Caminho para Varna

Estação rodoviária de Sófia. Foto J.E.M. 1996. Clique para ampliar.

Felicidade é a certeza de que a nossa vida
não está se passando inutilmente.

Érico Veríssimo

Quantas não são as viagens esquecidas? Aéreas, por vias férreas ou rodovias, parte considerável dos deslocamentos não é lembrada. A memória, com as sucessivas viagens, não pode reter todas elas. Permanecem aquelas em que algo inusitado acontece. Uma primeira vez, visita diferenciada a determinado lugar, relacionamentos novos, transportes os mais diversos, tudo torna indelével uma jornada, ainda mais se fatos quebram a normalidade que se espera.
As décadas acumuladas fizeram-me sentir sensível diferença entre os deslocamentos aéreos e os terrestres. Aeroportos ocidentais de maior porte têm quase sempre características muito próximas. Cosmopolitas, alguns bem mais equipados que outros, todos ostentam certas semelhanças. As pessoas, tanto no check-in como na sala de embarque, mostram-se sérias, geralmente incomunicáveis, algumas até arrogantes, por função profissional que buscam evidenciar através de gestos, trajes, utilização ostensiva de celulares e parafernália outra. Para aqueles que não pertencem à classe econômica, esse distanciamento em relação à categoria “social inferior” fica mais evidente no momento do embarque. Essa atitude pode ser observada também nos comboios no Exterior, mormente nos ótimos e rápidos TGVs, bem mais caros, ainda mais na primeira classe. Mas, nos trens comuns, uma maior interação entre as pessoas fica evidente. São fatos que a simples observação constata. Quanto à viagem coletiva por rodovia, mais abertamente social, chega a haver até congraçamento, a depender das circunstâncias.
Estava a percorrer álbuns de fotografias quando encontro algumas tiradas em 1996, durante viagem de ônibus de Sófia a Varna, na Bulgária. Convidado para um recital nessa cidade às margens do Mar Negro, foi-me oferecida passagem de avião, em percurso de curta duração. Pedi aos organizadores que providenciassem uma por rodovia, jornada que leva sete horas em média, pois tencionava pelo menos ver terras outras, cidades, vilas, aldeias, paisagens e captar uma mínima parcela da índole do povo búlgaro.
A estação rodoviária, simples e um pouco desorganizada, chamou-me a atenção pelas destinações as mais diversas de tantos veículos, assim como a presença desse povo humilde, muitos camponeses, pequenos comerciantes, mulheres com crianças, idosos. Cristãos e muçulmanos entravam nos vários autocars. Liam-se as localidades fixadas em cada um: Atenas, Istambul, cidades da antiga Iugoslávia – havia ainda litígios fratricidas grassando nos países recém-constituídos – e outras mais da região, ilegíveis para um leigo na escrita cirílica.

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O ônibus para Varna saiu lotado. Os passageiros, muitos com traços ciganos, conversavam com certa desenvoltura e em voz alta. A visão do cerne de um país, pois a estrada corta a Bulgária de oeste a leste, ficou marcada pela presença de pequenas florestas nas encostas de montanhas, onde se destacavam pinheiros, plantações de legumináceas, rebanhos esparsos de carneiros, minas ou pedreiras, muitas serras, pequenas cidades e aldeias, campesinos a trabalhar a terra ou a andar pelas margens da rodovia e muitas carroças bem típicas, puxadas por dois animais. Percebia-se em todas as moradias, mesmo as mais singelas, uma certa estrutura, a fim de suportar invernos rigorosos. Tornovo, parada obrigatória no meio do percurso, é a maior delas até chegar-se a Varna. Duas ou três outras paradas mínimas serviram para que eu descesse do veículo, a fim de fotografar camponeses em suas andanças.
A Bulgária abandonara há pouco o regime comunista, com o esfacelamento da antiga União Soviética. Sete anos é tempo curto para a recuperação, e nesse belíssimo país podia-se sentir a dificuldade financeira, pois tudo estava imensamente barato para um ocidental. A moeda era a leva, e refeições e o cotidiano mostravam-se a preços irrisórios.
Algo bem curioso ocorreu durante a ida e o retorno. Dois filmes foram exibidos em cada trajeto, fato normal numa longa viagem. Contudo, sem legendas, todos estavam dublados em búlgaro por uma voz única masculina. Como o sonoro idioma búlgaro é pleno de consoantes, há uma tendência natural às vozes mais graves. Estava eu preferencialmente a observar a paisagem ou a repousar, mas ocasionalmente via alguns segmentos do filme em exibição. Em um deles, a escultural Kim Bessinger estava em cena idílica, possivelmente a declarar amor ao parceiro, mas dublada por voz masculina grave sem nenhuma expressão. Dei boas risadas. Controlei-me ao observar o espanto dos outros passageiros. Em um outro filme, uma criança de cinco ou seis anos entra no quarto dos pais e diz “papa, papa” com voz de adulto. Novamente não me contive, e os olhares dos companheiros de viagem bem evidenciaram que eu não apenas nada estava a entender, como desconhecia essa prática, normal em tempo de transição política. E de pensar que os barítonos búlgaros são excepcionais, assim como as vozes femininas, existindo na Bulgária alguns dos mais perfeitos conjuntos vocais do planeta.

