Quando a Redescoberta é um Tesouro

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Aqueles que se percam no caminho,
que importa ! chegarão no nosso brado.
Porque nenhum de nós anda sozinho,
e até os mortos vão ao nosso lado.

José Gomes Ferreira (Jornada)

Foram tantos os posts em que o sonhador visualizou o horizonte, certo de que atrás da linha imaginária tesouros estavam a ser desvendados. É bem provável que o jovem que se apresentou no Teatro Municipal de São Paulo em 1962, após longo período a estudar em Paris, já estivesse convicto de que tínhamos um iceberg submerso a ser explorado. Entendeu todavia, ao tocar pela primeira vez no Brasil a magistral Sonata para piano em Sol Maior de Tchaikovsky, recados precisos. A crítica, publicada dias após em jornal renomado e escrita por um músico que o jovem respeitava e continuou a admirar, apontava para o porquê de se revelar obra bem sepultada. Esse fato apenas ratificou tendências que se acentuariam com o passar dos anos. Tantas foram as obras apresentadas – desconhecidas do grande público – a partir de então. O inusitado não modificaria a maioria das consciências habituadas à mesmice. O sonhador ainda acredita que um dia a pouca oxigenação repertorial seja sentida pelo público. De que maneira? Após tantas décadas, já não saberia responder. O sonho acalentado na década de 60 será perenemente individual, mas, tenuemente, projetos de intérpretes conscientes, que almejam a renovação, tornam-se realidades, inclusive na divulgação de compositores da contemporaneidade.
A senda trilhada tem seu desafio maior na desconfiança ou incompreensão da maioria. É muito difícil a mudança de mentalidades relativa ao repertório pouco frequentado do passado e ao do momento atual. A troca de hábitos não surge espontaneamente, tampouco à força. Será necessário muito mais. Glorificar o sacralizado é fundamental, mas jamais o único caminho. Até que haja a mescla como ato natural, sem falsa benevolência, por parte das sociedades específicas, empresários e intérpretes, visando ao convívio constante do tradicional com o repertório ignoto de nível altíssimo, viver-se-á a parcialidade e… o empobrecimento cultural.

JEM e Lopes-Graça. Foto e verso. Sintra, Castelo dos Mouros, 19/07/59. Clique para ampliar.

A nova digressão terá início neste mês de Maio em curso. As obras de Fernando Lopes-Graça já me fascinaram anteriormente, desde a primeira impressão, quando o Mestre nascido em Tomar convidou-me, no longínquo 1959, para um primeiro recital em Lisboa. Ofereceu-me duas peças que apresentei no recital: Em Alcobaça dançando um velho fandango, das Viagens na Minha Terra, e Dança Antiga, das Bagatelas. Os dois manuscritos autógrafos, que conservei com carinho, estarão a ser entregues pessoalmente pelo intérprete ao Museu da Música Portuguesa quando dos recitais em Cascais. Ficarão no lugar devido. O Professor Catedrático de Sociologia da Música na Universidade Nova de Lisboa, Mário Vieira de Carvalho já observava a respeito dessa imensidão que é Lopes-Graça: “Há sempre uma nova perspectiva que antes nos escapara, uma nova dimensão por descobrir. Expostas à sua própria apropriação pelos intérpretes e pelos ouvintes, revelam a cada passo facetas diferentes, num processo permanente de historicidade imanente. Não são conclusas, no sentido em que cada audição nos devolvesse aquilo que nelas reconhecemos como familiar. Pelo contrário: cada nova abordagem, sobretudo por um novo intérprete, faz delas outra coisa. Suscitam um processo inconclusivo e inesgotável de conhecimento. Eis o que faz a diferença em Lopes-Graça e que o torna, cada vez mais, com o decurso do tempo, um grande compositor, um grande nome da história da música”. Não seria a minha admiração crescente pela obra de Lopes-Graça essa ebulição que se processa a partir de um maior conhecimento de sua criação? Quão mais estudo suas composições, mais aumenta o meu fascínio pela construção musical do autor. Quão mais conheço sua imensa obra literária, mais entendo ser Lopes-Graça um dos grandes pensadores portugueses do século XX.
O projeto que resultou nessa digressão encerra obras basilares de Fernando Lopes-Graça: Cosmorame (1963), Música para Piano para Crianças (1968-1976), a integral das Músicas Fúnebres (1981-91) e Canto de Amor e de Morte (1961). Já apresentara Cosmorame em 2009 durante a tournée por Portugal. Estará presente no álbum duplo de CDs que estarei a gravar na capela de Sint-Hilarius, em Mullem, na planura flamenga, entre os dias 13 e 15 de Maio, e que conterá as outras três obras mencionadas. Quanto às Músicas Fúnebres e Canto de Amor e de Morte, mantêm-se inéditas até o presente. Brevemente, a conferência que apresentarei em quatro cidades portuguesas, pormenorizando-me nos processos criativos de Lopes-Graça na elaboração do repertório em questão, estará à disposição no item Essays do site. Comunicarei aos leitores quando da inserção. Todavia, o texto de 2006, Piano sem Fronteiras, publicado on line pela Fundação Gulbenkian de Lisboa, encontra-se nos Essays.
O compositor, regente, pianista e escritor teve corajosa posição política durante todo o salazarismo, fato este que o levou a várias situações complexas. A sua não posse junto ao Conservatório Nacional devido à posição ideológica, a insistência em apontar totalitarismos, as canções de protesto, a militância política, as passagens pelas prisões do regime, o ter sido monitorado pela PIDE – Polícia do Regime -, todos são episódios que dimensionariam a criação composicional de Lopes-Graça. Sob outra égide, teve sempre a liberdade de escolher seus credos musicais. Elegeu seus compositores preferidos e, entre estes, Bela Bártok e Stravinsnky são importantes. Amou o povo como poucos, a preferenciar aquele habitante da aldeia e seu cancioneiro, os folguedos populares e as manifestações religiosas das comunidades campesinas. Dir-se-ia que o abstrato que provoca forte impacto e o paisagismo físico-espiritual frequentam o pensar de Lopes-Graça. A dimensão universal viria dessa fusão absoluta das tendências musicais existentes, mais o seu interior enriquecido pelos acervos que a vida lhe proporcionou.

