que não tinha medo da morte.
Ficava triste por ser filho único justamente por causa disso:
se ele morresse, o que aceitava como natural
dado o esporte que praticava e seu grau de envolvimento com ele,
causaria muita tristeza aos seus pais.
Marina Soler Jorge

Continua desde a adolescência meu fascínio pelos intrépidos aventureiros que neste planeta deparam-se com os mais difíceis desafios no mar, na terra e no ar. A ideia que leva à concretização de feitos heróicos por parte dessa parcela infinitesimal de visionários teria origem em exemplos familiares, reais, literários ou, presentemente, através da multiplicidade de documentários estimulantes. O homem a buscar seus limites físico-mentais. Desde o livro que meus pais me ofereceram nos meus 10 anos (Wilhelm Treue. A Conquista da Terra, Rio de Janeiro, Globo, 1945), o tema da aventura passou a ser recorrente e, desde então, em períodos especiais, não deixo de me “aventurar” nessas histórias vividas por tantos corajosos sonhadores, muitas vencedoras, outras trágicas. É também uma maneira de intermediar outras leituras de minha área, e esses interregnos sempre foram prazerosos.

Escrevi  diversos  posts sobre tentativas e conquistas na cadeia montanhosa do Himalaia, desde a heróica e trágica missão de George Mallory e Andrew Irvine (1924) ao buscarem o cume do Everest à chegada de Edmund Hillary e Tensay Norgay (1953), assim como outros êxitos e infortúnios. Contam-se às muitas dezenas aqueles que deixaram a vida indo ao encontro dessas moradas dos deuses. Em termos brasileiros, dediquei um post a Waldemar Nicklevicz que, tendo atingido mais de uma vez o Everest, conseguiu subir ao topo do K2, possivelmente a mais temida montanha do planeta. Minha filha Maria Beatriz, sabedora de meu encanto pela leitura das narrativas dramáticas nas montanhas, entre as quais a de Maurice Herzog (Annapurna, São Paulo, Companhia das Letras 2001), Jon Krakauer (No Ar Rarefeito, São Paulo, Companhia das Letras, 2002), Thomaz Brandolin, (Everest: Viagem à Montanha Abençoada, Floresta, L&PM, 2002) e outros tantos relatos, presenteou-me há alguns anos com livro que me interessava, a história de Vitor Negrete, excepcional esportista voltado às aventuras desafiadoras. Somente nessas últimas semanas tive o imenso prazer de ler Espírito Livre – Da Transamazônica ao Everest, escrito por sua esposa, Marina Soler Jorge (São Paulo, Editora Três, 2008).

Vitor Negrete é o exemplo típico do herói idealizado desde a antiguidade. Sua vida justificou plenamente, através da aventura com riscos acentuados e da ação generosa como homem, a figura do herói cujo destino já estaria traçado. A leitura de Espírito Livre, apesar do relato não desprovido de intensa emoção da autora, revela Vitor Negrete nas mais variadas atividades. Ei-lo  realizando com dois amigos a travessia da Transamazônica de bicicleta; a participar da Ecomotion Pro na Costa do Dendê; disputando o Mundial de corrida de aventura na Nova Zelândia, assim como em tantos outros desafios. Como bem assinala Marina Soler, ” a escalada era apenas uma das paixões de Vitor Negrete”.

A vida do grande montanhista Vitor Negrete, paradigma para tantos esportistas que buscam na aventura a motivação maior, poderia ficar circunscrita à própria atividade desafiadora. Contudo, o que tornou singular a sua existência extrapolou as altitudes e direcionou-se às ações humanitárias relevantes, entre as quais o projeto pela preservação digna dos quilombolas no Vale do Ribeira. No relato de Marina não faltam alusões à generosidade do esportista de absoluta vocação, que entendia “involuntariamente” sua passagem pelo planeta como um maravilhamento, pois tudo que o cercava ganhava a aura fraterna. Amizades, projetos, sonhos pareceriam ser acalentados por Vitor Negrete como algo natural, sem traumas possíveis.

A atividade como montanhista foi notável. As diversas subidas a outros picos ficariam minimizadas pela relação que teve com duas das mais temidas montanhas: Aconcágua (6959m) e Everest (8848m). Escalou o mais alto cume das Américas, ascendendo-o pelo maior número de vias, sendo que a mais perigosa delas, a Face Sul, juntamente com seu amigo de tantas aventuras, o também notável Rodrigo Raineri. O relato de Marina Soler não deixa dúvidas quanto às difíceis condições enfrentradas. Em um dos paredões da Face Sul encontraria os corpos de alpinistas brasileiros que pereceram após avalanche…. Igualmente guiou Ana Elisa Boscarioli em sua primeira tentativa ao cume do Aconcágua e dessa experiência a montanhista, que atingiria posteriormente tantos outros cumes, inclusive o Everest, não se esqueceria.