Cartaz do recital de piano de J.E.M. em Varna. 1º de Setembro de 1996. Clique para ampliar.

Ao chegar a Varna, um deslumbramento e a sensação de estar em uma cidade às margens do Mar Negro de tantas lendas, guerras e histórias outras. Mar interior, entre o Sudeste da Europa e a Ásia Menor, banha várias costas: Géorgia, Rússia, Ucrânia, Romênia, Bulgária e Turquia. Sua área total é de 422.000 km2, tendo profundidades bem acentuadas. Saber que esse mar interior apresenta-se frente às cidades como Sebastopol (palco de violentos combates históricos, mormente no famoso cerco durante a Guerra da Criméia -1854-1855, e em episódios épicos em plena Segunda Grande Guerra); Odessa (lá nasceu meu saudoso professor José Kliass); Ialta (cenário da célebre conferência – conjunto de reuniões – em Fevereiro de 1945, com a presença de Churchill, Roosevelt e Stalin, meses antes do término da Segunda Grande Guerra), Constança, antiga Tomis (para onde Ovídio – 43 a.C-17 d.C, o autor de Metamorfoses, foi desterrado); Varna; Istambul (outrora Constantinopla e Bizâncio de fantástica história), causa impacto.

De belo jardim em Varna, pormenor do Mar Negro. Foto J.E.M. 1996. Clique para ampliar.

Como estávamos nos estertores do verão, após o recital, que se deu no fim da manhã, fui até o jardim bem cuidado a proporcionar uma visão única do mar em momento ensolarado. Dele, descendo por escadaria bem antiga, tem-se acesso a uma das praias. Tirei sapatos e meias e caminhei cerca de vinte minutos, a sonhar com lendas e tradições do Mar Negro. Uma sensação de alegria e de emoção ao pisar aquelas águas que povoaram meu imaginário juvenil, quando leituras dimensionavam o misterioso Mar. Lembro-me, ainda miúdo, de um conto russo que minha mãe me leu, e aquele Mar pareceu-me ter uma importância descomunal, pois envolvia barcos tragados misteriosamente pelas águas. Era a primeira revelação. Meu grande amigo Gilberto Mendes pediu-me que incluísse no programa uma peça sua, pois Varna tem para ele uma aura especial, a povoar há muito tempo o seu rico imaginário. Esqueceram-se de colocar o nome impresso, mas toquei Viva-Villa a anteceder obras de Villa-Lobos. Ficou feliz, mas gostaria de ver seu nome no programa. Grande Gilberto.
O regresso deu-se tranquilamente. Os mesmos filmes foram reprisados, mas as paisagens eram diferenciadas, pois apreendidas em sentido contrário. Havia a certeza de que valera a pena ter trocado o meio de transporte, pois, se aéreo, poderia perder-se no esquecimento. O inusitado a ficar gravado. Perenemente.

On my way to Varna:
Unexpected events are hardly forgotten, specially when one is travelling. Flipping through an old photo album brought back memories of singular moments lived in Bulgaria in 1996: embarking on a seven hour trip by bus from Sofia to Varna among locals; strolling barefoot on the shores of the mythical Black Sea.

A Intensidade a Tornar-se Pulsação

Desenho de Luca Vitali, após a leitura do presente post. 2009. Clique para ampliar.

