Trabalhar em perene nocaute

Desenho de Luca Vitali. Clique para ampliar.

Tornei-me um ébrio e na bebida busco esquecer…
Vicente Celestino

Minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, não deixa de surpreender. Cada vez mais populosa, prédios insanamente construídos, buscando alturas cada vez mais elevadas, após aprovações estranhas do poder público. Quão mais altos, maiores os lucros, e nada se faz para coibir essa desenfreada festança. A transformação traz populações de todos os quadrantes da urbe desestruturada, pois há a necessidade de suprimento humano, não apenas para serviços domésticos, como para os incontáveis escritórios e empresas que se aglomeram desorganizadamente sob o aspecto urbanístico.
Estava a tomar meu curto e a ler um interessante livro que reposiciona o conceito do erro, quando Tadeu, frentista de um posto das imediações, cumprimenta-me alegremente. Convidei-o para tomar um café. Atendeu-me, a dizer que teria de ser rápido, pois regressaria ao labor. À certa altura perguntou-me se morava há muito tempo no bairro. Respondi-lhe que, no mesmo quarteirão, há 52 anos, não descontando os anos passados no Exterior a estudar. Como estavam a reparar as tubulações do posto de combustíveis em que trabalha, indagou-me sobre as condições do passado. Foi o bastante para surgir em minha mente a figura do Zé, o da “Sirose”, o homem das manilhas subterrâneas.
Nos anos 50-60, basicamente inexistiam edifícios no bairro. Casas, estabelecimentos comerciais simples pelas esquinas, uma Av. Santo Amaro com trânsito até modesto e, a partir da Av. Portugal, um quase grande charco que se estendia até o Rio Pinheiros. Poucas residências, muitas ruas ainda não asfaltadas, a ausência de serviço de esgoto e a presença constante, ao entardecer, de grandes aranhas que vinham das áreas mais baixas, assim como ratazanas avantajadas. As moradias eram cercadas por portões de não mais de metro e meio e não havia grades em portas e janelas, pois vivia-se outra realidade.
O Zé da “Sirosi” era um ex-presidiário – jamais consegui extrair dados sobre seu passado – que perambulava pelo bairro a prestar todo tipo de serviço relacionado a encanamentos, sobretudo aquele das águas e materiais orgânicos que chegavam às fossas sépticas. Sim, naqueles tempos só existiam esses reservatórios nas casas. Serviam como depósito de tudo que descia pelas manilhas de barro. Periodicamente, caminhões providos de grossas mangueiras retiravam da fossa todo o material sólido e outros mais que subiam à superfície dessas enormes caixas cilíndricas sob a terra, provocando uma nectarização pouco agradável. Sorumbático, discreto e de poucas palavras, Zé mostrava-se entendido no processo todo até a fossa séptica e nunca demonstrou animosidade quando a trabalho.
Zé da “Sirosi” era pois o “cara” das cercanias a tudo entender, apesar do estado precário de equilíbrio em dias determinados. Encharcava-se de bebida durante os fins de semana, e quase sempre, quando realizava um trabalho em uma das casas, surgia no início dos dias úteis meio nocauteado e, tantas vezes, com os olhos entumescidos em decorrência de brigas com “amigos” ou outros personagens. Sentia-se um derrotado, mas quando sóbrio era de extrema habilidade e bom senso nas observaçõs concernentes aos encanamentos. Percebia a presença de problema relacionado a entupimento, como os índios dos filmes de faroeste americano antecipando a chegada da cavalaria, dos bandidos ou dos mocinhos. Pedia silêncio, deitava-se e, orelha voltada ao chão, ouvia a “correnteza” ou auscultava o ponto da obstrução. Sem pestanejar, munido de picareta ou formão, chegava ao estrangulamento. E não errava. Após, introduzia um longo cabo de ferro dentro da tubulação e desobstruía o entupimento com competência.
Como jamais abordou o longo período prisional, pouco falava durante o trabalho. Após a labuta “especializada” ficava irreconhecível, mas percebia-se em seu olhar uma surda satisfação pelo dever cumprido. Era bom naquilo que fazia. Por várias vezes tentei penetrar naquela muralha mental. Só apreendi que chegara ao fim do caminho segundo ele, pois nada mais esperava da vida. Certa vez perguntei-lhe sobre a desmesurada bebida dos fins de semana e sobre a possibilidade de diminuir a ingestão de tanta cachaça. Respondeu-me que era sóbrio durante a semana, pois tomava apenas poucas porções da pinga, devido ao trabalho, mas que de sexta-feira a domingo esquecia-se do passado, do mundo que o cercava e da vida
e bebia duas garrafas de aguardente, o que o levava à total alienação. Você sabe que não terá chance, afirmei-lhe. “O dotô falô que tô cum sirosi no figdo. Tá como vrido quebrado. Num tem jeito não”. Expressava-se com simplicidade e sempre de maneira reservada.
Pobre Zé. Soube naqueles tempos, através do barbeiro Samuel, um português que conhecia toda a vizinhança, que o Zé morrera assassinado numa das brigas, durante a alta embriaguês. Não foi a cirrose a responsável final, mas o descaso total de nossos governantes que jamais preparam o preso para a readaptação à sociedade, desde sempre. Seria bem possível imaginar que, reeducado intramuros, o Zé da “sirosi” pudesse encontrar um caminho digno fora de nosso abominável sistema prisional, um dos mais absurdos do planeta.
Tadeu, o bom funcionário, ouviu a história do Zé da “sirosi”. Como bom cidadão, antes de se despedir, confessou-me: “Se o conhecesse, poderia ajudá-lo”. Os bons exemplos sempre surgem desse povo anônimo que labuta, paga impostos altíssimos e não tem retorno por parte dos governos. Enraíza-se, cada vez mais profundamente, a irracionalidade dos homens que dirigem este Brasil de tão grandes desigualdades. Hoje já não são soltos os Zés, mais legião deles, pois as prisões estão abarrotadas. Poucos conseguem a readaptação quando a âncora familiar os apoia, tantos outros são coptados pela chaga da humanidade, a droga, que, hélas, está a levar a civilização a um outro nocaute.

