“Captar o Passado, Apreender o Presente, Pressentir o Futuro”

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Para mim, a criação musical não exige somente talento,
mas também, e antes de tudo, caráter, personalidade,
a certeza de que temos um caminho a seguir,
mesmo que modesto,
e que nada conseguirá nos tirar do caminho.

Serge Nigg

Quer-me parecer que um compositor deve ser,
antes de mais, um homem de cultura
que saiba traçar grandes linhas de força sobre o tempo.

Eurico Carrapatoso

Serge Nigg é compositor francês de grande mérito. Após estudos com Olivier Messiaen, conheceu René Leibowitz, que o introduziu na técnica do dodecafonismo serial logo após a Segunda Grande Guerra. Em 1946 escreve obra primordial, Variações para Piano e 10 Instrumentos, na qual teria pela primeira vez em França utilizado a técnica dodecafônica. A partir de 1950 se distancia da técnica serial, que seria, entretanto, tendência entre os jovens compositores. A partir dos anos 60, a utilização do dodecafonismo em Nigg estaria conjugado com a busca da beleza sonora, da estrutura impecável e da não concessão. Autor de composições reverenciadas e abordando vários gêneros, interpretado por músicos de primeira grandeza, foi professor respeitado no Conservatório Nacional. Prêmios e condecorações, assim como funções essenciais em instituições relevantes da cultura e das artes em França, marcaram a existência de Serge Nigg.
Em depoimentos que se prolongaram durante mais de dez anos (1998-2008), até os estertores da existência, Serge Nigg respondeu a inúmeras perguntas formuladas por Gérard Denizeau (Serge Nigg, compositeur – capter le passé, apprénder le présent, pressentir le futur. Entretiens avec Gérard Denizeau. Paris, Université Paris-Sorbonne, Observatoire Musical Français, Série “Temoignages”, nº 3, 2010). A fazer parte da Collection Observatoire Musical Français, dirigido pela ilustre professora Danièle Pistone, o testemunho de Serge Nigg tem real valor, pois, através de um profícuo diálogo, o compositor revela qualidades inerentes do pensador e temáticas perpassam os depoimentos envolvendo aspectos musicais, humanísticos e da arte como um todo.
Aderiu com fervor à escritura serial dodecafônica. Exemplefiquemos para os leitores não músicos: foi a partir dos anos 20 que o atonalismo – liberdade frente à tradição tonal – se expandiu e avançou pelos países ocidentais. Um novo léxico musical ganhava força. Num breve resumo: existem doze sons na escala temperada ocidental. Tendo o piano como exemplo fácil de entendimento, encontramos sete notas brancas e cinco pretas. Schöenberg e seus discípulos partiram para o emprego de uma série de doze sons sem que houvesse a repetição de qualquer um deles na organização proposta. Dispostos pois sequencialmente, formavam o alicerce de uma obra em sua essência. Nigg, na sua juventude, entusiasma-se com essa soma de mais cinco notas suplementares às sete da escala tonal. Como um dos exemplos dessa cartilha que obedecera, a recusa da repetição exata, como praticaram compositores barrocos e clássicos. Considera: “ignorava na época que a ‘repetição’ carregava a ornamentação”, princípio tão praticado nos períodos citados. Observa: “Schöenberg no fim da vida, compreenderia o caráter desumano de seu método”. Teria consciência mais tarde dos excessos produzidos pelo fanatismo a que tinha chegado, fazendo a crítica tardia a essa exacerbação que se apoderou de toda uma geração naqueles anos pós guerra, a entender como infortunado o músico que não aderisse às novas tendências.
Contrário a concessões e desconfiado de sucessos imediatos, Serge Nigg entende que há tênue fronteira, por vezes, entre obra prima e outra, medíocre. Ter ouvido obras de compositores que tiveram aceitação em suas épocas e muito bem escritas e, sob outro contexto, criações consagradas, mas desprovidas de originalidade, leva-o a pensar na diferença fundamental entre a arquitetura e a música. Naquela, a solidez é premissa, mesmo que esteticamente o edifício se apresente como um fracasso. Na música “grandes sucessos musicais poderão não satisfazer aos teóricos, da mesma maneira que uma disposição harmônica agradável aos olhos pode soar apenas aceitável. Em contrapartida, partituras impecáveis do ponto de vista escritural e das técnicas de composição podem muito bem atingir um miserável resultado sonoro”.
