Divagações sobre Arte

Mário Zanini. Vagão de segunda classe. Óleo sobre tela, 1969, coleção particular.

A mais linda flor
permanece oculta.

Adágio vietnamita

Peguei o ônibus para ir ao centro da cidade, o meio mais rápido neste trânsito complexo. Há os corredores, que raramente travam. Fora dos horários de pico encontram-se sempre lugares. A terceira idade ainda tem seus poucos privilégios, e os motoristas geralmente são amáveis para com idosos. Peço licença e sento-me ao lado de um cidadão a beirar os 40 anos. Começo a ler. “Professor, o senhor não se lembra de mim?”, indagou-me. Olhei-o e o reconheci. Após mútuas saudações e real prazer nesse reencontro, perguntei-lhe a respeito de seus caminhos após se formar. Estudara comigo durante a graduação na Universidade, no primeiro lustro de 80. Continuou seus estudos musicais na Europa durante muitos anos. Voltava de aulas que ministra junto a uma escola de música, não distante de minha casa. Há tempos gostaria de conversar com seu antigo mestre a respeito de repertório pianístico, pois é professor de piano e de matérias teóricas. Culto, contou-me a respeito de suas últimas leituras, assim como de partituras que gostaria de conhecer, distantes daquele repertório super frequentado. Lembrava-se ainda de minha insistência na busca de obras pouco conhecidas, mas importantes. Marcamos um encontro que se dará oportunamente, ocasião em que mostrarei composições a meu ver fundamentais e raramente visitadas por nossos intérpretes. Foram muitos os posts em que insisti nessa necessidade de redescobrir autores. Portanto, pouparei o leitor nesse quesito.
Contudo, a nossa conversa enveredou para o caminho da obra ignota do grande público, seja ela de qualquer ordem. Comentei que nos últimos meses recebera e-mails contendo anexos que exibiam belas fotos de quadros de pintores da Rússia Imperial, do romantismo europeu como um todo e de escultores franceses do século XVIII. Fiquei realmente impressionado pela singular qualidade desses artistas absolutamente dotados, mas desconhecidos do cidadão que aprecia tradicional e socialmente as artes. E-mails que me fizeram pensar nessa absurda situação que faz proliferar apenas o conhecido ou hiperconhecido, ou seja, na essência, a redundar no empobrecimento cultural. Frisei ao ex-aluno que a arte que nos é dada conhecer assemelha-se a um leque apenas entreaberto. Sequer imaginamos toda a beleza, estivesse ele a apresentar a pintura integral. Nesses exemplos incluiria a qualidade precisa de tantos compositores belgas entre os séculos XIX e XX, a riquíssima música portuguesa desde o barroco, a culminar, como excelência, nesse grande Fernando Lopes-Graça (1906-1994) – a meu ver, um dos maiores compositores do planeta no transcorrer do século XX, infelizmente ainda não divulgado à altura de sua genialidade, apesar de esforços particularizados em Portugal. À sua obra valiosa tenho-me dedicado ultimamente. Quatro de suas extraordinárias criações deverei gravar em Maio na Bélgica, perfazendo dois CDs. E quantas mais preciosidades artísticas não há submersas por toda parte pelo esclerosamento de um Sistema ! Quantos artistas de todas as áreas permanecem sepultos ! Raras exumações acontecem: “E tudo isto a morte / Risca por não estar certo / No caderno da sorte / Que Deus deixou aberto”, como reza Fernando Pessoa.
Perguntou-me se a mesmice tinha origem precisa. Disse-lhe que marchands, empresários, editores, mídia e público, acostumados a ver, ouvir e ler o que tem circulação e o conhecido, fazem parte de um todo responsável pela situação. Comentei que sub-repticiamente autores respeitados, ao citarem exemplos nas artes, mencionam o óbvio, e a quantidade de textos sobre pintura abordando determinadas obras nos deixaria pasmos. Estariam eles cônscios desse posicionamento? Não atenderia a menção ao superdivulgado à necessidade da inteligibilidade frente ao leitor acostumado ao conhecido e perenemente repetido?