Relato Competente e de Interesse

Molde original da mão de Chopin feito por Clésinger (Museu Carnavalet). Clique para ampliar.

Me vint aussi la consolation d’être délié de mes entraves,
comme si toute cette chair racornie
je l’avais échangée dans l’invisible ainsi que des ailes.
Comme si je me promenais, enfin né de moi même,
en compagnie de cet archange que j’avais tellement cherché.

Antoine de Saint-Exupéry (Citadelle, chap. XLV)

Foram inúmeros os e-mails recebidos sobre o post de 9 de Outubro. Agradeço a solidariedade dos leitores que externaram apoio e votos de pronto restabelecimento. Chega-se a uma idade em que a intervenção cirúrgica corresponde a um desabrochar de esperanças e essa ideia é estimulante, mormente se a operação é realizada nas mãos, fulcro maior da comunicação musical com o ouvinte. Felizmente tivemos, após a cirurgia de 5 de Julho, uma lenta e cuidadosa preparação para o primeiro recital, que se realizou no último dia 27 de Outubro na Casa de Portugal de São Paulo, a fazer parte do excelente curso O Som de Portugal ministrado pelo ilustre professor da Universidade de Coimbra, José Maria Pedrosa Cardoso.
Entre os e-mails, um deixou-me perplexo, não apenas pela dimensão, como pela clareza ao tratar de episódios que podem, eventualmente, levar um pianista ao mal que me acometeu nos dois polegares, sendo que o da mão esquerda já em processo de recuperação após a cirurgia.
François Servenière (1961- ) é compositor de sólida formação, produção diversificada e meritória, e pensador, algo incomum entre os músicos, geralmente não afeitos à linguagem escrita literária. Em seu site pode-se aferir sua rica atividade musical (www.francois-serveniere.com), ou em outra via (http://www.youtube.com/EsolemProduction). Anteriormente entrara em contato comigo, mercê das já 40 músicas por mim gravadas e inseridas no YouTube. Tem tecido comentários de absoluta competência, pois teve muito boa formação pianística. Costuma realizar, quanto aos meus textos do blog ou dos Essays, a conhecida tradução automática, que, apesar de falhas acentuadas, leva o leitor a compreender razoavelmente do que se trata. Quanto a mim, busquei traduzir as considerações do compositor.
Servenière observa, em depoimento que deveria ter guarida entre os instrumentistas: “Li com muito interesse o post sobre sua operação do polegar da mão esquerda. Você relata uma experiência com a qual muitos pianistas atuais se confrontam, notadamente aqueles cujo repertório destina-se ao século XX. Somando-se à virtuosidade beethoviniana e lisztiana do século XIX, os compositores acrescentaram um nível técnico suplementar, entre os quais o relacionado às aberturas dos dedos e às escalas dodecafônicas, que não são muito naturais no teclado às mãos formadas na tradição.
Intérpretes japoneses disseram-me que minhas obras Rhythmics and Repetitives, que tocaram em recital e gravaram em CD, são tão difíceis como aquelas de Charles-Valentin Alkan. Não sei se é um cumprimento ou uma reprimenda”. Alkan (1813-1888), compositor francês de origem judaica, notabilizou-se por ter escrito obras de extrema dificuldade técnico-pianística. Privou da amizade de Franz Liszt (1811-1886). Prossegue Servenière: “Quando nós escrevemos música, nunca pensamos no martírio dos intérpretes, jamais nos problemas de saúde e no fim cirúrgico que surgirá um dia ou outro por força das circunstâncias, obrigando-os a uma ginástica tão antinatural, tão pouco ortopédica”. Lembrei-me incontinente de duas obras de compositores belgas que deveriam integrar a magnífica seleção que constitui o CD New Belgian Etudes, lançados pela Rode Pomp em 2004, onde dez dos mais expressivos autores belgo-flamengos estão representados, sendo