Patrimônio Musical Português em Pauta

Reiteradas vezes escrevi sobre a importância de uma revista de qualidade sobre Música escrita por experts como fator imprescindível para a ventilação de conceitos que devem permanecer. Sem bairrismos ou apadrinhamentos, todas as publicações isentas desses vícios podem conter fontes raras para a pesquisa. Foi o que buscamos fazer durante cerca de 17 anos como editor responsável da “Revista Música” da Universidade de São Paulo, desaparecida após minha aposentadoria em 2008. Ao longo dos anos tenho acompanhado a publicação de inúmeras revistas sobre música do Exterior, umas centradas em um único compositor excelso, outras analíticas estritas e outras mais que, ao proporem o multidirecionamento temático ou a precisão geográfica, cumprem objetivos relevantes.

“Glosas”, publicação do Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa – MPMP, tem periodicidade semestral e já está em seu quarto número. Tem cumprido com determinação, em tempos econômico-sociais críticos em Portugal, a missão de não apenas resgatar valores expressivos ou mesmo olvidados da música portuguesa, como criar um rico depositário de opiniões, geralmente inéditas, através dos resultados de entrevistas e artigos específicos sobre determinado autor.

Anteriormente já abordara “Glosas” 2 (vide Revista de Mérito – “Glosas” – O Respeito à Música pouco Frequentada. 14/01/2011). Daquele número ao presente, independentemente do visual aperfeiçoado, “Glosas” focaliza na abrangência personalidades de relevo da música em Portugal, assim como apresenta interessantíssimas contribuições não pertencentes a um núcleo temático.

A homenagem prestada a António Victorino de Almeida (1940- ) é mais do que oportuna. Compositor de mérito, pianista, escritor, comunicador nato nos meios da mídia, realizador televisivo e cinematográfico, musicógrafo, Victorino de Almeida surpreende sempre através de seus conceitos, tantos deles polêmicos. Preliminarmente, o estudo sobre ele, que ocupa 26 páginas de “Glosas”, tem a clarificação de vários músicos e competentes articulistas que buscam desvendar segmentos secretos dessa figura singular na música portuguesa. Eurico Carrapatoso, Sérgio Azevedo, Mário Zambujal, Fernando Rocha, Carla Seixa e José Fortes, diversificadamente, penetram nesse multidirecionamento humano e Victoriono de Almeida pode ser apreendido em parte. A recuperação de entrevista realizada por Francine Benoît com o talento emergente em 1948 corrobora o entendimento de algumas tendências atávicas do ilustre músico. A rica entrevista que segue esses depoimentos, concedida a Duarte Pereira Martins, se de um lado faz-nos lembrar conteúdos já expressos em livro de raro interesse (António Victorino de Almeida conta 50 anos na Música a Paulo Sérgio dos Santos. Portugal, Quimera, 2005), sob aspecto outro revela-nos o compositor curioso, mas cônscio de sua empreitada. Victorino de Almeida não expressaria nesse depoimento que “realmente eu lutei a vida inteira por salvar um conceito de música. Música! E não um conceito de experiência”? Confissão que se casa com a opinião de outro compositor de alto quilate, Eurico Carrapatoso, ao abordar a extensa criação do homenageado: “A música de António Victorino de Almeida aparenta ser conservadora, muitos dirão. Vá-se lá saber se não é por isso mesmo que a melodia victoriniana é tão generosa, tendo a harmonia, de tamanho aplomb, o rasgo próprio da química dos fluídos? E o ritmo, que é tão vivido e vivido! E a orquestração (verdadeiro motivo de inveja), que refulge como o oirinho reluzente da Ceuta quatrocentista (citando Borges Coelho, o historiador). E a forma de sua música, entrocada como o bucéfalo, que respira profundamente como o roncopata: das depressões de Morfeu aos picos de nos fazerem ranger os dentes. Não é esta a função original da música, afinal? O poder de alterar estados de consciência?”