Por meio de metáfora, compara o ex-aluno que não consegue libertar-se do aprendizado à criança que, ao começar a ensaiar os primeiros passos, titubeia. Contudo, ao tornar-se maior, andará normalmente, ao contrário do eterno aluno. Defende a liberdade de expressão, mas observa: “o artista sabe, melhor do que ninguém, a que ponto o livre arbítrio é conquista perigosa; para apreciar a liberdade plenamente, deve ele ganhar uma certa serenidade, condição de sua realização como criador, na plena acepção do termo”. Conscientemente questiona o criador: “O que é o verdadeiro artista criador, a não ser aquele que conjuga o controle do instinto, a evidência do estilo, a recusa de soluções fáceis e, sobretudo, a originalidade do emprego de meios – mais que os meios em si – com uma afetividade profunda ? Mas sem a técnica, e se apenas subsiste a afetividade, a obra não existe”.
É cáustico ao abordar modismos. Entende perigosa a posição de tantos compositores e intérpretes que se preocupam com o que está vigente, numa alusão não apenas a procedimentos como à possibilidade material. Afirma: “Nenhum compositor poderá afirmar que sua música sobreviverá; mas, um método seguro para escapar da posteridade é seguir os ukases da moda. Ela passará seguramente, a música nesses termos também, enquanto, em outro contexto, a música pensada fora dos modismos conserva uma chance de se increver na história”. Torna-se um axioma para Nigg frase atribuída a Arnold Schöenberg e de “admirável consistência moral”, que poderia ser aplicada a todos os artistas criadores: “há meios degradantes de emocionar”. Serge Nigg combateria durante décadas aquilo que ele considerava a febril busca da reputação, a necessidade feérica de tantos, através da mídia, de agradar sob qualquer pretexto, contrapondo-se à reflexão: “apreciam-se melhor os raros oásis do gosto e da beleza que pagariam todo o resto”. Em outro contexto, comenta que novas gerações adoram julgar obras a partir da dificuldade que ela possa apresentar. Os depoimentos colhidos anos antes da morte encontram Nigg num espírito de síntese, a considerar a criação pelo essencial, independente da acolhida pública hostil ou favorável. Detém-se sobre a única questão que merece resposta: a obra traz alguma coisa para a música, para sua história, para a sua estética” ?
Sabemos que a música eletro-acústica é bem ventilada pela mídia. Apesar disso, merece por parte do público guarida bem discreta, se comparada à grande acolhida do repertório instrumental. Seria possível pressupor que o contato humano direto, geralmente inexistente, esteja a apontar as causas, mesmo que Festivais tenham público aficionado. Nigg observa “De minha parte, fui sempre totalmente alérgico à música eletro-acústica. Por temperamento, eu não a suporto: esse material é algo que me é perfeitamente estranho. Para mim, os sons eletro-acústicos são sons mortos, enquanto que nada me parece mais belo que o som do violoncelo, de um oboé ou de um violino. Por quê ? Pelo fato de serem sons fabricados pelo homem, produzidos por sua ação, e que ele pode modificar à vontade. Eis o que é um som vivo ! Sempre fui partidário da música instrumental pura, por gosto e temperamento. Acrescento que acredito extremamente grave que alguns possam imaginar que a música do futuro seja música de engenheiros com jalecos brancos, manipulando botões. A ideia da máquina intrusa e da ciência puramente especulativa na música, expressão a mais profunda do gênio humano, é uma noção que me aterroriza”.
Serge Nigg vê com cautela a proliferação de compositores, a acreditar que muitos jovens, ao sairem dos bancos escolares, já se consideram criadores. Para ele, todo grande compositor é um grande técnico, conhecedor profundo do métier. Saberá esquecer receitas adquiridas no aprendizado e terá sua linguagem, após consciente assimilação. O grande é, simplesmente. Considera que, se no passado conhecia músicos de todas as áreas, atualmente não existem senão “… compositores ! Diria que todos foram subitamente tocados pelas graças das musas” ! Cita Schöenberg, que afirmaria que, dos mais de mil alunos que teve durante cinquenta anos de ensino, dez teriam feito carreira. Destes, segundo Nigg, permaneceram Webern, Berg, Eisler, Zillig, Robert Gerhard e Skalkottas. Se considerarmos que apenas os dois primeiros podem figurar no firmamento dos ‘grandes compositores’, tem-se algo para reflexões”. E dessa quantidade abusiva de compositores hoje, conclui: “Quando um Festival especializado anuncia, como exemplo, ’80 criações mundiais’, tem-se frio na espinha”.