Ao sentar-me, iria continuar a leitura de A origem da obra de arte, um dos seis ensaios constantes da obra Holzweg do pensador alemão Martin Heidegger (1889-1976), na tradução francesa (Chemins qui ne mènent nulle part, France, Gallimard, 1980). Em determinado segmento, Heidegger recorrerá a uma tela de Vincent Van Gogh (1853-1890) a fim de, através de velhos sapatos de um camponês, explicar seu pensamento sobre o ser-produto do produto, passando pela sua utilidade e solidez, e chegar à transcendência a partir do desgastado par de sapatos do lavrador “Através desses sapatos passa o apelo silencioso da terra… a muda inquietude pela segurança do pão, a alegria silenciosa de sobreviver novamente à necessidade, a agonia do nascimento iminente, o arrepio sob a morte que ameaça”. Se não houver o símbolo por todos conhecido, a imaginação do leitor poderia não saber se fixar. Todavia, se outro par estivesse em hipotética obra igualmente importante, mas de pintor que, por motivos os mais díspares não teve divulgação, como passar ao leitor a carga necessária? Numa outra direção, quantos estudos, teses, artigos já não foram feitos para explicar, como exemplo entre tantos, o célebre quadro O Casal Arnolfini do pintor flamengo Jan van Eych (1390-1441)? O quadro é uma obra-prima insofismável. Contudo, qual a razão dos pesquisadores em arte fixarem-se tanto no Casal Arnolfini, analisado e dissecado de todas as maneiras ainda possíveis? “Professor, o trânsito emperrou, mas de um lado é bom conversarmos”, interrompeu-me. Continuei, pois, as divagações. Quantas extraordinárias criações de pintores do período jamais mereceram uma linha de um estudioso. Milhares de milhares de turistas ao adentrarem o Louvre correm – esse é o termo – para ver a Mona Lisa, ou La Gioconda, de Leonardo da Vinci.
Primeiramente haveria a necessidade de se partir de pesquisa virgem, o que requisitará a busca às fontes primárias e à bibliografia mais complexa. Sob aspecto outro, pelo fato da falta de comparação, a mídia silencia, pois seus modelos são basicamente os mesmos desde sempre, e marchands, agentes de programação musical ou editores, em grande maioria, preferem que assim continue. Mortos propalados efusivamente têm público cativo. Observe as programações de nossas sociedades musicais. Ad nauseam os mesmos concertos para piano e orquestra ou violino e orquestra são executados anualmente em todas as temporadas pelo país. Extraordinários? Sim. Únicos, realmente não. Num aprofundamento, não acredita você que se o público leigo soubesse que há quantidade extraordinária de concertos outros escritos também por grandes compositores, basicamente ignotos, não poderia sentir-se desapreciado, autêntico capititis diminutio de sua possibilidade de aferição? Se assim não entender, pois ele representa o elo final receptivo, nada a fazer, pois a atitude de renovação não virá nem dos agentes, tampouco dos músicos envolvidos. Sob outra égide, o público é sempre conduzido, pois não será ele a procurar o inusitado. Se a globalização tendeu para a ampliação – não entremos no quesito qualidade -, e o conhecimento se colocou à disposição de todos e de maneira veloz, paradoxalmente os mesmos arquétipos são venerados em todas as artes. Mas estes são relativamente poucos se comparados à quantidade qualitativa mantida em baús. Não creio que possa haver um ressurgimento de todos os bons autores. É impossível e, se parcela destes renascesse dos arquivos, o cidadão comum poderia desnortear-se pelo aumento excessivo da comparação. Música, literatura e outras artes sofrem o mesmo e, homeopaticamente, como que por uma quase benevolência do Sistema, um desconhecido já sepultado há muito ou pouco tempo tem exumada sua obra. Quando isto acontece, os pais da redescoberta são momentaneamente glorificados, e a mídia e os interessados se precipitam e ao tecerem elogios rasgados, sentem-se prepotentemente mais cultos. O esnobismo é uma das categorias do verniz cultural. Retirada a camada, pouco sobra. Essa é a realidade que o homem enfrenta desde séculos. E tudo indica que assim continuará.
Meu ex-aluno, hoje profissional que demonstra amar a música, reagiu bem. No íntimo, pensa aproximadamente a mesma coisa, mas como me afirmou, falta-lhe a coragem para mudar as mentalidades voltadas a um aprendizado super tradicional. A esperança veio pouco antes de chegar ao seu destino, duas ou três paradas a anteceder o centro. “Professor, passarei em sua casa” disse-me ele. “Gostaria de uma lista dessas obras que o senhor considera essenciais, mas pouco divulgadas”. Aquiesci com alegria, pois sempre acreditei nessa imensidão criativa que teimosamente o Sistema não revela. Ele desceu e segui até o ponto final a pensar que ainda poderemos fazer algo a favor do inusitado. Deixarão? O tempo dirá.