Se o relato de Marina Soler menciona as duas subidas ao teto do planeta, em 2005 e 2006, a primeira com tubos de oxigênio e a segunda a pleno pulmões, o encontro da morte durante a descida, aos 19 de Maio de 2006, bem evidencia esse “namoro”, consciente ou não, com o trágico, ingrediente característico de tantos heróis.

Vitor Negrete, ao atingir o topo do Everest, deixaria gravado em vídeo depoimentos pungentes. Algumas de suas frases: “Eu tô no ponto mais alto do planeta… Eu acabo de me tornar o primeiro brasileiro a pisar neste lugar sem utilizar oxigênio suplementar sem a ajuda de sherpa neste dia da escalada. Eu escalei sozinho, e foi animal. É muito difícil. Eu tô muito, muito cansado. Inclusive eu preciso descer logo, mas eu queria dedicar esta escalada ao Rodrigo Raineri, meu parceiro… Hoje o clima tá ruim, tá ventando e é prudente eu sair daqui logo porque mais de 80% dos acidentes ocorrem na descida. Hoje, enquanto eu subia, eu vi vários corpos desta temporada… Aí Caco (amigo dileto)! Consegui mais uma vez cara! … Então eu subi aqui, cara, esta montanha, muito por você, pela Marina, pelos meus filhos”.

Na descida, Vitor Negrete encontraria a morte. Pareceria estar contrário ao mors certa hora incerta. Seu companheiro Raineri escreve: “Dawa encontrou o Vitor a 8.500 metros, debilitado, com dor no peito, sem as luvas e bastante confuso. Começou a descer, mas estava difícil carregá-lo. Então Dawa acionou Pechumbi, nosso outro sherpa que havia subido do ABC para o acampamento 3 para tentar ajudar. Os dois conseguiram chegar com o Vitor na barraca do 3 à meia noite do dia 18 e continuaram a tentar reanimá-lo, hidratando-o com suco morno, que ele conseguiu beber, e ministrando oxigênio. Porém, ele não resistiu e, às duas horas da madrugada do dia 19 de maio (horário do Nepal), Vitor faleceu”. O pungente depoimento de Raineri ratifica o sentido épico da tragédia. O que o fez ascender as últimas dezenas de metros, solitário e sem tubos de oxigênio, verdadeira temeridade? A leitura do inconsciente será sempre um mistério. Tantos sinais a apontarem  cautela, entre eles o roubo de equipamentos e mantimentos seus e de Raineri da barraca dos alpinistas nesse caminho em direção ao topo, já não seriam suficientes para abortar a investida? A intrepidez fê-lo não desistir. Todos os riscos estavam traçados, faltando apenas a possibilidade da infausta estatística aumentar. Disso Negrete tinha consciência, mas a vontade de ser o primeiro brasileiro a subir ao cume do Everest sem tubo de oxigênio falou mais alto do que o teto do planeta. Atingiu o objetivo, mas o Poder Maior veio buscá-lo.  Em Espírito Livre, os depoimentos finais dos pais de Vitor Negrete, Roma Pytowski e Sílvio Negrete, não seriam a certeza de que o filho cumpriu uma missão, a dimensionar em plano transcendente as inéditas escaladas? São palavras simples, despojadas, que retratam Vitor na essencialidade dos escolhidos.

Tantos sucumbiram na escalada rumo ao Everest, mormente na descida. Contudo, permanecem na memória os poucos que pereceram como ato inédito. Vitor Negrete será sempre lembrado, e sua morte redentora após missão cumprida é o símbolo do heroísmo autêntico, imaculado. A pedido dos familiares e amigos, os sherpas cobriram seu corpo com  pedras. Permanece nas alturas. Fim supremo para um herói das montanhas.

This post is about the book Espírito Livre (Free Spirit), written by Marina Soler, wife of Vitor Negrete, the Brazilian mountain climber who died on the Everest in 2006. The book tells us about some of his adventures: reaching the top of Mount Aconcagua, the highest peak in South America; summiting the Everest twice; crossing the Trans-Amazonian highway on a bicycle, competing in the Adventure Racing World Championship in New Zealand. As Marina puts it, “climbing was just one of Vitor Negrete’s passions”. In 2006 he reached the summit of Everest without supplementary oxygen, but could not make his way down and died on 19 May at Camp 3. The book is the story of a man endowed with great courage and a generous heart, a hero for his special achievements.