Serge Nigg tece instigante observação nessa ampla visão que a idade proporcionaria: “É necessário compreender que o compositor, ao atingir o crepúsculo, é um homem que consagrou quase todas as forças para construir um mundo abstrato, um universo sonoro que corresponde fielmente àquilo que ele pretendeu. Asseverou-se de estabelecer leis e respeitá-las, jamais cessando de observar que os frutos de seu trabalho o levaram a múltiplas interrogações. Combateu todas as tentações da fantasia que podem permitir derivações, mas sempre a ter em conta a impalpável palavra nomeada inspiração… e que nem sempre está disponível ! Seu caminho é de uma lógica inevitável, mas a que preço, a não ser o da solidão” ?
Após tecer admiração pelos intérpretes profissionais – “escuta segura, instinto musical, senso dos andamentos, infalibilidade rítmica, etc.”- Nigg comenta determinado tipo de compositor “É muito desagradável verificar homens desprovidos da mais elementar bagagem musical imporem a grandes executantes diretivas que eles não dominam sob qualquer hipótese”. Pormenoriza-se nesse caminho complexo, no qual experiências até bufas são aceitas, considerando-as como falsificação. Agrada aos snobs inconsequentes e à crítica incompetente”. É severo e convicto quando julga “Não sou contra certa forma de provocação, não me desagrada essa mexida nos hábitos do público habitual, mas não admitirei jamais que o gesto sagrado da criação artística seja ridicularizado, mormente quando a grosseira mistificação tem como única função dissimular a vacuidade do saltimbanco de plantão”.
A respeito da obra aberta é categórico. Sem condená-la, pois não se mostra ditatorial, acredita que obra esboçada, a ser completada pelo intérprete, não pode receber o status de obra, entendendo-se a sua compreensão desde o Renascimento. Desenvolve raciocínio lógico ao observar: “Que seria de um romance a ser completado pelo leitor, da estátua na qual tenhamos a liberdade de suprimir ou acrescentar um membro ? A grandeza de uma obra reside na aposta, que faz supor o acabamento”.
Sobre a tão decantada desacralização, Nigg diz que a palavra o irrita. “Desacralizar o quê ? A Arte, o artista ? A obra ou seu autor ? Na verdade, trata-se, de certa maneira, de tentativa de certos funcionários da ‘Cultura’ justificarem suas existências, suas atividades… eventualmente seus salários” ! Mostra-se implacável ao dizer que “acreditar que basta um pequeno toque de varinha mágica para esvaziar milênios de tradição, isso se chama utopia”.
A uma pergunta provocativa de Gérard Denizeau, responde a questionar “O que é na realidade progresso em arte ? Outra coisa concernente ao passado, bem entendido; mas podemos falar de um progresso em forma de qualidade ? Podemos fazer algo melhor do que o canto gregoriano, do que a Catedral de Chartres ou da Missa em si, ou mesmo Don Giovanni… ? Que haja obrigação de renovar-se o material, os meios técnicos; porém, os princípios de elaboração de uma obra, a história nos ensinou”. Seu pensamento se estende à necessidade de redefinição inclusive da finalidade da arte e, nesse raciocínio, seu vocabulário e sua sintaxe. Nesse permanente fluxo, que pressupõe movimento e evolução, Nigg questiona se é possível fazer-se melhor, sobretudo se forem pensados períodos históricos difíceis.
As posições precisas, onde não há espaço para o tergiversar, tiveram exemplo claro na sua postura quando participou de júris: “Não é fácil quando se é compositor, mas o essencial é não se referir ao seu próprio gosto, à sua própria estética. Haveria nesses casos um intolerável abuso de poder; pois, no desenrolar de sua carreira, o artista já terá de suportar a ditadura do gosto, do dinheiro, do comércio, da política, etc. Melhor não o intimidar já nos primeiros passos”.
Os depoimentos de Serge Nigg bem evidenciam o artista em sua avaliação autocrítica nos anos finais da existência. Compositor e pensador mostram-se amalgamados e a concessão ficaria rigorosamente soterrada. Ao dizer, no curso do longo depoimento de uma década, que “a abnegação é necessária, como a paciência, a perseverança, a coragem a toda prova, uma certa capacidade de suportar o isolamento físico e a solidão moral”, já não demonstraria qualidades inalienáveis que o tornaram um dos grandes músicos franceses do século XX ? Pouco a pouco, Serge Nigg compositor ressurge. É bom sinal.