Gestual Econômico a Valorizar Texto-Música

(clique nas imagens para ampliá-las)

Carlos do Carmo na Casa de Portugal de São Paulo. Foto JEM. Clique para ampliar.

Sou trova da madrugada,
Poema do Sol desperto
Numa guitarra trinada.
E o jeito seguro e certo
Que foi raiz encontrada:
Memória de mim tão perto.

João Manuel Mendes (Fado dos meus Fados)

Reiteradas vezes comentei a respeito do gesto e de seu impacto. Quando entrevistado por Joseph Horowitz, o grande pianista Claudio Arrau (1903-1991) abordaria o tema. Aos cinquenta e tais anos percebeu que seus gestos ao tocar em público eram excessivos. Refletiu muito e chegou à conclusão de que haveria a necessidade de diminuí-los sensivelmente. Para o insigne pianista estava em causa a própria música. Arrau doravante transmitiria apenas a essência sonora e o gestual tornou-se econômico. Suas interpretações ganhariam, a partir de determinada idade, a aura da inefabilidade.
Haveria duas básicas categorias de intérpretes frente ao gesto e, nessas, nuances quanto à flexibilização dos movimentos corporais como um todo. A ausência do gesto supérfluo pode levar à síntese da exteriorização, a estar o processo inteiramente voltado à carga integral que emana da mensagem musical. Sob outra égide, movimentos excessivos, quando voluntários, estariam a evidenciar a atração nítida do intérprete pelo palco no intuito de obter o delírio da platéia. E a música em sua essência, onde realmente ela se situa, neste último caso?
Convidado pelo distinto amigo António Júlio Machado Rodrigues, dinâmico Presidente da Casa de Portugal, minha mulher e eu assistimos, após a belíssima ceia de Natal na tradicional sede da comunidade lusíada, a uma extraordinária apresentação de Carlos do Carmo, o nome mais representativo do fado desde a morte da inesquecível Amália Rodrigues. Louve-se a sensibilidade do Presidente da Casa ao trazer a São Paulo, mais uma vez, o extraordinário artista. O recital do fadista, que se fez acompanhar por excelentes guitarristas, deu-se logo após a música circunstancial e descartável que tivemos de ouvir, quando um conjunto “musical” entendeu que o limite auditivo tinha de ser transposto, e os decibéis estratosféricos fizeram-me recorrer a tampões nos ouvidos. Infelizmente, essa prática “sonora” invadiu quase todas apresentações em festas, casamentos, formaturas…
Ao adentrar o palco, Carlos do Carmo dirigiu-se ao público e calmamente pediu silêncio absoluto durante sua apresentação. Foi atendido e, somente após cada fado, portugueses e descendentes aclamavam o cantor. Conhecia-o através de vários CDs que conservo com carinho, mercê de meu afeto pelo gênero fado, mormente cantado com qualidade ímpar. Carlos do Carmo emociona cidadãos de todas as classes e músicos eruditos submetem-se ao seu fascínio. O musicólogo Rui Vieira Nery já me havia, bem anteriormente, mencionado as qualidades excepcionais do artista, presenteando-me com CDs do cantor. Em seu excelente livro sobre o fado (vide Para uma História do Fado Origens e Trajetória, 23/02/08), Vieira Nery escreve: “Será, depois de Amália, o primeiro fadista a assumir de forma inequívoca uma vontade de passagem do Fado do recinto ‘típico’ exclusivo para os espaços de difusão ocupados pelos demais gêneros da canção urbana”. Por sua vez, o compositor António Victorino D’Almeida, em entrevistas a Paulo Sérgio dos Santos, insiste sobre suas virtudes inalienáveis, comparáveis aos nomes referenciais do canto. Seus comentários dão a dimensão do grande fadista: “E cito-lhe desde a Maria Callas, ao Frank Sinatra, ao Carlos do Carmo… São vozes incríveis. O Placido Domingo, o [José] Carreras, a Amália Rodrigues, a Edith Piaf… Coisas assim… Mas a Edith Piaf não era tanto a voz, a Edith Piaf estava sempre um pouco desafinada. Ao Sinatra compreendo que lhe chamassem ‘The Voice’. O Carlos do Carmo é outra voz assim, não é? E dentro duma certa forma de cantar, com a voz não preparada, são das maiores vozes que alguma vez ouvi” (António Victorino D’Almeida conta 50 anos na Música a Paulo Sérgio dos Santos. Portugal, Quimera, 2005, 340 pgs.). Acrescentaria, entre cantores da música popular, Bing Crosby, Nat King Cole, Charles Aznavour, Tony Bennett e Elis Regina.