Desenho de Luca Vitali. Maio, 2010. Clique para ampliar.

Interessou-me, após a gravação para o CD Viagens na Minha Terra de 2003 para o selo Portugaler, em que constavam unicamente obras de Lopes-Graça, essa atração pela morte, uma das fixações. Considere-se que duas das obras que serão apresentadas em primeira audição, Canto de Amor e de Morte, um ápice na criação portuguesa de todos os tempos, e a integral das Músicas Fúnebres, nove tributos a amigos que partiram, apresentam características a deixar evidente um idiomático técnico-pianístico do compositor, fixado, em parte, em seu de profundis desde os anos 30. O leitor poderá ouvir Três Epitáfios de 1930 ao clicar nos links no final do texto. O tríptico já não seria uma antevisão da mors certa hora incerta? Gravei-o em Leiria para o CD mencionado do selo Portugaler. Intriga o terceiro epitáfio, Para o Autor. Cosmorame , em suas 21 peças, torna bem transparente a intenção de Lopes-Graça de ver a união dos povos. Música de Piano para as Crianças é a síntese da síntese de um piano voltado ao miúdo em seus primeiros passos.
Atravessar novamente esse Atlântico e novamente poder estar no interior da Capela Sint Hilarius, sob a supervisão do incomparável engenheiro de som Johan Kennivé, e deixar registradas essas quatro composições de Lopes Graça gratificam as décadas de dedicação amorosa à música. Sint-Hilarius várias vezes percorreu outros posts. É a magia incrustada na Bélgica flamenga. Deslocar-se após as gravações para Portugal, percorrendo-o do Minho ao Algarve a interpretar essas quatro criações do Mestre de Tomar, torna-se raro privilégio.

On my 2010 concert tour in Portugal in May-June I’ll visit Lisboa, Évora, Tomar, Cascais, Lagos, Portimão, Lagoa and Braga. The recitals will present works by one of the main Portuguese composer of all times, Fernando Lopes-Graça: Cosmorame (a series of piano pieces fostering the friendship among countries), Música de Piano para as Crianças (Piano Music for Children), and the world premiere of Canto de Amor e de Morte (Song of Love and Death) and Músicas Fúnebres (Funeral Music).