algumas das composições, transcendentais. Os dois Estudos em apreço extrapolavam, e muito, a utilização limite – se assim podemos definir – do posicionamento das mãos, tamanha as atrozes dificuldades que se apresentavam. Foi árdua a edificação interpretativa, mas no ato da gravação constatei, só naquele momento, e não no recital dias antes, que as obras não vingariam tão grandes foram os impecilhos “criados” pelos autores, a meu ver a beirar a arbitrariedade. Havia o exagero pelo exagero exposto por dois compositores de talento e respeitados, mas… Abortei-as, apesar de terem sido a mim dedicadas. Recebi os cumprimentos do engenheiro de som Johan Kennivé e de Alphonsus Medinilla, amigo, professor e pianista que compareceu às gravações em Mullem, no coração da Flandres. Entenderam-nas desproporcionais. Exemplifica bem o não pensar de determinados compositores nessa fronteira que sempre está exposta, mas que deveria ser ultrapassada de maneira coerente. Continua Servenière “Os compositores só pensam na música. Estudam a técnica dos instrumentos, mas estão de tal forma persuadidos de que os intérpretes de música são símios universais, que não terão nenhuma dificuldade em tocar esta ou aquela passagem, convencidos inclusive, a partir da história da evolução das técnicas instrumentais, de que todas as dificuldades acabaram por ser dominadas, não dando pois a menor atenção à problemática, sendo o fato hoje flagrante. Aos intérpretes a função de se ‘virarem’ com aquilo que lhes é apresentado ! O pior, virou norma !” François Servenière, após citar um desses colossos técnico-pianísticos da atualidade, afirma: “Quando os compositores vêem isso, indagam-se naturalmente que a técnica que presenciam é a última fronteira, a configurar-se pois o limite extremo da virtuosidade para o qual se faz necessário compor, escrever. É triste, mas é a realidade que se nos antolha.
Sob outra égide, estaria programada na cabeça dos compositores, uma mudança que os obriga a ultrapassar essa última fronteira. É isso necessário? Não se poderia instaurar uma moratória sobre a guerra técnica na música, assim como sobre as armas de destruição maciça? Durante muito tempo eu me formulei a questão. É evidente que a música, como toda linguagem, tantas vezes sofre essa lei do ‘toujours plus’, como escreveu o jornalista francês François de Closets. Mostra-se necessário sempre ultrapassar o que foi feito ontem e os artistas que não participam do jogo sofrem consequências.
De minha parte, decidi, na minha carreira de compositor, não continuar a seguir o ‘sempre mais’. Estava a haver no meu interior combate com determinadas armas da escritura, às qual eu renunciei posteriormente, conduzido que fui, àquela altura, a não mais escrever de acordo com meu coração, mas uma música para épater la galerie. Escrevi essa profissão de fé em meu site, sob a frase ‘François Servenière is a french composer, born in 1961’”. Há toda uma explicação a respeito desse novo caminhar em direção a uma linguagem na busca daquilo que ele denomina a essência essencial da música. Nessas ricas observações, Servenières ainda diria “Eu conheço hoje os limites que me imponho no nível da escritura, mas fiz-me ‘respeitar’ pelos meus pares e pelos intérpretes por ter composto obras muito difíceis para piano (Rhytmics and Repetitives) ‘que não apresentarão mais qualquer problema aos pianistas daqui a cinquenta anos’, segundo as palavras de François-René Duchable. Sim, é seguramente necessário para me fazer respeitar como compositor, mas seria imperativo no absoluto? Eu não saberia responder. É obra do passado, eu a compus, eu escalei meu Everest, mas há 14 ‘8.000’ sobre a Terra, penso eu, apesar de tudo…”