Carlos do Carmo na Casa de Portugal de São Paulo. Foto JEM. Clique para ampliar.

Ainda não tinha visto Carlos do Carmo em cena. Vários impactos se produziram.
Primeiramente, a escolha do repertório. Impecável. Fados primorosos, muitos deles com textos de grandes poetas portugueses e alguns de autores brasileiros. Uma garantia. Em outra percepção, musical preferencialmente, observa-se no tratamento da composição um esmero absoluto. Nada é supérfluo e a frase musical e o texto, num perfeito amálgama, associam-se irremediavelmente. Carlos do Carmo, nesse trato da melodia, consegue transmitir a respiração texto-música e tantas vezes recorre a suspensões – momentos inefáveis em que apenas as ressonâncias são “subjetivamente” entendidas. Essas pausas ou silêncios vêm sempre precedidas da preparação adequada e da sequência que faz entender métrica, sentido do texto e a frase musical em sua elasticidade agógica. Diria que, em termos musicais, tem Carlos do Carmo o sentido pleno daquilo que na música é denominado rubato, liberdade que se dá ao movimento de uma frase, sem contudo perder-se a essência do ritmo. Sob aspecto outro, possui o artista o domínio das gradações sonoras, e finais de fados arrebatadores têm a precedê-los a ascensão calculada, bem cuidada, de um mestre. À medida que me encantava com a bela récita do fadista, observei que a palavra distração – possível em apresentação de mais de uma hora ininterrupta – não teria nenhum sentido, mercê da força da transmissão. O público irmanou-se e, a pedido do cantor, quase que em sua totalidade acompanhou-o no refrão de Lisboa, menina e moça.
Nos intervalos entre os fados, comentava com meu dileto amigo Vital Vieira Curto a respeito daquilo que é essencial. Quem realmente é não necessita de artifícios. O gestual tão comum e exagerado em tantos cantores populares, que não poucas vezes se utilizam de vestimentas extravagantes, dá lugar à sobriedade, à economia dos gestos, à elegância no trajar. Diria que a atitude de artistas que entendem a mensagem musical como prioridade reflete o mais absoluto respeito ao público. Carlos do Carmo apresenta-se com gestual parcimonioso. Por vezes, as mãos indicam intenções relativas à tradução texto-música, outras vezes o colocá-las nos bolsos evitaria movimento desnecessário. Mesmo quando desce do palco, a fim de melhor se identificar com a platéia, permanece sóbrio na gesticulação. Todos se concentram naquilo que é transferido com total competência.

Júlio Rodrigues, Presidente da Casa de Portugal de São Paulo, JEM e Carlos do Carmo. Foto Regina Martins. Clique para ampliar.

Ao findar o belo espetáculo, Júlio Rodrigues levou-me até Carlos do Carmo. Externei-lhe minha admiração, a ratificar-lhe essas suas qualidades, raras na música erudita, raríssimas na popular. O excepcional fadista asseverou-me que era assim que entendia a transmissão da música. Noite para não ser esquecida.

Ao acessar o Youtube videos Carlos do Carmo, o leitor poderá ouvir fados de seu repertório.

Some days ago I attended a show of the great fado singer Carlos do Carmo in São Paulo. Charmed by his elegance, the restraint of his gestures, his impeccable choice of repertoire and subtle control of tempo for expressive purposes, I was led to reflect on the issue of the essential and the superfluous in art. Carlos do Carmo is outstanding in a casual and effortless way, holding the audience in the palm of his hand without theatrical performances. His priority is to convey his musical message with competence, not to display extravagant versions of himself. A quality rarely found in classical music performers, even rarer in pop singers. A night not to be forgotten.