Clique para ouvir os Três Epitáfios, de Fernando Lopes-Graça, com J.E.M. ao piano:

1. Para um céptico
2. Para uma donzela
3. Para o autor

Quando o interesse se mostra sensível

Corpore. Friendship Day, Corrida da Amizade. 25/04/10. Foto Elson Otake. Clique para ampliar.

L’hypocrisie est un hommage que le vice rend à la vertu.
La Rochefoucauld (1613-1680)

O recente post Dia Mundial e Outros Dias recebeu inúmeros comentários. Houve consenso quanto à manipulação que se faz de todos esses Dias Mundiais ou, simplesmente, Nacionais. Entenderam os prezados leitores que se chegou a um ponto de total desrespeito pela cidadania como fim. O homem deixou de ser um epicentro para tornar-se objeto periférico manipulado à mercê de forças globalizantes cada vez mais poderosas. Já não mais conta o almejar a elevação cultural, espiritual ou do Ser como Ser. A superficialidade inunda mentes preocupadas com o lucro, o poder e a visibilidade. E perde-se o rumo. Como um rebanho de qualquer espécie animal, a coletividade humana é conduzida para fins inesperados devido à incúria administrativa e à corrupção pública e privada, a tudo contaminar. A tragédia que, hélas, já integra o cotidiano do cidadão mostra-se a cada instante mais visível. As avalanches em Angra, Niterói e Rio de Janeiro não são a certeza de que governantes como um todo não se preocupam minimamente com a desgraça da população, desespero sabidamente anunciado? Todavia, a mídia adora focalizar rostos dos mais infortunados. O que aconteceu devido aos aguaceiros deverá repetir-se, pois dentro de alguns dias ninguém mais falará da hecatombe. A degradação ambiental não é uma dessas tristes resultantes? Mas os Dias Mundiais ou Nacionais continuam a dar a impressão que em certa data, determinada parcela da humanidade continuará a ter a “aparência” da felicidade. Só faltam o Dia das Tragédias Ambientais e o Dia da Tragédia Humana. Honoré de Balzac (1799-1850), com sua Comédie Humaine, deveria ser ungido profeta. Será possível até entender que o cinismo governamental crie tais efemérides.
De Belo Horizonte, Mônica Sette Lopes considera com propriedade: “Não desconheço as raízes, a história que justifica o dia naquele dia (os vários dias), especialmente do 08 de março – o da mulher. Tudo transformado num para inglês ver (ou num para esconder). Propaganda. Parafernália. Palavras ocas. Capa e vazio. Só um exemplo, este. Pouca paciência com dias nacionais em geral”.
Maria de Fátima Pereira escreveu-me de Goiás: “Gostei muito das colocações. Meus colegas no escritório leram o texto a meu pedido. Conversamos muito depois disso. É irritante a televisão mostrar sempre que faltam tantos dias para a realização de um grande evento mundial. Um ano antes já anunciam diariamente ‘faltam x dias’ e heróis do passado são apresentados. Nas Olimpíadas, o Brasil envia delegação enorme de atletas que nada vão ganhar devido aos indíces mínimos de aprovação. Oba, Oba, Oba! Só que há uma certeza mesmo: mirradíssimas medalhas e nós, bobos, ficando emocionados. Pode ser? Vem o fracasso, atletas choram, repórteres e jornalistas descem a lenha nos dirigentes. Se um atleta constrangido e humilhado manda o recado é punido ! Os mandões, copos de whisky nas mãos, ficam quietos até o início de nova contagem de dias ‘esperançosos’. Os Dias do fracasso ficam mascarados como os farricocos. O Luca Vitali é um grande artista. Já vimos outros desenhos. Ele não desenha apenas. É genial e penetra nos textos com fantástica criatividade. Por que não falam nele? Só conheço os desenhos publicados no blog e aqueles do site que você tem no menu.”