Quand la foi s’éteint c’est Dieu qui meurt
et qui se montre désormais inutile.

Antoine de Saint-Exupéry

Márcia é amiga muito querida. Escreveu-me que em uma palestra encontrou professora da USP por quem nutro profunda amizade, mas com quem não tenho contato há muito tempo. Nossa cidade descomunalmente difícil. Márcia comenta sobre a colega uspiana: “Ficou absolutamente surpresa, aliás, quando contei sobre sua chegada na corrida de São Silvestre. Depois de alguns minutos, contudo, refletiu e disse que você era capaz de fazer qualquer coisa a que se propusesse…”. Confesso ter achado graça no e-mail da amiga. Mas, como ocorre habitualmente, logo após fiquei a pensar sobre o assunto. O que nos leva a enfrentar desafios, vencê-los ou não, mas nunca desistir por desânimo ou receio de ver uma obra complexa não chegar a termo? Meu saudoso pai tinha algumas normas de conduta. Conceitos sobre disciplina, perseverança, entusiasmo, concentração foram, ao longo de nossas formações, insistentemente repetidos. Creio que parcela desses ensinamentos ficou gravada. O homem tendendo à síntese, devido às décadas acumuladas, encontra no amálgama das captações o seu norte, o traço que identifica o seu caminhar pela vida em direção harmoniosa ao seu término, ou recomeço, representado pela morte. As palavras da colega permaneceram gravadas à espera de um motivo para eclodirem em texto semanal. Meses após encontrei Laerte, que não via há umas boas duas décadas. Casualmente nos reconhecemos quando fui às compras na feira-livre do Campo Belo. Estava o ex-colega de escola de passagem, a visitar filhos e netos. Marcamos de imediato um café nas cercanias e, junto às recordações que se fazem necessárias nessas oportunidades, disse-me ele acessar meu blog com certa regularidade, graças a um companheiro de trabalho.
Tem acompanhado de longe a trajetória do amigo. A certa altura, perguntou-me: “há alguma norma ou explicação para o fervor?” Entenderia Laerte que o longo caminho tenha sido resultado do fervor. Não apenas considerei perspicaz a questão como, no que lhe disse naqueles breves momentos, ficaria plantada a semente da reflexão. Os amigos possibilitaram a germinação do tema para o presente post.

>Antoine de Saint-Exupéry. Clique para ampliar.