Pormenores do Olhar

Desenho de Luca Vitali. Clique para ampliar.

Luca Vitali, pintor e amigo, faz uma série de perguntas ao me ver retornar à cidade bairro Brooklin-Campo Belo: “independentemente da música, o que mais teria marcado sua última viagem a Paris ? Interessa-me o cotidiano. Há muita diferença do seu tempo de estudante com o atual” ? Tem ele o dom de ver as palavras, e toda narrativa lhe interessa, pois possível de descrição através da imagem.
Perguntas desse teor forçosamente remetem-me ao passado. Recentemente, naqueles poucos dias de Janeiro-Fevereiro, não deixei de me lembrar dos anos de aprendizado. As muitas viagens à Cidade Luz, independentemente da música, como frisou o amigo artista, trazem recordações nostálgicas daqueles tempos de estudante, quando a cidade estava apenas a 13 anos do fim da Segunda Grande Guerra. Prédios, museus e estabelecimentos públicos cinzentos, muitos ainda necessitando de reformas profundas, o cotidiano longe das comodidades oferecidas nos dias atuais. Seria possível acreditar que o meu olhar era também outro. O necessário excesso de estudo, a insegurança frente à vida, a concorrência pianística naqueles tempos de preparação para os concursos internacionais, a busca incessante pelo conhecimento teórico-musical e cultural mais abrangente, a solidão, todos fatores que influenciavam, certamente, o julgamento. Do que mais gostava era o desabrochar da primavera, quando daqueles galhos retorcidos nasciam folhas de um verde único e flores que o olhar guardou; ou, no sentido oposto, o desnudamento dourado no início do outono, quando as calçadas ficavam multicoloridas. O Parque Monceau, bem perto de onde morava, continua a ter a vocação para abrigar essas mutações. Mensagens serenas da natureza em transformação são inesquecíveis, pois sempre levam à paz interior.
Reiteradas vezes escrevi sobre minhas amizades absolutas, que estão a se prolongar há mais de cinquenta anos. Basta uma possibilidade de estar em Paris e o reencontro com todos se transforma num verdadeiro hino amoroso.
Luca questiona: “E o cotidiano, transporte na cidade, houve muita alteração” ? Começaria por um trem que pegava na chamada Gare du Pont Cardinet, não distante da Gare Saint-Lazare, e que atravessava parte da cidade. Para ir ao curso matutino da legendária Marguerite Long tinha de pegá-lo, pois me deixava bem perto da Academia da notável pianista e pedagoga. No inverno era bem difícil ficar à espera na manhã escura e varrida, por vezes, por ventos gélidos. Mas fazia parte do aprendizado. Ficara-me a impressão, àquela altura, de um povo meio soturno nos meses frios.
Contudo, a diferença maior que sinto quando vou a Paris é quanto ao povo que frequenta o metrô. Naqueles tempos, estou a me lembrar de uma grande maioria de franceses, mas era menos numerosa a presença de oriundos. Norte africanos, mormente argelinos. O cotidiano é implacável e difícil é esquecê-lo quando a atenção ou curiosidade levam à observação mais atenta.
Nos espaços de tempo que variam de dois a quatro anos, períodos que separam minhas idas a Paris, é possível perceber transformações que se mostram tênues para o viajante de passagem, e quase que imperceptíveis para o parisiense, pois elas se apresentam diariamente, não havendo, pois, recuo temporal para melhor avaliação. Sempre a ter o metrô como referência, cresceu imensamente, aos meus olhos, o afluxo dos povos da África e da Ásia, principalmente descendentes das ex-colônias francesas, assim como do Extremo Oriente. Como curiosidade, ao pegar na super movimentada Gare St. Lazare, entroncamento de tantas linhas, o metrô com destinação a St.Ouen, uma surpresa. Cerca de 90% pareceram-me desses continentes. Podia-se perceber que