Idalete Giga observa com acuidade o post. Seus instigantes comentários, bem mais incisivos do que aqueles por mim redigidos, evidenciam a realidade. Cá no Brasil, ou lá em Portugal, o problema é sentido. “Foi uma surpresa muito agradável ler o seu último texto ‘Dia Mundial e Outros Dias – Quando o Excesso Provoca a Desatenção’. Eu fiquei em expectativa quando me disse que ia inserir no seu próximo post as duas quadrinhas que lhe enviei. O querido Amigo compreendeu plenamente a mensagem que eu quis transmitir. Luca Vitali, sempre criativo, foi muito para além do que eu podia imaginar. Expressa, de forma genial, outro dia de coisa nenhuma com um desenho em que não falta a ‘garrafa de champanhe’ com a rolha saltando em jacto, para comemorar a 1ª Feira do dia 30 de Fevereiro de 2010!!!! Ele tem um profundo sentido de humor. Dê-lhe os meus parabéns por ter também descoberto um ‘novo dia’ – O dia D de coisa nenhuma!
Os dias mundiais disto e daquilo arrastam consigo uma grande dose de hipocrisia: Exs: Dia Mundial do Ambiente = (hoje que ninguém polua o planeta, mas amanhã já podem sujar à vontade!!!); Dia Internacional da Mulher = (hoje que ninguém maltrate a mulher, nem com um cabelo, mas amanhã ela pode continuar a ser escravisada, maltratada, abusada, etc !!!!); Dia Internacional da Criança = (hoje que se cumpram na íntegra Os Direitos da Criança, mas amanhã ela pode continuar a sofrer todos os desvarios dos adultos ); etc, etc. Tal como o José Eduardo afirma, amanhã já ninguém se lembra de coisa nenhuma. Para que servem então os dias mundiais? Certamente, para alimentar a hipocrisia humana que não tem limites….
A segunda quadra é a canção do Tudo, porque Tudo o que existe (visível e invisível) foi criação de Deus-Rei do Universo! Ele, sim, é que é digno do Dia Universal de Tudo quanto existe! O seu post terminou muito bem com este Hino ao nosso Criador!” Anteriormente já comentara a convicção espiritualista expressa de minha amiga alentejana.
Salomão de Mattos, de São Paulo, escreveu-me: “Em toda essa ‘Diarada’ que se conhece, não teria observado o professor que apenas os dias consagrados aos Santos da Igreja Católica são reverenciados, mas nunca esquecidos nos dias seguintes pelos devotos? Não estaria faltando a fé verdadeira em todas as nossas ações? Gostaria que o senhor pensasse a respeito. No resto, achei o texto bem elucidativo”.
Rosana Costa, também de São Paulo, enviou seu e-mail: “Adorei a parte que diz: ‘Faz lembrar o fluxo das vagas do mar, pois a cada onda esquecemo-nos da anterior’. Infelizmente quase tudo tem sido assim: escândalos e catástrofes. Depois da ‘onda’ da passagem do ano em Angra dos Reis, e mais recentemente ‘as ondas’ levando vidas no Rio, logo veremos nos noticiários outras ‘ondas’. Podemos lembrar da aflição da virada do século, o final do mundo no ano de 2000, e pensar qual a nova “onda’ !?!?! O novo final em 2012?“
É sempre bom se ter essa aferição em temas polêmicos. Evidencia que há mentes que entendem o drama que persiste neste século XXI motivado pelo descaso aos valores antes respeitados. A globalização se mostra sem rosto, invisível, encoberta pelo anonimato de dirigentes das grandes corporações privadas e seus acionistas. Numa outra fotografia, governantes se apresentam de rosto inteiro, mas a ocultar, com a hipócrita e perene negação aos males por eles produzidos, a grande chaga que corrompe o caráter. Nós, cidadãos comuns, estaremos à mercê do desvario. Todavia, esses senhores do infortúnio saberão encontrar um novo Dia. É tão fácil criá-lo… e esquecê-lo.
Redigi este post após regressar da Corrida da Amizade – Friendship Day, patrocinada pela Corpore. A amizade verdadeira não tem dia para ser comemorada, pois ela é perene. Meu bom amigo, o maratonista Elson Otake, tinha treinado 33km na véspera do Friendship Day, a visar à Maratona de Curitiba. Foi grata surpresa vê-lo de bicicleta, pouco antes da Corrida da Amizade. Durante todo o trajeto, Elson tirou inúmeras fotos do septuagenário corredor, que vestia integralmente o uniforme principal do glorioso Sporting de Braga. Descontração e alegria marcaram o evento.

Many readers of my last post (Nothing Day) submitted online comments with their views on the subject. I selected some messages and they are the post of this week.

Questão de Estilo

Fernando Lopes Graça a reger o Coro da Academia de Amadores de Música. Foto: Museu da Música Portuguesa. Clique para ampliar.