Molde original da mão de Franz Liszt (Museu Franz Liszt). Clique para ampliar.

A cirurgia do polegar e suas implicações, motivadas, em parte, por excessos que representaram parcela de meu repertório reservado à apresentação de mais de 120 obras contemporâneas em primeira audição, seria o pretexto para o instigante depoimento desse excelente músico, compositor e pensador francês. Conclui Servenière, a observar a nova senda a percorrer: “Eu aspiro agora escrever belas coisas e meu ideal é atingir a pureza escritural de Gabriel Fauré e Ennio Morricone na música, a perfeição das formas de Brancusi na escultura, a ingenuidade onírica de Paul Gauguin na pintura, a simplicidade de Antoine de Saint-Exupéry ou de Ernest Hemmingway na literatura, o todo inspirado na filosofia de Baruch Spinoza. Contudo, sempre sendo fiel ao meu estilo e à minha personalidade, logicamente… É assim que vislumbro meu futuro como compositor.”
As palavras de François Servenière são contundentes. Acrescentaria, à guisa de subsídio, que assim como uma corrida artificialíssima no computador torna o tempo para os 100 metros rasos estabelecido pelo fenômeno Usain Bolt irrisório, sob outra égide as “conquistas” dos compositores voltados à eletroacústica e a tantas outras designações sempre em mutação, podem, para os mais talentosos, criar a imagem de que os andamentos e as dinâmicas são infinitos. Ao escreverem para um instrumento, em visitas temporárias, haveria essa possibilidade de analogia. Recordes terão de ser batidos, mas o “compositor” corre o risco, muito mais frequentemente do que se imagina, de ver sua obra apresentada em uma primeira e única performance. É só conferir programações especializadas nessa área.
Bem disse o Dr. Heitor Ulson que a atividade do pianista baseia-se em algo anti-natural, mas o intérprete se adaptou aos obstáculos que foram, paulatinamente, colocados à sua frente. Seria possível acreditar que, hélas, outras categorias degenerativas das articulações dos dedos surjam no futuro. À Ciência Médica, o desafio perene de saber enfrentar problemas novos.

I received many e-mails commenting on my hand surgery and wishing me a quick recovery. One of them — from the French composer François Servenière — was very special. Impressed by his knowledge of the subject and sensible remarks, I translated his message in its entirety, turning it into this week’s post and hoping his words will find their way into other musicians’ minds.

Um Compositor de Exceção

Capa do CD a ser lançado no dia 27/10/10. Clique para ampliar.

Encarna Carlos Seixas um estilo individual,
um estilo e uma estética portugueses,
diferentes da arte italiana, francesa, alemã, inglesa, espanhola ou polaca.

Santiago Kastner

The composers who have “made it”
into the repertoire since the mid 1800s,
from Josquin to Bartok,
have not done so merely because their music is of high quality,
but because it has had powerful support.