A qualidade encontrada em todo esse tributo a António Victorino de Almeida se expande em tantas outras preciosas contribuições que particularizam temas de interesse. Relevante a entrevista que o compositor e diretor artístico Jorge Salgueiro (1969- ) concede à Mónica Brito. Salientemos duas observações contundentes de Jorge Salgueiro, autor de aproximadamente 180 obras. Perguntado a quem ofereceria a revista “Glosas”, afirmaria: “Ofereceria a uma dessas pessoas que tomam decisões e que afastam os portugueses de seu país”, e à questão de um novo Jorge Salgueiro, acrescentaria: “Ainda sou novo, tenho esperança. Posso vir a mudar o pensamento do século XXI, porque não? Senão tivesse sonhos, e permanecesse apenas o lado lúcido e consciente, suicidava-me. Eu e os outros. Se não fôssemos inconscientes, no sentido de ainda sonhar, não havia criação. É esse sonho que nos faz criar a todos, a cada pessoa, não só o artista. Somos o centro do nosso mundo. Ainda que as tenha perdido, continua a ser o centro do universo. É como nós, os artistas. No sonho tudo é possível”.

Como se não bastasse o material rico para a cultura portuguesa contido em “Glosas” 4 e esboçado acima, artigos outros mostrariam o debruçar de pesquisadores sobre temas, muitos deles de total ineditismo. Destacaria a contribuição de Manuel Pedro Ferreira: “A propósito dos 750 anos do nascimento de Dom Dinis, trovador”; de João Paulo Janeiro, acurado estudo sobre o compositor napolitano David Perez (1711-1778), que, a partir de 1752, tanta contribuição prestou à música portuguesa; de Piedade Braga Santos, filha do compositor Joly Braga Santos (1924-1988), um comovente testemunho a respeito da amizade deste com Jorge Peixinho (1940-1995). A gregorianista e professora Idalete Giga faz levantamento precioso em “A música nos Salões Particulares de Lisboa no fim do século XX e na primeira década do século XX”, tecendo profícuos comentários e a enumerar salões do período e seus promotores. Considere-se igualmente o arguto artigo de Luís C.F. Henriques, em que focaliza o “Cosmopolitismo Musical na Cidade da Horta no Final do Século XIX”. Dentro da linha editorial da revista, que se propõe sempre evidenciar um músico não devidamente estudado, coube a André Vaz Pereira traçar perfil específico em “A obra para piano de Manuel Faria – uma primeira abordagem”. Tem-se ainda, na secção “Compositores a Descobrir”, um merecido estudo sobre a figura impecável na música portuguesa, o Padre Tomás Borba (1867-1950), professor do Conservatório Nacional e imortalizado através de sua atuação, durante décadas, como Diretor Artístico da Academia de Amadores de Música. Teve como seu mais ilustre aluno o grande compositor Fernando Lopes-Graça (1906-1994).

Contribuí para o nº 4 com artigo a abordar “Canto…” Primeiro de Fernando Lopes-Graça. Publicado no mesmo período em meu livro “Impressões sobre a Música Portuguesa”, editado pela Imprensa da Universidade de Coimbra em Novembro último, o texto aborda “Canto de Amor e de Morte” do compositor em seu original, pois conheciam-se apenas as duas versões realizadas pelo músico, para quarteto de cordas com piano e orquestral, respectivamente.

A ausência de interferências, que tantas vezes afeta a homogeneidade de textos diversos de uma determinada área em revistas espalhadas geograficamente, está a ser preservada na revista portuguesa. Sente-se em “Glosas” um propósito, uma identidade. Que assim persista

A few comments on issue nº 4 of Glosas, the music magazine with news, interviews and articles covering the world of classical music in Portugal.

