Continuamos a Divulgar Repertório Luso-Brasileiro


As apresentações em Lisboa tiveram ouvidos atentos. O lançamento do álbum com dois CDs dedicados a Lopes-Graça foi precedido por argutos comentários do ilustre Professor Catedrático da Universidade Nova de Lisboa, Mário Vieira de Carvalho. Em minha breve palestra salientei a presença inequívoca, no panorama mundial do século XX, dos dois mestres maiores da luso-brasilidade: Villa-Lobos e Lopes-Graça, este ainda não tão divulgado mundialmente, mas que a História deverá, inexoravelmente, colocar entre as figuras mais extraordinárias do século que passou, não apenas como compositor, mas também como intelectual do maior peso.

Tem-se sempre a necessidade do culto aos premiados. Mais e mais a sociedade caminha para reverenciar agraciados ou aqueles, sob outro enfoque, entregues aos holofotes. Lopes-Graça está a encontrar, paulatinamente, o lugar que sempre mereceu. Por puro merecimento, sem “badalações” não confiáveis. Chegará o dia.

Apresentamos Canto de Amor e de Morte, constante do álbum, e músicas extraprograma do repertório luso-brasileiro. A identificação Portugal-Brasil deveria estar em diferente patamar de entendimento, não fossem outros interesses nem sempre transparentes.

O recital de Regina Normanha Martins, no dia a seguir, teve a maior acolhida. Apresentou na íntegra o delicioso Livro de Maria Frederica, do excelente compositor português Frederico de Freitas. Comoveu a todos, que raramente ouviram a coletânea por inteiro. Suspeito como marido, afirmaria, contudo, que a interpretação das Sete Miniaturas de Fructuoso Vianna e da magnífica Sonata nº 1 de Francisco Mignone surpreendeu. Estava eu a rememorar, pois foi nessa sala da Academia de Amadores de Música, em Lisboa, que dei, a convite de Lopes-Graça, meu primeiro recital na capital portuguesa, no longínquo 14 de Julho de 1959. Jamais poderia imaginar um primeiro recital de Regina em Portugal, quase 53 anos após! Vale a pena viver.

No recital que dei na bela Igreja do Convento Nossa Senhora dos Remédios, promovido pelo Eborae Musica, tivemos duas primeiras audições absolutas: de João Nascimento, o Estudo Fúrias, Volutas e Saraivadas; de Eurico Carrapatoso, a introspectiva Missa sem Palavras (cinco estudos litúrgicos) constituída de Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus e Agnus Dei. A extraordinária obra, de cerca de 20 minutos, necessita de tão grande recolhimento, mercê de toda a estrutura e da mística que a envolve, que ao final sentia-me feliz e exausto. Concentração plena, que foi reconhecida pela acolhida generosa de Eurico Carrapatoso.

Nos três dias subsequentes ofereci master classes no Departamento de Música da Universidade de Évora. Foi um prazer enorme ter sido o curso inteiramente voltado à música portuguesa para piano. Alegria ter ouvido, durante o transcorrer das audições, alunos de raro talento da excelente pianista e professora do Departamento, Ana Telles, que se tem dedicado com intensidade ao repertório composto em Portugal. Que dedicação, carinho e atenção desses promissores pianistas! Ter ouvido de Carlos Seixas (1704-1742) a Jorge Peixinho (1940-1995) e muitas obras do grande Lopes-Graça foi emocionante para o velho músico, que, entre outros repertórios, tem especial apreço pelo que foi criado em Portugal.

O recital de Regina, promovido pelo Eborae Musica, entusiasmou a todos. Fiquei orgulhoso.

Seguimos para o Algarve, a convite do ilustre Professor e musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso. Os pais de sua esposa, Maria Manuela, esperam-nos. Breve repouso, onde não faltarão as iguarias do mar, preparadas pelo mestre das águas algarvias, Firmino, aquele que, em blog bem anterior, definira que o segredo do mar é o vento.

 

Travessia e o Inusitado

Tudo o que é interessante na vida deve ser sempre por opção.
Não haver nada obrigado definido,
porque é muito engraçado
nós termos até o divertimento por obrigatório.
Agostinho da Silva

Reiteradas vezes nesses mais de cinco anos ininterruptos de posts publicados no blog tenho me referido às viagens ao Exterior que ocorrem habitualmente, sempre no exercício da atividade musical, mormente voltada aos recitais e gravações. A nova travessia não foge à sistemática. Também inúmeras vezes comentei que cada intérprete sabe, ou deveria saber, os caminhos que deve ou pode trilhar. São tantas as contingências que determinam rumos, assim como incontáveis as possibilidades de trajetos a serem percorridos.