J. Peter Burkhouder

A História da Música nem sempre contempla, como mereceria ser, o verdadeiro talento. Pode ele permanecer como um verbete apenas nos grossos compêndios, e pouco se faz no sentido de ser dado o devido lugar ao ilustre personagem. Há aqueles que se mantêm submersos durante séculos e que, ao serem redescobertos, causam estupor. Mas nem essa surpresa é salvaguarda para uma obra ser divulgada e interpretada. Outros fatores, possivelmente mais cruéis, impedem a circulação das composições em escala maior. Já mencionei várias vezes o fator geopolítico, a interferir na propagação de criações de autores do maior nível, que têm na penumbra um destino infortunado. Mercado a fazer valer o que “deve” ser ouvido, agentes e a submissão comprometedora de intérpretes frente à situação tornam o quadro desolador.
O curso O Som de Portugal que estará a ser realizado entre os dias 25 e 29 de Outubro na Casa de Portugal de São Paulo, ministrado pelo ilustre professor da Universidade de Coimbra, José Maria Pedrosa Cardoso, terá no dia 27 às 20 horas, após uma das conferências, meu recital a abordar uma panorâmica da música portuguesa. A Casa de Portugal e o Banco Banif tiveram a iniciativa de lançar um CD unicamente com música portuguesa. Após reuniões mantidas com o Prof. José Jorge Peralta e o Senhor António Reis Cardoso dos Santos representando ambas as Instituições, respectivamente, optamos por CD dedicado ao grande compositor conimbricense Carlos Seixas (1704-1742). O selo belga para o qual gravei álbum duplo com Sonatas expressivas do autor aquiesceu, e selecionamos 17, que integram o presente CD. É possível pois, através dessas Sonatas, compreender-se o enorme contributo de Carlos Seixas para a música portuguesa e universal. O texto foi confiado ao professor visitante Pedrosa Cardoso e a masterização para tal empreendimento ficou a cargo da Sun Trip. A Universidade de Coimbra e a Câmara Municipal da tradicional cidade generosamente permitiram a reprodução das belas medalhas inseridas na capa e no fundo de caixa do CD.
Apesar do redescobrimento de Seixas nos anos 30, empreendido pelo notável musicólogo Santiago Kastner que, após ter a percepção histórica do imenso músico português, conseguiu ver suas Sonatas editadas na Alemanha pela B. Schott’s Söhne (2 volumes, 1930-1935), e bem tardiamente, 105 Sonatas pela Fundação Calouste Gulbenkian em Portugal (3 volumes, 1980-1992), e considerando-se o empenho da grande pianista Felicja Blumental, que gravou em meados do século XX inúmeras Sonatas de Seixas e outras obras de cravistas portugueses (vide Felicja Blumental – A Permanência Através de Horizontes Desbravados, 13/12/08), o compositor continua, imerecidamente, divulgado a conta-gotas. Uma injustiça se perpetra, inclusive através das mentes dos pianistas portugueses mais festejados fora das fronteiras lusíadas, que insistem em ignorá-lo, não propositadamente, assim gostaria de pensar, mas movidos pela pressão dominadora do mercado, que só reverencia o repertório repetitivo. Pouco a fazer. Outros intérpretes, mais fixados em Portugal, têm dado valor expressivo à muitas obras de Seixas, executando-as e buscando as gravações. Tenho absoluta convicção que muitas das Sonatas de Carlos Seixas para teclado não estão, a rigor, abaixo da qualidade de seus ilustres coetâneos, mormente Domenico Scarlatti (1685-1757). Algumas dessas criações seixianas ultrapassam inclusive, na ousadia, o extraordinário compositor napolitano que viveu alguns anos em Lisboa a servir a corte portuguesa e a privar da amizade de Carlos Seixas.

Capa do álbum duplo lançado pelo selo belga De Rode Pomp em 2004. Clique para ampliar.