Três Exemplos Hodiernos

Car lorsque ce mensonge est total,
embrasse toute la vie, règle chaque pensée,
aucun repos n’est à prévoir sur la route aride et fatale.
Georges Bernanos  (L’Imposture)

Que estamos a viver uma transição civilizacional pareceria patente. Valores antes professados como perenes deixaram de ter validade para a grande maioria. O processo de mutação tem sido muito rápido e acelera-se a cada ano. O Ocidente convive com essa mudança estimulada pelas empresas que visam ao lucro, com a complacência tantas vezes estranhas do Estado e plena divulgação da mídia, também ela em busca dos ganhos. Esse trio está a levar o homem à descaracterização de sua identidade. A consciência dessas transformações torna-se a cada ano mais clara àqueles que querem ver, mas a grande maioria das pessoas se acostuma à massificação. Integrar-se ao imenso contingente que não busca pensar é obedecer à legendária lei da manada.

Escrevemos anteriormente sobre os mega shows da atualidade, em que dezenas de milhares se reúnem para a saudação aos ídolos dos altos decibéis. Embrutecidos pela parafernália dos autofalantes, a multidão apenas segue o ritual do gritar, “cantar” e levantar braços, gesto este a fazer lembrar a juventude nazista. Massas amorfas. Proliferam esses mega shows, mormente pelo fato de que, com a crise econômica mundial, “ídolos” que jamais pensariam aqui pisar apresentam-se nesses espaços amplos e nos estádios de futebol, constantemente travestidos em arenas para os espetáculos, e encontram no Brasil o maná esgotado no hemisfério norte. Essa absurda concepção, hélas, a vigorar no mundo atual, faz com que àqueles pertencentes às gerações anteriores, que conheceram outros comportamentos, escandalizem-se.

Três exemplos de total alienação ocupam presentemente espaço imenso da televisão e do rádio. Refiro-me ao famigerado e insistente BBB, à “música” de uma “estrela” cadente, Michel Teló, e à histeria em torno de “Luisa está no Canadá”.

Do primeiro já se disse tudo, mas, movidos pela ganância representada pela enorme audiência, a Poderosa Rede continuará a apresentá-lo. Tem-se a mais absoluta visão do mundo que não desejamos aos nossos descendentes. Uma verdadeira aberração dos costumes, o sexo como mote in extremis, o linguajar chulo, o descaso aos mínimos valores morais e éticos, o ócio absoluto, resultando consequentemente na mais completa negação da cultura, da arte, da educação, da família, do cotidiano que resulta. Nada mais a falar ou a fazer, pois a Rede continuará a despejar nos lares esse enorme contingente de lixo.

Acabara de redigir o post quando recebo brilhante artigo publicado no “Correio Popular” de Campinas (30/01/2012), escrito por Fábio Henrique Prado de Toledo, juiz de Direito em Campinas e especialista em Matrimônio e Educação pela Universitat Internacional de Catalunya – UIC, sob o título “O Big Brother e o direito à intimidade”.  Avocando em duas situações a nossa Carta Magna, que estaria a ser desrespeitada, o arguto magistrado comenta a respeito da exposição de intimidades: “De fato, o direito à intimidade, ainda que irrenunciável, para ser exercido depende muito diretamente do seu titular, Com efeito, se ele (ou ela) quiser expô-la indevidamente como faz quem se prostitui, p.ex., muito pouco ou quase nada poderá fazer o Estado ou a sociedade para protegê-lo. Mas no caso desse programa, conta-se com o poderoso auxílio de um monstruoso meio de comunicação para promover tal violação. Ou seja, ainda que a intimidade seja exposta ‘voluntariamente’, um canal de televisão se encarrega de a propagar pelos quatro cantos de um país e do mundo. Com isso, as consequências maléficas não se limitam às ‘vítimas’ dessa violação ao direito à intimidade. É que quando milhões de jovens e adolescentes se ‘divertem’ num espetáculo dessa natureza, em que se promove um exibicionismo doentio de comportamentos no mínimo inconsequentes, estão sendo educados a ter uma postura pouco respeitosa com a intimidade do outro, e, talvez, sendo motivados a não resguardar a própria intimidade e até mesmo a esvaziar sua interioridade, o que, em última análise, implica grave ofensa à dignidade da pessoa humana”.