Nos muitos posts dedicados ao tema observo que, no meu caso específico, portanto eminentemente pessoal, interessa-me atravessar o Atlântico a saber que estarei a transmitir o novo, seja ele do passado ou atual, mas rigorosamente inédito para meus dedos, coração e mente. É o inusitado, mesclado ao já incorporado a fazer parte do acervo, que me proporciona a relação amorosa com a viagem. Saber que estarei a interpretar ou o passado remoto, ou não tão remoto, e o novo que há pouco saiu da pena de compositor de mérito. Alento e alegria de prosseguir em senda tão especial escolhida voluntariamente. Atravessar o oceano, a fim de eternamente se repetir, nunca fez parte de meus projetos. Seria mais fácil, disso não tenho a menor dúvida, mas a reiterar o caso específico, sentir-me-ia sedimentado. Transpor o equador e repetidamente voltar ao repertório das primeiras quatro décadas causar-me-ia certo constrangimento. Quando regresso homeopaticamente às composições desse passado tradicional, faço-o prazerosamente. Lógico que o inusitado leva ao tributo a pagar e este estaria ligado ao interesse dos empresários, à frequência de um público voltado ao super-tradicional, à acomodação da consciência coletiva. Uma audiência mais restrita, cônscia do que está a ser transmitido, já não significa o ato amoroso do congraçamento? Sob égide outra, como não divulgar o que é realmente meritório e recente, como não se voltar aos arquivos de bibliotecas e museus e encontrar a jóia que, por motivos não explicáveis em tantos casos, está velada? Como consequência, não haveria  a suprema alegria de verificar que se está diante de um monumento que precisa ser ouvido e divulgado?

 

A presente digressão tem como finalidade precípua o lançamento de dois CD (PortugalSom), em álbum inteiramente dedicado ao grande compositor português Fernando Lopes-Graça (1906-1994). Estou a me lembrar de todo o carinho que tive ao edificar a interpretação pessoal, sempre na observância mais fiel do texto musical, e ao descobrir, em obras como o original para piano de Canto de Amor e de Morte (1961), verdadeira arquitetura alma-mente da pianística mundial da segunda metade do século XX; Músicas Fúnebres, magistral  tributo do Mestre de Tomar a nove amigos e camaradas falecidos; Música de Piano para Crianças, encantadora coletânea dedicada aos miúdos e Cosmorame, enciclopédia a confraternizar os homens, criações constantes do álbum. Prazer maior ao erigir Canto de Amor e de Morte, após debruçamento de quase dois meses, unicamente para desvelar o que se passava no único rascunho (completo, felizmente) deixado pelo autor, pleno de rasuras, cortes, e a palavra insistente corrigir. A confrontação com as duas versões posteriores para quarteto de cordas e piano (1961) e orquestra (1962) foi salvaguarda absoluta para que hesitações não houvesse quando da escolha da opção definitiva de uma nota escrita às pressas no instante da criação, ou de uma rasura. Qual não foi a emoção intensa do intérprete ao registrar fonograficamente as quatro obras referenciais no meu templo de gravações, a milenar Capela Sint-Hilarius fixada na planura da Bélgica Flamenga. Quando ouço a gravação que ora virá a público, ou realizo nova visita ao Canto… obra a ser apresentada nos recitais como excelência da criação de Lopes-Graça, não deixo jamais de ter a reverência que essa criação excelsa merece. As outras três importantes obras estavam em manuscritos autógrafos precisos já sabendo Lopes-Graça que se tratava de definição. Delas já tratamos quando da digressão de 2010. Desta vez, apenas Canto de Amor e de Morte será apresentado, visto que somente naquele ano a obra foi interpretada.