Et quand on pense que le désert n’a été créé qu’en vue de l’oasis…
Henry de Montherlant

O tema recorrente veio a propósito. Estando a me preparar para nova digressão à Bélgica e Portugal para o próximo Maio, referi-me, em pronunciamento em data festiva na Casa de Portugal em Março último, aos objetivos da viagem que tudo tem a ver com a criação em terras lusíadas. Falava eu do grande compositor Fernando Lopes Graça (1906-1994), uma das maiores figuras da cultura luso-brasileira em toda a sua história e um dos mais importantes músicos do século XX em termos mundiais. Dizia da grande importância de sua produção composicional e literária, de seu engajamento ideológico, que o fez recluso em várias oportunidades no regime salazarista, e de sua força de expressão extraordinária.
Cerca de um mês após conversava com o bom amigo Fernando Gouveia, jovem e ativo membro das comunidades luso brasileiras em São Paulo. Queria saber mais sobre Lopes Graça e deste meu interesse confesso em relação à sua obra que será, durante Maio, várias vezes mencionada neste espaço.
Considero realmente vergonhoso o desconhecimento que se tem no Brasil da chamada música clássica, de concerto ou erudita portuguesa. Existem correntes “intelectuais” brasileiras, nem sempre claramente expressas, que à força de uma aproximação mais intensa com outros países europeus, economica e estruturalmente em posição de maior destaque, minimizam expressamente o que vem de Portugal. Seria possível até supor que séculos de colonialismo e de imigração – no caso, referia-me à da primeira metade do século XX, que mais sensível e pejorativamente marcou mentes brasileiras – tenham estabelecido um tipo de couraça à criação portuguesa e proporcionado a minimização de muito conteúdo que vem de Portugal. Diminuem ainda expressamente a inteligência de um povo, mercê dessa imigração que se fazia necessária à altura e que, no seu todo foi uma das responsáveis pelo desenvolvimento de tantas áreas, sobretudo da economia brasileira.
Num outro enfoque, musicalmente teimamos no Brasil em repetir fórmulas atávicas, repetitivas ad nauseam, e nada se faz a respeito. Antes, ratificam-se tendências à maneira de um realejo e ficamos a ouvir sempre as mesmas obras, executadas basicamente pelos mesmos intérpretes. Trata-se de um forte empobrecimento. Uma grande musicista nascida em terras lusíadas já me escrevia recentemente de Lisboa, a afirmar que “A doença de Chopin é incurável”, ao referir-se à verdadeira histeria hoje reinante em torno do segundo centenário de Fréderic Chopin (1810-1849), grande compositor, mas não o único. Legião de pianistas, pátrios ou não, estão a inundar repertório chopiniano em nossas salas onde a música se faz ouvir, com composições que já desfilaram incontáveis vezes por seus dedos nessas últimas décadas. Sob outro contexto, assim como na música pop, idolatra-se o que é conhecido. Se Chopin é extraordinário, Robert Schumann também o é, tendo sido, inclusive, compositor extremamente mais diversificado ao escrever para piano, conjunto de câmara, canto e piano, orquestra… Frise-se, o centenário do tão imenso Robert Schumann (1810-1856), está a ser comemorado até discretamente.
No que tange à riquíssima produção composicional em Portugal, intérpretes portugueses bem ventilados fora de seu país preferem sedimentar-se no repertório sacro santo perpetrado per omnia saecula saeculorum nas salas de concerto de tantos países. Logicamente, Chopin será foco de seus interesses. Ignoram a existência da composição musical em Portugal. Felizmente, alguns outros notáveis mestres da interpretação em solo português têm buscado o resgate, e essa atitude é salutar e louvável.
Voltando ao tema fulcral, dizia a Fernando que a massacrante maioria de nossos músicos desconhece a criação portuguesa, do gregoriano à contemporaneidade. Nada se faz. Culpa existe, igualmente, das comunidades portuguesas, que não incentivaram ao longo de décadas a divulgação do repertório português, clássico ou erudito. É um fato. Todavia, louve-se em contrapartida a perpetuação dos conjuntos folclóricos de dança e música autênticos existentes em São Paulo, que preservam com dignidade costumes das várias regiões do belo Portugal, contrariamente a outras atividades pretensamente de raiz, que podem beirar o caricato e que ainda são acalentadas. Pouco a fazer