A Pureza de um Autor

Posso afirmar que envelhecer assim
‘combatendo o bom combate’
não é ruim…
Envelhecer com vida e garra
é para quem merece !

Norberto de Moraes Alves

Torna-se mais acentuada a diferença entre o que deve ser lido, ouvido, visto pelo cidadão no entender da mídia, em comparação ao que pensa parcela surda e operosa que produz e assimila à margem da divulgação. Quando a mídia incensa determinado autor, seja qual for o seu valor, imediatamente o cidadão que lê, ouve e assiste a teatro, filmes ou TV corre para sentir o odor do incenso, seja este especiaria ímpar, ou simples resina qualquer a queimar. Foi assim no passado e perpetua-se em ascensão geométrica no presente. Basta uma excentricidade ou inovação, duvidosa ou não, e determinado autor é eleito pelo público. Todavia, espalhados pelo planeta, escritores, poetas, pintores, escultores e compositores ainda reverenciam modelos execrados pela modernidade “criativa” ou pelos adeptos do modismo forjado.
Por serem menos conhecidos, autores “ocultos” pareceriam entender situações. Uns se conformam, outros retêm uma tristeza notória e outros mais convivem com a realidade e continuam a produzir no mais autêntico sentido vocacional. Entre tantos, há inúmeros com real valor e que pelas mais variadas razões jamais foram procurados pelos meios de comunicação. Esse fenômeno não acontece só sob a guarida do cada vez mais inclemente sol tropical. Autores que se notabilizam – tantas vezes ungidos artificialmente – aqui e alhures acham-se no direito de tudo dizer, de opinar como arautos, e infinidades de absurdos e arbitrariedades são proferidos em entrevistas, sob a égide de mitos reais ou forjados. Mais deprimente quando a “fama” veio outrora e, durante o resto da existência, o autor prossegue em obras recorrentes. Em todas as categorias da Cultura. O grande público, sem captar o engodo, tem a certeza de estar diante da “verdade”.
Em nosso país, figuras notáveis estão a produzir cultura ainda à “antiga”, mas num universo criativo sensível, distante de modismos efêmeros. O tema surgiu após novas visitas a Bragança Paulista. Tenho conhecido figuras que me sensibilizam. Durante aproximadamente duas décadas permaneci quase que isolado nos “meus” bancos da Praça José Bonifácio, ou no quarto no Grande Hotel Bragança, a fim de escrever artigos para publicações arbitradas no Exterior, ou ouvir material gravado na Bélgica que seria convertido em CDs, respectivamente. Pouco a pouco, figuras humanas extraordinárias cruzaram meu caminho e, se continuo a visitar Bragança Paulista, basicamente pelos mesmos motivos, haverá sempre o congraçamento com essa gente generosa da cidade.
Os bons amigos, Hugo e Rosana, da Hughes Mens Wear, estabelecimento junto à praça mencionada, apresentaram-me a Norberto de Moraes Alves, escritor e poeta de Bragança Paulista. Iria dar um recital na cidade, mas previamente o querido casal presenteou-me com um livro de Norberto. Sensível dedicatória do autor enriquecia a obra. Após o recital, o escritor e poeta oferece-me outros dois livros. O simples folhear, já no Hotel, causou-me interesse. Após a leitura das três obras contendo contos, poesias e crônicas, tive a sensação de leveza. Norberto é um puro e escreve amorosamente. Percebe-se que o autor tem prazer em narrar suas experiências, fértil imaginação na criação de contos diversificados em seus temas e uma veia poética sensível e inteligível.
Acompanhá-lo em três livros que se estendem pela primeira década deste século é apreender a vocação autêntica dirigida aos textos curtos, de síntese, que captam a própria essência do episódio. A condução dos contos é realizada com maestria e os personagens integram a narrativa de maneira homogênea. São participantes efetivos durante o desenrolar da trama.
As Flores da Lua (Piracicaba, Degasperi, 2001, 140 p.) tem prefácio da filósofa Marilena Chauí que, ao comentar dois contos, entre outros, escreve: “Se sorrimos, às vezes, e nos emocionamos, outras vezes, também não podemos deixar de perceber a crítica social que se desenha em filigrana em contos como ‘Bicho de pé’ – o mundo feito e desfeito num intervalo eleitoral – e ‘Momento de decisão’ – a vida destroçada por uma economia que despreza a terra e sua gente”. Acrescentaria o conto A Herança, nítida posição frente à vida e à posição social, mormente entre membros de uma mesma família.
Norberto de Moraes Alves tem o dom de fazer crítica sem perder a elegância da escrita ou o controle dos personagens. Bons e maus, justos e injustos, nesses breves contos não se degladiam ferozmente. Permanecem num antagonismo quase que discreto, exceção ao conto Fidelidade, que tem como cenário fazenda do século XIX e onde a tragédia vai impor-se de maneira absoluta, mercê de trama a envolver paixão, adultério, brancos e negros. Em outros contos, o autor, que ao ingressar no magistério público em plena Serra da Bocaina, precisamente em São José do Barreiro (Vale do Paraíba), sofreria efeitos do linguajar do povo simples existente nessa extensa região, entrega aos personagens essa fala do caipira e do caboclo. Demonstra virtuosidade nessa configuração que perpassa alguns contos. Em outros, como Capaiz !!!, Um fato insólito e O Cordeiro de Deus, Norberto de Moraes Alves trata de maneira hilariante as narrativas, e um humor incisivo seduz o leitor. Há por vezes, na condução dos contos presentes nesse livro e em Sopro de Ternura, certa proximidade com os Contos da Montanha, do extraordinário escritor português Miguel Torga. Se em Torga as descrições que envolvem humor ou tragédia estariam a revelar densidade na escrita – peculiaridade do autor – e estilo a proporcionar ao leitor a sua detectação, em Norberto Moraes Alves uma descontração, um quase divertir-se ao escrever, percorre os textos. Mas é a presença, nesses breves escritos de ambos, do homem da pequena aldeia ou do campo em seus afetos e idiossincrasias que merece ser apreendida.