O caso de Michel Teló e a “música” que tem sido divulgada ad nauseam resume bem o estágio a que chegou a total inversão da qualidade. Tocada aqui e alhures, inundou as comunicações de ampla divulgação. “Música” e “letra” são do mais rudimentar pauperismo, mas, é de pasmar, essa coisa teve guarida até entre soldados de Israel, o que evidencia a alienação globalizada. Hipnotizadas, milhões e milhões de pessoas gestualizam esse “fenômeno” de audiência, como insiste a grande mídia.  Assim como tantas outras “músicas” sucumbiram meses após a explosão do sucesso, fatalmente o mesmo ocorrerá com a “criatura” nascida do Sr. Michel Teló. Todavia, também se tem a certeza de que estarão sempre a surgir aberrações escritas por oportunistas de plantão. Estrelas cadentes estão sempre a cortar os céus.

Um terceiro caso que, na aparência, estabelece uma zona de descontração, situa-se no caso “Luisa e o Canadá”. A matéria publicitária que indicou a ausência da Luisa, pressupostamente sem que os autores tivessem a ideia da repercussão de propaganda regional, fez com que, repentinamente, esse episódio sem nenhum interesse ganhasse também os meios de comunicação. No YouTube, vários vídeos já ultrapassaram largamente o milionésimo acesso. É o nada que se transmuta em um tudo. Um tsunami do nada. Repórteres e radialistas exaltaram absurdamente o fato rigorosamente insignificante. Os espaços caríssimos dos meios de comunicação dão lugar à cultura, à arte, à família no que ela tem de melhor? O leitor já tem a resposta. Essa alienação deixa ainda menos preparado o povo, pela absoluta ninharia do que é transmitido, fazendo-o mergulhar na iniquidade. Não resta a menor dúvida que a jovem Luisa estará a receber os mais diversificados convites para exposições públicas.

Esses três exemplos entre tantos que brotam como erva daninha, além de soterrarem aspirações voltadas ao humanismo, preparam infaustamente a maioria da população do país para o voto. Decorre que essa maioria, transformada em manada sem orientação, facilmente se deixa influenciar quando da escolha dos candidatos. Se não sabe selecionar as opções cotidianas que lhe são oferecidas, muito menos quando se trata do momento de definição na cabine de votação. Vê-se que a qualidade não mais está em causa, pois já feneceu há muito tempo. Nada mais a fazer.

On sensational but insignificant news events that make a great splash and then disappear and the meaning behind their triumph: people sometimes willing to risk their dignity for fame; lack of education, of civility, of inner values on the part of the public; a press that chooses profit over principle and has no interest in helping citizens to be fully informed and engaged in the things that really matter.

A Valoração que se Faz Necessária

“Women have served all these centuries
as looking glasses possessing the magic and delicious power
of reflecting the figure of man at twice its natural size.”
Virginia Woolf (A Room of One’s Own)

A mulher está muito perto da Natureza;
Há nela os mesmos encantos e os mesmos perigos.
Agostinho da Silva

Em 2010 escrevia a respeito de tese de doutorado defendida junto à USP pela professora Susana Igayara, na qual a pesquisadora abordava obras teórico-musicais escritas no Brasil na primeira metade do século XX por professoras e educadoras musicais. Tendo integrado o júri, impressionou-me a quantidade de trabalhos publicados em período em que a mulher não alcançara patamares sequer à base de igualdade com os homens (vide Uma Tese Diferenciada – A Mulher Brasileira e seus Textos sobre Música. 14/05/2011).
Considerando-se o período a partir da segunda metade do século XIX, é possível observar leves tentativas de emancipação da mulher nas mais variadas atividades. Se George Sand (1804-1876) foi exemplo em França, há que se considerar que sempre houve, ao longo da história, a presença de mulheres que se destacaram, apesar de não aparecerem publicamente, como educadoras, heroínas, artistas, intelectuais e empreendedoras. O nítido domínio dos homens era fator preponderante para uma verdadeira “imersão” da criatividade feminina. Se Berthe Morisot (1841-1895), Mme Curie (1867-1934), Clara Schumann (1819-1896) e tantas outras tiveram reconhecimento em  vida, a grande maioria ficaria no ostracismo e outras tanto tiveram valoração post mortem. Era a regra do jogo. Camille Claudel (1864-1943) tornar-se-ia o símbolo do talento artístico que, premido pela sociedade, sucumbiu em vida. E o que dizer de Anita Malfatti (1889-1964), que ao sofrer pressões estéticas, renunciaria a um estágio na pintura que certamente faria dela uma expressão a nível mundial?