pertenciam a vários países, sendo que os mais jovens tinham possivelmente nascido em França. Muitos eram estudantes, havia professores também. Os alunos, de tantas raças distintas, conversavam descontraidamente em voz alta e era possível notar diferentes acentuações quanto à língua francesa. Tentei me concentrar nas falas e estranhei a quantidade de palavras fora do dicionário dito culto. Disseram-me mais tarde que há, nas várias raças que habitam a cidade, quantidade de termos que passam a frequentar a conversa do povo. Numa percepção outra, deu para sentir pessoas mais apressadas, a correr para seus compromissos. Ou não percebera antes, ou a idade faz com que tenhamos outra dimensão do tempo.
Naqueles anos juvenis era considerável a parcela de leitores de livros de bolso baratos. Foi uma das impressões que ficaram. Continua-se a ler na extensa rede metroviária parisiense. É questão cultural. Também não me esqueci da própria figura dos longínquos anos, “espelhada” no vidro da janela do metrô, quando nos túneis escuros. Questionava-me sobre passos futuros, e aquele imagem refletida parecia estar a me dizer para sempre continuar. Sentado, entre divagações, voltava à sempre leitura. Cinco décadas passaram e eis-me novamente diante da realidade desse “espelho”. Em poucos segundos, frente à porta, faço um resumo de mim mesmo. Em outro contexto, na prática ainda não havia em Paris a proliferação dos grafiteiros que inundaram o metrô de tantas cidades. Hoje essa espécie de vandalismo já se apresenta e os “espelhos” exibem excessivos rabiscos. Nos longos subterrâneos onde os vagões deslizam, paredes grafitadas, muitas delas com palavras obscenas, inclusive em português !!! Tempos outros.
Estamos habituados a ver mendigos e pedintes em nossas ruas paulistanas e, nos semáforos, aprendizes de acrobatas. Há presentemente, em locais precisos de Paris, imigrantes sentados nas calçadas pedindo esmolas. Ao passar lentamente por vários deles, que estavam a dialogar com conterrâneos, ouvi acentos eslavos, mas confesso que não saberia dizer a procedência. Como transitei vários dias pelos mesmos locais, lá estavam os personagens, exatamente nos lugares por eles escolhidos.
As livrarias parisienses chamam-me sempre a atenção pela diversidade, e preços médios são constantes em edições, tantas vezes primorosas. Elas proliferam pelos bairros, o que é salutar. Adquiri alguns sobre música e aventuras. Livros de bolso com papel reciclado têm tido uma grande guarida e não me pareceram caros. Em contrapartida, comprei, para um jantar oferecido por amigos, garrafas de um vinho chileno bem comercializado em São Paulo. É de pasmar, custava E$ 6,50 a garrafa, sendo que em supermercado bem conhecido de nossa cidade o preço ultrapassa os R$ 34,00 !!! Para chegar à França, a nobre bebida atravessou todo o Atlântico !!! E já houve críticas de governantes à campanha diária e essencial de uma de nossas emissoras: “Brasil, o país dos impostos” !!!
Observar o cotidiano tem interesse. Regressos à sempre belíssima Paris despertam incondicionalmente novas reflexões. Aprendemos com esse revolver permanente, balanço dos acúmulos. São estes que tornam o envelhecer, a depender das individualidades, um outono onde as folhas douradas podem representar a diferença.

During my recent visit to Paris, I couldn’t help comparing the place where I lived in the fifties with the city as it is today. Impossible not to sense how it has changed. I was impressed by the influx of immigrants – mainly Africans, Asians and Eastern Europeans – and by the changes the ethnic composition of the city has undergone in just half a century. But something has not changed: it is still the “city of light”, fascinating and incomparable.