Em Quintal dos Sonhos (Bragança Paulista, Barletta, 2007, 112 p.), o poeta cria imagens líricas plenas de singeleza. Tocam fundo. Distante de qualquer tendência modernista, Norberto prefere falar direto à sensibilidade de cada leitor. Poemas expressivos, diáfanos, diria até puros na plena acepção da palavra, revelam o que o autor é na realidade. Se em Insegurança versos captam esse estado:

“Quando quero falar de amor
e não encontro a palavra exata,
navego em pensamentos
qual indecisa fragata,
enfrentando o mar revolto
a ponto de naufragar” ;

se em Pesadelo:

“A dor se fez sofrimento
sem tempo de despertar” ;

ao versar Sobre a Inspiração, a luminosidade se dá:

“Inspiração
é qual arpejo,
de melodia
que atravessa
as nuvens
de um sonho.
São acordes
de um lamento
de saudade
e de desejos.
Entregue-se,
navegue por ela
mesmo que
por um só
momento…”

Ao escrever Sopro de Ternura (Bragança Paulista, ABR, 2009, 126 p.), Norberto retorna aos poemas e contos, a criar novas imagens e personagens. Os belos versos de A Rosa e a Eternidade são exemplos:

“A rosa não se perpetua
pela forma, pela cor
ou pela nobreza da flor
da qual é revestida,
mas pela pétala
que flutua,
deixando que o aroma,
aos poucos, no tempo se dilua
e busque no infinito
a semente…
de todo o sempre.”

Humor e tragédia se intercalam no segmento destinado aos contos, e Le Due Sorelli e O Anjo de Asa Quebrada são exemplos, respectivamente. Algumas breves crônicas, geralmente a homenagear entes queridos que partiram para a outra margem, encerram o livro.
Norberto de Moraes Alves é esse puro que encontra na pena o exteriorizar sentimentos que as novas gerações estão sendo induzidas a sufocar. Sua escrita fica como um farol que, ao ser visto, proporciona ainda salvaguardas para a existência.

On one of my visits to the city of Bragança Paulista I had the privilege of knowing the writer Norberto de Moraes Alves, who lives in the city and offered me three of his books. In this post I give an account of my reading, completely captivated by the lyricism of his poems and the simple elegance, conciseness and imagination of his short stories.