É, pois, alvissareira a publicação de um  pequeno livro a destacar mulheres que tiveram brilhantismo em Portugal em período em que imperava o “machismo”, atitude ainda tão majoritária no planeta como um  todo (Mulheres do Alentejo na República. Textos de Anastásia Mestrinho Salgado, Carlos Emílio Carapinha e Idalete Giga. Chaves, Tartaruga, 2011).

Já na Introdução há referência a essa “mulher filha da burguesia mais instruída, diplomada pelas escolas politécnicas, escolas de medicina e veterinária, etc. (médicas, professoras, artistas)” que captavam determinados ventos ideológicos que começavam a soprar em Portugal. Essa mulher, graças ao comboio, iniciava através das viagens uma nova percepção da vida e de sua posição junto à sociedade, a ter, pois, papel fundamental na emancipação feminina, não sem duros percalços. Tem-se, ainda na Introdução, que “a transversalidade entre estes grupos de mulheres acontecia em vésperas da 1ª República. Era como se todas as mulheres portuguesas sonhassem o mesmo sonho – SER MULHER”.

O espaço a que me proponho tornar-se-ia pequeno para esboçar o perfil das dezessete mulheres estudadas, que abrange as mais diversas áreas. Todas tiveram destacada atividade e lutaram nas mais variadas frentes, no intuito de dignificarem a figura feminina na sociedade. Selecionei as três breves biografias traçadas com muita competência pela professora Idalete Giga, natural de Ciborro (Montemor-o Novo), portanto, alentejana da gema: Virgínia Quaresma (1882-1973), pioneira do jornalismo moderno em Portugal, segundo a estudiosa, Eunice Muñoz (1928- ), atriz relevante, e a célebre poetisa Florbela Espanca (1894-1930).

Virgínia Quaresma, licenciada em Letras e diplomada pela Escola Normal de Lisboa, foi notável jornalista, a preferenciar em sua atividade a reportagem e a entrevista política. Atuou em alguns dos mais importantes veículos de comunicação em Portugal. Esteve várias vezes no Brasil a partir de 1912 e, durante um bom período, residiu no Rio de Janeiro, a exercer sua profissão colaborando para o Correio da Manhã, A Época e a Gazeta de Notícias. Referencial um pronunciamento junto à Sociedade Promotora do Ensino Popular em Portugal: “Ser feminista é a minha única carta de recomendação, o meu único título de glória  no mundo intelectual. E não me dispensam dessa honra em parte nenhuma, embora eu saiba muito bem que o nosso meio social, ainda em grande parte, não compreende todo o orgulho, toda a altivez, toda a satisfação de razão e de consciência que me podem advir dela”.

Eunice Muñoz é possivelmente a mais importante atriz portuguesa e foi impecavelmente “retratada” desde as primeiros passos “hereditários”, empreendidos em companhia de seus pais. Aprendeu cedo o métier e o talento desabrochou com naturalidade. Idalete Giga tem o esmero de indicar a relação de todas as peças do repertório de Eunice Muñoz, nomeando-as e a oferecer, como suporte, a cronologia e os locais das apresentações. Impressiona a quantidade de peças de teatro que Eunice apresentou e continua a oferecer aos mais variados públicos. Cinema e televisão também fazem parte de seu universo. Seu repertório é imenso. É a atriz mais premiada em toda a história da dramaturgia em Portugal.