“Do que eu Falo Quando eu Falo de Corrida”

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Desde que o tempo teve início
(me pergunto quando foi isso),
vem se movendo adiante
sem uma pausa para descansar.
E um dos privilégios concedidos
àqueles que evitaram morrer jovens
é o direito abençoado de ficarem velhos.
A honra do declínio físico está esperando,
e você precisa se acostumar com essa realidade.

Haruki Murakami

Reiterada vezes tenho escrito sobre tema que me é caro e me envolve inteiramente. A corrida de rua hoje faz parte de minha respiração. Já há cinco anos me dedico três vezes por semana aos treinamentos de 6 a 10km, faça frio ou calor, chuva, vento ou bom tempo. Foi com imensa alegria que recebi de José Reynaldo Figueiredo, Diretor Cultural da Corpore, empresa que organiza inúmeras corridas pelo Brasil, o livro de Haruki Murakami “Do que falo quando eu falo de corrida” (Rio de Janeiro, Objetiva, 2010). A narrativa de Murakami foi um dos livros que levei para leitura durante os longos vôos noturnos São Paulo-Paris-São Paulo e as viagens de comboio Paris-Gent-Paris.
Haruki Murakami, nascido em 1949, é um dos mais destacados romancistas japoneses. Proprietário de um bar onde se ouvia jazz, a certa altura, sem desprezo pela atividade, começou a escrever e vendeu o estabelecimento. Surgia em 1982 o romancista que se tornou conhecido mundialmente, traduzido em 38 idiomas. Iniciava naqueles anos oitenta uma outra atividade, que o empolgaria para sempre: a corrida de longas distâncias. Mais de duas dezenas de maratonas percorridas e participação em vários triatlos norteiam a vida de Murakami nessa atividade praticada quase todos os dias, em extensões não inferiores aos 10km. Ao decidir escrever sobre suas experiências como corredor, o autor consegue não apenas passar ao leitor o sentido fulcral de uma preparação, como mostra analogias entre os atos de escrever e de correr, para o primeiro entendendo-se como premissa o talento e mais a concentração, perseverança e disciplina corroborando o treinamento permanente. Predisposição física e as qualidades apontadas devem integrar a vida de um corredor de longa distância, termos sempre repetidos por Murakami.
O livro do escritor nipônico tem interesse e respeitabilidade. O tempo dos percursos não tem tanto significado como o completar bem uma prova. O que lhe importa de fato é desempenhar plenamente as duas atividades. Tóquio, Boston, Nova York, Honolulu são algumas das cidades que sentiram os passos de Murakami. Continuar a correr tem implicações, “mesmo que meu tempo na corrida não melhore, não há muito que eu possa fazer a respeito. Fiquei mais velho, e o tempo cobra seu tributo. Não é culpa de ninguém. Essas são as regras do jogo”. Compreende a grande vantagem da corrida, pois não há a necessidade de basicamente nada, nenhum objeto outro para o desempenho, tampouco da fala, característica dos esportes coletivos. Se pensa enquanto corre, admira os longos quilômetros de silêncio interior, quando se deixa levar pelas passadas ritmadas, mas com a mente naquilo que ele nomeia vácuo. Entende que a corrida o ajuda a “descobrir que tipo de romance vou produzir em seguida”. Comenta, “milagre talvez seja exagero”.
Uma única vez correu a ultramaratona, prova de 100km. Deu-se a prova no lago Saroma, em Hokkaido, em Junho de 1996, quando Murakami contava 47 anos. Não estava preparado, pois era maratonista dos 42.195 metros. Sua narrativa viva e pragmática faz o leitor acompanhá-lo em toda a trajetória. Ao atingir a marca da maratona pensa ainda no que lhe falta correr. Há mesmo certo humor quando, a partir dos 50km, após breve parada de descanso para os corredores comerem pequeno lanche e beber água, prossegue com outro par de tênis, pois seus pés começavam a inchar. Conversa com seus músculos. Preparados para a maratona, não estavam adequadamente treinados para tamanho esforço e começaram espaçadamente a falhar. Murakami pena, mas continua. Um mantra é insistentemente repetido nos últimos vinte quilômetros “Não sou humano. Sou uma máquina. Não preciso sentir coisa alguma. Apenas seguir em frente”. A mente a comandar o que resta de energia. Jamais andou em uma corrida, sentindo até certo desprezo por esse procedimento, o que pareceria evidente nas entrelinhas da narrativa. Sofre a correr e assiste a outros competidores ultrapassando-o. Segue conversando com seus músculos, a fim de que obedeçam sua mente. Enfim completa, exausto, em onze horas e quarenta e dois minutos. Reconhece o grande desafio cumprido.
O running novelist, como foi denominado, detém-se nos treinamentos. Seus métodos individualizados, os pequenos prazeres em cruzar com outros corredores, em particular uma jovem bonita com quem jamais conversou, apenas trocavam sorrisos; todos são aspectos que corroboram o verdadeiro prazer de correr. Nas várias competições, verificar rostos de tantas outras corridas também lhe dão prazer. Observar as estações com os olhos de um amante da natureza, folhas outonais douradas a cair, esquilo que grimpa célere uma árvore em direção ao ninho, as colorações das águas de rios, lagos e mares, vacas mastigando, montanhas, sol, nuvens e chuva, neve e vento, todos esses elementos Murakami aprecia durante seus treinamentos, quando vácuo e ideias estão também compartimentados. Paradoxalmente em corridas, quilômetros antes do final, “reduzo o mundo sensível aos parâmetros mais estreitos. Tudo o que posso ver é o chão três metros adiante, nada além”. Paisagens e cenas bucólicas são esquecidas, pois importa-lhe apenas vencer os três metros seguintes.
O romancista-corredor têm consciência de que muito do que escreve sobre corrida é vivenciado por parte considerável dos atletas. Considera estimulante tantos outros numa prova, “mas é muito difícil não dar tudo que você pode numa corrida, tentar segurar um pouco. Estar cercado por outros corredores tende a exercer uma influência em você”. Entende o passar dos anos, mas “ficaria feliz se a corrida e eu pudermos envelhecer juntos”.
O livro de Murakami torna-se essencial, na medida em que foge dos preceitos – tantas vezes extraordinários – de especialistas e treinadores. Tem ele seu método preparatório e não luta contra o relógio, apesar de mencionar tempos. Apreende bem o passar dos anos e essa assertiva é transferida mormente para os triatlos, quando a idade faz a diferença mais acentuadamente. Pelo fato de ter o dom – talento, como diz – da escrita, sensações, possíveis desalentos, entusiasmo, ansiedade antes de qualquer corrida, todos esses aspectos são transmitidos com naturalidade, quiçá humor, e agradam ao leitor.
Curiosamente, mesmo nos momentos mais estressantes de uma corrida, não anda. “Nunca cheguei perto de caminhar. Essa era a regra. Se eu quebrasse uma de minhas regras uma vez, poderia quebrar muitas mais. E se eu fizesse isso, teria sido quase impossível terminar uma corrida.” Não por outro motivo gostaria de ver inserido o seguinte epitáfio entalhado em seu túmulo:

Haruki Murakami
1949-20**
Escritor (e Corredor)
Pelo menos ele nunca caminhou

Finalizava o post do excelente livro de Haruki Murakami quando recebi, através de meu amigo Elson Otake, outro maratonista de fato, um troféu de nossa equipe CORRE BRASIL. Cada corredor pode inscrever-se por duas equipes e se a TA LENTOS é formada por seis nisseis e outros dois e nos reunimos num prazer indizível para as provas de revezamento, a CORRE BRASIL é científica, muito bem dirigida pelo Professor Augusto César Fernandes de Paula. Tem dezenas de participantes, alguns maratonistas de respeito, entre eles Elson. Recebo conselhos preciosos de vários participantes para manter-me em forma nessa busca incessante pelo aperfeiçoamento. No dia da premiação estava na Europa, mas fiquei muito feliz pelo troféu, que ficará também sobre meu piano de estudos. Um lembrete: até agora, jamais andei em uma corrida de rua.

JEM. A foto do troféu. Clique para ampliar.

Comments on the book “What I Talk About When I Talk About Running”, by Haruki Murakami, the acclaimed Japanese writer, marathon runner and triathlete. In addition to helpful hints about trainings and methods, Murakami explains the importance his running has for his literary activity, since it gives him discipline, physical strength and even new ideas for his writings.