Duas primeiras audições de compositores portugueses igualmente trazem-me alegria. O Estudo em homenagem ao extraordinário compositor coimbrão Carlos Seixas (1704-1742) tem nome sugestivo: Fúrias Volutas e Saraivadas. De maneira engenhosa, João Francisco Nascimento (1967-  ) estabelece relação intrínseca entre a técnica setecentista para teclado e a jocosidade – quase uma paródia – de elementos extra-musicais estabelecidos pelo personagem imaginário, Saraiva. Quanto à Missa sem Palavras (cinco estudos litúrgicos), de Eurico Carrapatoso (1962-  ), estamos diante de uma obra singular, distante de convenções escriturais vanguardistas. Austera, polifônica, oferece ao intérprete a possibilidade da introspecção. Apresentei-a veladamente a alguns amigos músicos. Impossível ficar indiferente à tanta qualidade e ao culto ao belo. Nas cinco partes constitutivas da Missa Católica ordinária, menção a segmento central de Gloria. Diria que todas as musas, anjos e querubins  sobrevoaram a mesa onde a obra estava a ser criada. Momentos inefáveis lá estão. Sob aspecto outro, que competência Carrapatoso apresenta nas mudanças  métricas! Frise-se que todo o texto litúrgico está sobre o discurso musical, a dar não a necessidade do canto, mas a orientação da condução do material apresentado sob os aspectos da agógica, articulação e dinâmica. Escreve Carrapatoso: “Este texto sacro refulge no fragor bronzino do latim. Escrito na partitura, faz dela parte intrínseca. Mas não será verbalizado, no sopro da voz. Está lá para dele ser feita uma leitura íntima, secreta. O intérprete cantará os mistérios do texto canônico através dos seus dedos e não da sua voz”. Eurico Carrapatoso comenta a dedicatória: “A obra é dedicada à memória de meu pai, António Carrapatoso, médico por caridade e olivicultor exemplar, por ocasião do centenário de seu nascimento (Alvites, Trás-os Montes, em 17.4.1912), dois dias depois da tragédia do Titanic. Meu pai, que tinha espírito, dizia que ele era a prova cabal do princípio de Arquimedes: o Titanic afundou. Logo, ele emergiu. Tenho muitas saudades suas”. Frise-se que os Estudos de dois expressivos músicos portugueses enriquecem a coleção de Estudos Contempoâneos para Piano que iniciei em 1985 devendo se prolongar a “colheita” até 2015. Teremos trinta anos para uma panorâmica da técnica pianística e da compreensão que dela fazem compositores de muitos países do planeta. Recebi ao todo cerca de 80, a grande maioria apresentada em público.  A completar o recital, apresentarei de Francisco Mignone (1897-1986) os magníficos Seis Estudos Transcendentais e as consagradas obras de Villa-Lobos (1887-1959), Impressões Seresteiras e Dança do Índio Branco.

 

Quanto ao recital que minha esposa, pianista Regina Normanha Martins, deverá apresentar, diria que as duas Sonatas de Domênico Scarlatti (1685-1757) estariam dentro de um contexto lusitano, pois o compositor por sete anos foi orientador tecladístico da Infanta Maria Bárbara, em Lisboa. O Livro de Maria Frederica, de Frederico de Freitas (19-1980), respeitado compositor português, representa a incursão no universo infantil e as 36 pequenas historietas de cunho doméstico desfilam raro encantamento. As Sete Miniaturas de Frutuoso Viana (1896-1976), obra singela e consagrada no Brasil, as Três Marias de Villa-Lobos e mais a magnífica Sonata nº 1 de Francisco Mignone completam o recital. Uma alegria assistir a Regina apresentar-se pela primeira vez em Portugal.

Os próximos dois blogs serão mais curtos devido à intensa atividade do Minho ao Alentejo e aos deslocamentos necessários, que já se processam. Todavia estarei a transmitir ao prezado leitor o andamento da tournée pela amadas terras portuguesas.

 

Texto Impecável de Mário Vieira de Carvalho

Confesso-lhe com inteira sinceridade que prefiro,
do ponto de vista da comunicação artística,
deslocar-me com o Coro da Academia de Amadores de Música
à mais esquecida vila alentejana ou beirã,
ou à mais popular (e não alienada)
colectividade filarmónica-recreativa da Outra Banda,
a receber os aplausos medidos e convencionais
que na realidade se digna, dispensar à minha música
os frequentadores habituais das salas de concerto da capital.
(Entrevista concedida a Mário Vieira de Carvalho por FLG em Fevereiro/Março de 1974)