Para o CD, o texto do encarte, redigido por Pedrosa Cardoso dimensiona Carlos Seixas no seu tempo. A inserção de parte considerável do escrito se faz necessária, pois pensada por um sensível estudioso do compositor coimbrão: “O nome de Carlos Seixas é um dos mais registrados na discografia portuguesa e corresponde a um compositor que viveu apenas 38 anos na primeira metade do século XVIII. No seu tempo viviam nomes cimeiros do barroco musical, tais como A. Vivaldi (1678-1741), J. S. Bach (1685-1750) e G. F. Haëndel (1685-1759). Estes compositores não se encontraram pessoalmente, mas suas obras não passaram despercebidas e serviram mesmo de modelo mútuo. O italiano Vivaldi morreu em Viena e muitos dos seus concertos foram publicados na Holanda. Haëndel, coetâneo e quase conterrâneo de Bach, afirmou-se na Itália e nacionalizou-se inglês. Bach copiou e ‘parodiou’ muita música de Vivaldi e admirou a música do seu coevo Haëndel.
Na mesma época, e provavelmente sem conhecer aqueles nomes, Carlos Seixas nasceu e estudou em Coimbra, nunca tendo saído de Portugal. À sombra da Sé Velha e da Universidade, teve apenas por mestres seu pai, o organista titular proveniente de Tomar, e Fr. Nuno da Conceição, um trinitário lisboeta, lente de música e Mestre de Capela da Universidade. Herdando o cargo do pai aos 14 anos, emigrou pouco depois para Lisboa onde, aos 16 anos, tornou-se organista da Igreja Patriarcal. Sua troca do Mondego pelo Tejo só se pode explicar pela sua ânsia de horizonte: a música, como outras artes, estava a fazer de Lisboa uma grande capital europeia: ali haviam chegado já vários músicos italianos, entre eles Domenico Scarlatti, o famoso mestre da capela papal, que trocou Roma por Lisboa, certamente à custa de condições salariais de exceção, graças ao poder mecenático de D. João V e, indiretamente, ao ouro do Brasil.
O jovem Seixas chegou, convenceu os melhores, assimilou as correntes estilísticas da Europa e venceu como executante e compositor. Barbosa Machado, que o conheceu de muito perto, fala de uma produção excepcional, que se perdeu na sua maioria, certamente devorada pelo terremoto de 1755. Mesmo assim, Carlos Seixas é um dos maiores vultos do período barroco português e um dos mais notáveis na história da música em Portugal. Para além de três significativas composições para orquestra e algumas excelentes peças corais, conhecem-se dele mais de uma centena de sonatas para instrumento de tecla. Algumas dessas sonatas, também chamadas tocatas, parecem adequadas ao órgão; outras, todavia, têm claramente carácter de música para outros teclados. Atribui-se habitualmente esta produção de Seixas ao cravo, instrumento que o jovem compositor deve ter praticado e ensinado na sociedade aristocrática de Lisboa; contudo, o carácter expressivo de algumas daquelas sonatas parece sugerir o clavicórdio ou até o fortepiano, como defende José López-Calo. De resto, as sonatas de Carlos Seixas, longe de dependerem, ou mesmo imitarem, a vasta e preciosa produção de Domenico Scarlatti, apresentam geralmente um estilo personalizado que, acusando de certo modo a tradição organística ibérica, possuem características inovadoras, sobressaindo não apenas o pendor para o estilo galante de muitas delas, mas sobretudo a sua dimensão de sonata em vários andamentos, com a inclusão frequente do minueto”.
Urge a divulgação maior da obra para tecla de Carlos Seixas. Apesar das vaticinadoras palavras de Santiago Kastner em seu livro sobre o compositor (Carlos de Seixas. Coimbra, Coimbra Editora, 1947), o músico conimbricense continua não devidamente visitado em Portugal e no mundo. Escreve Kastner: “Quer a arte de Seixas ser manuseada com afecto e delicadeza. A querençosa bonança, a transparente boniteza desta música pode ser enquadrinhada com o gosto requintado do ‘connaisseur’ ou do provador selecto. Não é, a de Seixas, música para brutamontes, zânganos ou materialistas, outrossim, não pode servir aos que procuram brilho exterior, sensação, ‘thrill’ americano, cascada de sonoridades caleidoscópicas ou arranques emocionais de dionísica veemência. Não ! O mundo seixiano é mais recatado, mais propenso aos matizes pequenos e subtis. Com amor nos devemos aprofundar na frágil e sensível alma deste singular músico, decifrar as suas sonoras configurações, escutar as suas Sonatas, tal qual gozamos a contemplação de ternas miniaturas e preciosas iluminuras. E muita luz e alegria nos dará tamanho cravista, génio à sua maneira. E prestando atenção, saberemos algo acerca da alma musical portuguesa”.
O prezado leitor poderá ouvir, através do YouTube, seis Sonatas de Carlos Seixas que integram o CD em apreço, e a qualidade absoluta da escrita do grande mestre português poderá ser detectada.

In 2004 I recorded in Belgium a double CD entirely dedicated to the keyboard sonatas by Carlos Seixas (1704-1742), the great Portuguese composer born in Coimbra. From this CD I selected 17 sonatas for another CD, sponsored by the Banif Bank and Casa de Portugal in São Paulo. It will be released on 27 October after my recital at the Casa de Portugal. The CD booklet was written by the Portuguese musicologist José Maria Pedrosa Cardoso.