nessa área, pois mentes têm de ser estimuladas para que o crescimento aconteça. Tem a comunidade de se penitenciar. Mas há esperanças quanto ao resgate. Importa, no que tange à música de concerto, que partituras eruditas cheguem às mãos de mestres pátrios conscientes. Haveria a necessidade de uma vontade luso-brasileira nesse sentido. Urge acrescentar que o fascínio por concursos de interpretação, com resultados muitas vezes estranhos, seduz definitivamente músicos em torno de repertório por demais executado, o que provoca a pouca oxigenação das mentes, pois o jovem já se atira à mesmice desde cedo. Importante esse repertório sacralizado? Reiteradas vezes afirmei que sim. Importante e fundamental, mas não único. Eu próprio percorri, durante decênios, incontáveis obras do repertório sacralizado, fazendo-o ainda hoje, homeopaticamente. Não visito com maior assiduidade a obra dos mais frequentados compositores, devido à massacrante perpetuação por parte da maioria dos intérpretes nesse segmento. Há outros fantásticos autores não visitados. Valeria uma comparação. Não houvesse existido no século XV o infante D. Henrique, que buscou antever o desconhecido a partir da Escola de Sagres, aspiração seguida por D. João II e o sucessor, D. Manuel I, teria Portugal permanecido sem sonhos voltados às terras desconhecidas intermediadas por mares assustadores.
De Portugal, compositores como Carlos Seixas (1704-1742); Marcos Portugal (1762-1930), que viveu cerca de 20 anos no Brasil e autor de significativa expressão, mas pouco estudado pelos músicos brasileiros; Francisco de Lacerda (1869-1934); José Viana da Mota (1868-1948); Luís de Freitas Branco (1890-1955) ); Jorge Peixinho (1940-1995) aguardam divulgação. Tantos outros autores sequer conhecemos. Quanto a Fernando Lopes Graça, acredito ter sido uma das expressões maiores do século XX em termos mundiais. O que dele se sabe no Brasil? Praticamente nada. O que dele se ouve em salas de concerto? Uma fração infinitesimal, mercê de pouquíssimos músicos que à sua produção têm um olhar atencioso. Em Portugal, o resgate para o mundo da grande produção composicional já se faz sentir através de inúmeras edições de suas obras e gravações significativas. Louve-se a publicação crítico-literária do autor, que está a merecer uma edição mais atualizada. Grava-se a sua criação e intérpretes portugueses de sensível expressão dedicam-se a apresentar as principais obras do grande compositor nascido em Tomar. Perguntou-me Fernando a respeito da música brasileira em Portugal. Mercê da absoluta diferença populacional, é natural que intérpretes do Brasil, toquem o repertório brasileiro quando no país de Camões. Contudo, não nos iludamos. Basicamente quase todo esse manancial concentra-se em Villa-Lobos, ficando reservado pequeno espaço a outros compositores aqui nascidos.
Se a literatura portuguesa sempre teve guarida entre nós, mercê de viagens constantes de nossos estudantes, durante séculos, à tradicionalíssima Universidade de Coimbra em especial, o mesmo não se deu com a música, pois nossos músicos, mais acentuadamente a partir da segunda metade do século XIX, buscaram o aperfeiçoamento na Itália, França e Alemanha, o que provoca, em certa medida, uma desproporção quanto ao conhecimento, no Brasil, das áreas literária e musical portuguesas.
O tema é fascinante. Merecerá outros posts, na medida em que sintamos a continuação dicotômica. Temos de persistir, e sociedades de concerto necessitariam tomar consciência de uma rica produção musical em terras lusíadas. É questão de vontade e bom senso.

On the eve of a new concert tour in Portugal, where I will perform works of the Portuguese composer Fernando Lopes Graça, I can’t help considering how shameful it is for us, Brazilians, to ignore the works of this outstanding artist and the Portuguese classical music in general. The reasons for this, I believe, are our tendency to think much of everything that comes from European core countries – like France, Italy and Germany – and the stubborn insistence of Brazilian performers on exploring basically a handful of celebrated artist so as to win the hearts of the audience, ignoring those that are little known. Before Portugal I will go to Belgium in order to record a double album entirely devoted to works by Lopes-Graça, some of them world premiere recordings.