Será em Junho o lançamento em Portugal do álbum a conter dois CDs com obras essenciais do grande compositor português do século XX, Fernando Lopes-Graça (1906-1994). Gravei-as em 2010 na Capela Sint-Hilarius, em Mullem, na Bélgica, a ter como engenheiro de som o excelente Johan Kennivé. Foi a partir de Novembro último que houve o vivo interesse do prestigioso selo PortugalSom pelo lançamento das quatro composições registradas em solo belga. Confiaram ao Professor Catedrático da Universidade Nova de Lisboa, Mário Vieira de Carvalho, o texto do encarte. O ilustre musicólogo, grande conhecedor da obra e da trajetória de Lopes-Graça, privou da amizade do músico e pensador e é autor de livros referenciais sobre o compositor nascido em Tomar (O Essencial sobre Fernando Lopes-Graça, Portugal, IN/CM, 1989 e Pensar a Música, Mudar o Mundo: Fernando Lopes-Graça, Porto, Campo das Letras, 2006). Reiteradas vezes tenho escrito que não estamos diante de um grande compositor português, mas sim frente a um dos maiores músicos do século XX em termos mundiais. Compositor, regente, pianista e pensador, a obra de Lopes-Graça tem a qualidade excelsa proporcionada a poucos. Lamentável, para não dizer vergonhoso, é o desconhecimento que dele se tem no Brasil. Urge reparar esse desvio histórico.

Solicitei à PortugalSom e ao Professor Vieira de Carvalho a reprodução do texto em meu blog poucas semanas antes do lançamento. Gentilmente aquiesceram. O leitor é brindado com o estudo de Vieira de Carvalho, concluído em Cascais aos 25 de Março de 2012, verdadeiro debruçamento sobre as obras constantes nos CDs Lopes-Graça.

Fernando Lopes-Graça (1904-1994)
Obras para piano

“Este duplo CD de música para piano de Fernando Lopes-Graça é resultado duma intensa atividade de investigação do intérprete, José Eduardo Martins, cuja dedicação e entrega ao repertório de autores portugueses e à sua divulgação sistemática, nomeadamente através de gravações exemplares, tanto na substância musical como na qualidade fonográfica, dificilmente tem competidores, mesmo entre pianistas residentes em Portugal.

O investimento na pesquisa e a paixão com que se dedica à música que interpreta explicam um dos maiores motivos de interesse deste CD duplo, que é a recuperação do original para piano do Canto de Amor e de Morte, uma versão que o compositor deu por ‘inutilizada’. Trata-se de uma peça-chave na obra de Lopes-Graça, composta em 1961 após uma grave crise existencial que quase colocou o compositor à beira do suicídio, e que representa um momento de viragem na sua linguagem musical – acentuando o pendor  para um ‘expressionismo dramático de carácter mais ou menos atual’ (palavras do compositor) que nela se manifestava em estado latente. Essa viragem traduz-se no extremar do princípio da variação evolvente ou amplificadora (entwickelnde Variation ou evolving variation) a partir das figurações elementares melódico-harmónicas e rítmicas. A dissonância (nomeadamente, intervalos de segunda e sétima obsessivos) está sempre presente e não tem resolução: é a dissonância entre o autor e uma realidade social e política que lhe é odiosa, que lhe é hostil, que o limita drasticamente nas suas expectativas de realização pessoal e artística, que o oprime como ser humano, que o dilacera na sua esfera mais íntima. É a obra confessional de um homem que se ‘deita ao lado da sua solidão’ (1) – um homem que, proibido pela Ditadura do Estado Novo do exercício da docência (quer nas escolas públicas, quer privadas), perseguido política e economicamente pela sua militância comunista, mas afrontando sempre com intransigência e coragem as adversidades da vida, chegara aos 54 anos confinado a um quarto alugado, pois não tinha meios para arrendar um apartamento próprio. É essa dissonância existencial que emana do gesto global da obra – um gesto expressionista, que vem das profundezas da subjetividade.