Ao se debruçar sobre Florbela Espanca, Idalete o faz com o respeito devido à grande poetisa alentejana que legou aos pósteros uma produção tão pequena, inversamente proporcional à qualidade. Florbela viveu em choque permanente, não apenas familiar, mas também com o meio social. Desde jovem quebraria regras de conduta,  graças à sua vida amorosa tão distante da rígida concepção moral de sua época e de suas irreverentes atitudes frente ao establishment. Casamentos, relacionamentos prolongados ou efêmeros motivando, sob o aspecto da criação, mesmo em temáticas outras, a presença do relacionamento amoroso, da esperança ou da desilusão e os enfrentamentos da mulher voltada à escrita. Tem ela a consciência da apreensão pública de suas obras. Esses permanentes conflitos, acrescidos de hereditariedade, levariam ao fim trágico aos 36 anos, quando a porta do suicídio tornou-se a única viável. De Charneca em Flor tem-se: “Queria encontrar Deus! Tanto o procuro!” Contestada ou mesmo rejeitada por setores mais puritanos da sociedade de seu tempo, Florbela Espanca tem sido, sur le tard, cada vez mais estudada pela expressividade de seus poemas. Idalete Giga sintetiza bem o perfil humano e criativo da artista: “Quando alguém nasce para além de seu tempo, como foi o caso desta extraordinária poetisa alentejana, tal facto suscita o mais vivo interesse. Florbela Espanca estava, sem dúvida, avançada em relação à sua época em que as mulheres viviam completamente subjugadas e dependentes dos homens, fossem pais, maridos ou irmãos. Não tinham quaisquer direito, mas apenas deveres. Florbela Espanca era a antítese da mulher dependente e subjugada. Artista de rara sensibilidade poética, independente e livre pensadora, mostrou-se sempre tal como era, sem máscaras, sem preconceitos. Por isso, a sua vida foi uma luta constante, cheia de sofrimento, dificuldades, desilusões e a sua obra incompreendida pela sociedade de seu tempo”.

Ao leitor transcrevo um dos poemas de Florbela Espanca:

Mistério

Gosto de ti, ó chuva, nos beirados,
Dizendo coisas que ninguém entende!
Da tua cantilena se desprende
Um sonho de magia e de pecados.

Dos teus pálidos dedos delicados
Uma alada canção palpita e ascende,
Frases que a nossa boca não aprende,
Murmúrios por caminhos desolados.

Pelo meu rosto branco, sempre frio,
Fazes passar o lúgubre arrepio
Das sensações estranhas, dolorosas…

Talvez um dia entenda o teu mistério…
Quando, inerte, na paz do cemitério,
O meu corpo matar a fome às rosas!  

 Mulheres do Alentejo na República é livro a ser visitado. Oxalá a temática, a abranger o perfil da mulher em períodos onde a emancipação mostrava-se uma heresia, surgisse mais acentuadamente. Se de um lado essas desbravadoras em busca da igualdade e do reconhecimento do valor da mulher são paulatinamente reconhecidas numa sociedade ocidental aparentemente igualitária, sob aspecto outro a mulher objeto, que se oferece aos amplos meios de comunicação, mormente na condição de desnudamento, apenas retarda a inserção feminina plena, sem restrições, em todas as áreas da atividade humana.

This post is an appreciation of the book “Mulheres do Alentejo na República” (Women from Alentejo during the Republic), written by Anastásia Mestrinho Salgado, Carlos Emílio Carapinha and Idalete Giga.  It portrays 17 women from the region of Alentejo in Portugal that have been outstanding in their specific fields of activity. For space reasons, I’m unable to mention the 17 women, thus selecting only 3 of them: Virginia Quaresma (journalist), Eunice Muñoz (actress) and Florbela Espanca (poetess). But all the personalities depicted are strong women who transcended the limits imposed to their gender, going where few women dared to go.