Pode presumir-se que Lopes-Graça pensou originalmente o Canto de Amor e de Morte como obra para piano e que só em pleno processo de composição, decerto marcado por uma forte interação com o instrumento, se tenha apercebido de que precisava de ir mais além, alargar os meios instrumentais de modo a tornar a obra mais exequível e mais transparente nas suas componentes estruturais e expressivas. A versão definitiva, apresentada em primeira audição em 1961, para quarteto de arcos e piano, impôs-se então ao compositor e impôs-se ao público e à crítica pelo seu perfeito equilíbrio entre construção e expressão. Que na substância musical cabia uma grande orquestra foi o que ficou demonstrado numa versão ulterior, de 1962. A obra foi-se expandindo, pois, da ideia primeira (piano) para ensemble (quarteto de cordas e piano) e, finalmente, orquestra. José Eduardo Martins, após um paciente e rigoroso trabalho reconstrutivo, convida-nos a percorrer caminho inverso: o caminho da concentração nos meios exclusivamente oferecidos pelo piano. Passamos a dispor, assim, de três versões, e escusado será dizer que José Eduardo Martins nos convence completamente daquela que pode considerar-se, a partir de agora, a versão “original” para piano. Pelos enormes desafios que ela coloca ao intérprete, revive-se na sua execução a ‘luta’ do compositor/pianista com os limites do instrumento. O efeito é o duma redobrada condensação expressiva.

Canto de Amor e de Morte é um título que podia, com propriedade, abranger todas as obras incluídas neste CD duplo. Na verdade, amor e morte são também evocados na impressionante coleção de Músicas Fúnebres para piano, e o gesto de amor – o gesto de amor que esconjura a morte – está ainda latente nas duas obras que completam o CD: Música de piano para as crianças e Cosmorame.

As Músicas Fúnebres, apesar de compostas dispersamente ao longo de dez anos (1981-1991), têm uma monumentalidade comparável à dos Funerais de Liszt. O próprio compositor as reuniu num ciclo, reconhecendo e sublinhando a posteriori a sua unidade. Na verdade, parecem articular-se entre si como as Cinco Estelas Funerárias (para companheiros mortos) para orquestra (1948, 1º audição: 1956), em que Lopes-Graça também chora a perda irreparável de amigos e companheiros. A partilha do mesmo ideário e a fraternidade política, vividas intensamente, e revividas no momento do luto com grande comoção íntima, inspiram todas elas. Esse mesmo fundo político aparece ainda nas outras ‘músicas fúnebres’ do compositor: na Elegia à memória de D. Herculana de Carvalho (1953), peça para piano autónoma (2); no Pranto à memória de Manuela Porto (composto em 1950 e depois incluído nas Oito Bagatelas para piano, 1950); bem como obviamente no Requiem pelas vítimas do fascismo em Portugal, para solistas, coro e orquestra (1979).

Uma análise aprofundada das Músicas Fúnebres deixaria entrever aqueles traços característicos (subjacentes ao gesto expressionista unificador) que as diferenciam entre si, pois remetem para personalidades tão marcadas como os poetas Carlos de Oliveira e José Gomes Ferreira (que inspiraram várias obras vocais de Lopes-Graça, entre elas as canções revolucionárias ou canções heróicas, uma das quais – Jornada - se insinua não só título mas também na substância musical da peça à memória deste último) (3); a escritora e ativista política e dos direitos das mulheres, Maria Lamas, obrigada a exilar-se durante a vigência da Ditadura; o líder da FRELIMO, Movimento de Libertação de Moçambique, Samora Machel, que Lopes-Graça conheceu pessoalmente; Francisco Miguel, o dirigente do Partido Comunista Português que somou maior número de anos de prisão e um dos que mais arriscou a vida em ações de luta contra o Estado Novo; o médico Ernesto Castro e Silva, também ‘amigo e camarada’; Francine Benoît e Louis Saguer, compositores, musicólogos, pedagogos, irmanados com Lopes-Graça tanto na persistente defesa da modernidade estética como na intransigência política; e, finalmente, Michel Giacometti, também amigo e incondicional  companheiro de luta de Lopes-Graça, seu colaborador inseparável desde 1960 no projeto de investigação, recuperação, registo fonográfico e estudo exaustivos da música regional ou ‘música rústica’ portuguesa.

De diferente carácter são as peças incluídas no CD 2 deste álbum duplo, embora nelas se divise igualmente o tema do amor e o gesto de esconjurar a morte. Música de Piano para as Crianças (1968-1976) faz parte da apreciável série de obras instrumentais ou corais-instrumentais em que Lopes-Graça dá testemunho do seu amor pelas crianças, dir-se-ia como manifestação do seu amor à vida e de esperança num mundo de paz e solidário. É uma coleção de peças-miniaturas destinadas à iniciação infantil no piano. Os seus títulos alternam, entre a sugestão de imagens (p. ex. Um bocadinho triste, Recordação, Brincadeira, Divagação, Caleidoscópio) e as referências diretas à forma musical ou ao treino pianístico (p. ex. Estudo, Melodia acompanhada, Simples canção, Cânone a duas vozes, Baixo obstinado, Pentatonia, Tocata). Tal como as peças do Álbum do Jovem Pianista (1953-1966), trata-se de verdadeiras preciosidades de invenção musical, com um propósito educativo e formativo, mas que nem por isso deixam de interpelar o ouvinte, convidando-o a uma escuta atenta e interessada.

Em Cosmorame (1963), Lopes-Graça dialoga com os povos de todo o mundo numa suite de 21 peças. O título original em francês, acrescido do subtítulo Grand recueil de pièces pour piano: composés sur des airs de divers pays et consacrés à la fraternté des peuplespar: première partie, previa uma segunda parte, que não chegou a ser composta. Num mundo de conflitos agudizados, que espalhavam em vários continentes a devastação e a morte, Lopes-Graça proclama a fraternidade dos povos através da sua música: ...se eu queria celebrar a fraternidade dos povos na paz, na amizade e na compreensão mútuas – ideal que tenho muito a peito -, porque não haveria de me dirigir aos seus cantos e às suas danças, para com eles compor um ramalhete de pecinhas que os irmanasse no meu pensamento e na minha arte, e isto mediante aquilo que mais os individualiza e, ao mesmo tempo, os aproxima em espírito, e já que de outros poderes não disponho para promover a sua aliança? … não constituirá ao menos um acto de alguma coragem o procurar fazer assumir à arte, à música, na espécie, um gesto de amor, hoje que ela, a música, parece, não direi perdida, mas solipsisticamente encerrada no mágico anel das suas experiências e das suas descobertas, e hoje em que, num mundo de trágico desconcerto, os gestos de amor se tornam tão urgentes? Um gesto de amor, este Cosmorama. Conterá ele a arte que possa exalçar esse gesto? (4).

O propósito do compositor é ainda acentuado pela citação de Telémaco, de Fénelon, inscrito na partitura: Tout le genre humain n’est qu’une famille dispersée sur la face de toute la terre. Tous les peuples sont frères, et doivent s’aimer comme tels. Malheur à ces impies qui cherchent une gloire cruelle dans le sang de leurs frères, qui est leur propre sang.

Lopes-Graça terminou a obra e escreveu as linhas da sua apresentação acima referidas em plena guerra colonial (deflagrada em 1961), quando soldados portugueses e militantes dos movimentos de libertação de Angola, Guiné Bissau, Cabo Verde e Moçambique se defrontavam em sangrentos combates. Daí ganhar particular relevância política o facto de, no contexto da obra, Portugal e Moçambique serem colocados em pé de igualdade, como povos fraternos. José Eduardo Martins trabalhou detidamente na análise de Cosmorame, aplicou-se no esforço de decomposição estrutural e decifração dramatúrgica, como se não se conformasse com a designação de pecinhas dada pelo compositor. Na sua interpretação, e assim realizada integralmente, a obra surge-nos como um monumento, um memorial à fraternidade dos povos, sobre o pano de fundo de um mundo onde a guerra e as lutas fratricidas continuam a grassar”.

In June my double album with pieces for piano by the great Portuguese composer Lopes-Graça will be released in Portugal by the label PortugalSom. This week’s post is a transcription of the CD booklet, written by the distinguished musicologist and professor of the University of Coimbra Mario Vieira de Carvalho, who with his usual competence discusses briefly the works contained in the CD.

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1) Hoje deitei-me ao lado da minha solidão – verso de um dos poemas de Eugénio de Andrade incluído no ciclo de canções para canto e piano As mãos e os frutos, composto por Lopes-Graça em 1959.
2) Herculana de Carvalho era mãe de Guilherme da Costa Carvalho, dirigente do Partido Comunista Português, que, à data da composição da obra se encontrava prisioneiro no Campo de Concentração do Tarrafal (em Cabo Verde, então sob domínio colonial português) e que chegou a ouvi-la, numa gravação, durante o seu cativeiro.
3) A evocação da mesma “canção heroica”, Jornada, aparece igualmente na Elegia à memória de D. Herculana de Carvalho, mas mais enfatizada.
4) Lopes-Graça, texto para a primeira edição fonográfica de Cosmorame, 1967 (Piano: Georges Bernand), citado em Romeu Pinto da Silva, Tábua Póstuma da Obra Musical de Fernando Lopes-Graça, Lisboa, Caminho, 2009, p.196.