Vieram-me ensinamentos contidos em Citadelle, de Saint-Exupéry, sobre o fervor, uma das palavras-chave na construção de seu pensar. Não obstante a existência de conceituações diversas para o termo, referimo-nos ao fervor da convicção nobre, conditio sine qua non para se alcançar algo que almejamos. Sem ele, toda a realização apresentará uma falha que seja, a determinar que faltou a chama a ratificar a identidade de um feito, por pequeno que possa parecer. É o fervor que faz emergir a condição para que objetivo seja alcançado, que o torna real, harmonioso. Através dele, o trajeto, mesmo difícil, torna-se meta amorosa.
Fervor inequívoco, a ser entendido como espiritual, artístico, profissional, tem pujança a não corromper a palavra. Para os que vivem a intensidade da fé, fervor é sinônimo inalienável, convicção profunda a não permitir subterfúgios. Fervor não pode ser confundido com ganância, existente em todos os segmentos da atividade humana. Nessa categoria, denominada por Sogyal Rinpoche como aquela de “fantasmas famintos”, encontra-se o desejo do poder, o amealhar fortuna pela fortuna e todos os vícios decorrentes da compulsão pelo dinheiro, aparência do crescimento interior. Fervor não é ambição, mas flama que impulsiona a criação, o espírito. Nos longos voos noturnos, Saint-Exupéry era movido pelo fervor, a estender princípios de fraternidade, solidariedade e justiça à humanidade toda. Voz nas alturas, mas pregação tantas vezes não ouvida em outro deserto – não aquele por tantas vezes sobrevoado pelo autor -, o da esterilidade do sentir, pois o homem continua a perpetrar as mesmas distorções de sempre. Felizmente, a mensagem de Saint-Exupéry é atemporal e remete-nos a conceitos que podem ser encontrados através da história, sob égide outra, nos denominados livros sagrados. Na acepção, entendidos por poucos.
Fervor independe do talento. Se este existe, evidenciará a vontade férrea que frutifica e permanece. Todavia, fervor não é sinônimo de talento e a ausência deste deve expor resultado menor, mas não desprovido de empenho. Saint-Exupéry considera que “o grande escultor nasce do húmus dos maus escultores. Servem-lhe de degrau e são eles que o elevam”. E na concepção de Império que domina Citadelle: “…se você salva somente os grandes escultores, ficará privado dos grandes escultores”. Mas, há salvaguarda: “ O fervor da dança exige que todos dancem, mesmo aqueles que dançam mal. A não ser assim, deixa de haver fervor e passa a haver apenas academia petrificada e espetáculo sem significação”. Continua Saint-Exupéry: “Não invente um império onde tudo seja perfeito. O bom gosto é virtude de guardião de museu. Se você despreza o mal gosto, não terá nem pintura, nem dança, nem palácio, nem jardins. O trabalho da terra, que não é propriamente assético, causar-lhe-á repugnância. Dele você ficará privado, mercê do seu vazio desejo de perfeição. Invente um império onde simplesmente tudo seja fervoroso”.
Saint-Exupéry explica-nos a impermanência do fervor. Impossível manter a chama fervorosa noite e dia: “Aqueles que desfalecem e tencionam fazer crer que estiveram a agir sem interrupção, mentem. Mente o sentinela das muralhas que dia e noite proclama o seu amor pela cidade. Contudo, ele prefere a sopa”. Esse fervor que persiste é cantado, mas pode ser trocado ou interrompido pelo cotidiano, sempre negado pelos que professam a presença dessa vontade férrea. Poetas, amantes, viajantes e até santos não seriam avessos a essas interrupções. “Mente o santo que confessa dia e noite contemplar Deus. Às vezes, Ele o abandona à semelhança do mar. E ei-lo mais seco do que uma praia de seixos”. As obras de artista em qualquer das áreas não estariam sujeitas, num outro contexto, à ineroxabilidade de as entendermos realizadas com maior ou menor fervor? Não necessariamente, mas todos os que permaneceram pela qualidade nem sempre atingiram em seus trabalhos o patamar da obra-prima. Falta de inspiração, de fervor? A impermanência na perfeição também atinge os grandes criadores.
Sob outro aspecto, o fervor que permanece, intermediado por tantas outras circunstâncias, lembra o que pensava o compositor russo Alexandre Scriabine. Sentado em um café frente a lago suíço, escreveria, ao ver uma carruagem passar que o grande Eu existia no ato de compor, enquanto o pequeno eu estava atuante a contemplar a carruagem e a tomar chá. Grande Eu do fervor, da criação, condição essencial para que quaisquer metas sejam atingidas amorosamente. Se o fervor, por tantas razões naturais, como adversidades, tragédias, desinteresses outros, fenece, o princípio gerador que leva à realização transfigura-se, a se tornar perceptível a ausência da flama. É ainda Saint-Exupéry que escreve: “Digo que minha obra acabou quando o meu fervor desaparece”. Eu acrescentaria, a independer da faixa etária, pois inúmeras obras que a história preservou foram realizadas no ocaso da existência de seus criadores. Quando a chama intrínseca se apaga, em circunstâncias tantas vezes misteriosas, o homem deixa tombar seu estandarte.
Citadelle contém sabedoria. É a síntese de um pensador que entenderia o fervor, a responsabilidade, o amor, a compreensão do homem com seus defeitos e qualidades, numa ampla acepção. Não há panfletarismo, tão em evidência nos dias de hoje. O fervor ou fé, em contexto próximo e amalgamado, seria a salvaguarda do ser humano sincero, espiritual, a buscar a verdadeira integração fraterna da humanidade. Ainda há tempo para esperanças.

This post is a reflection on the meaning of the word “fervour” as Saint-Exupéry understood it in his book Citadelle (The Wisdom of the Sands): an inner flame essential in the process of man’s full growth.

In Memoriam

Álvaro Guimarães e J.E.M. Gent, 1995. Clique para ampliar.

Eis onde estamos.
Para nós, em nossa vida e em nosso universo,
há apenas um acontecimento de monta: é a nossa morte.

Seria salutar que todos nos preparássemos para essa ideia
na claridade dos dias e na força da nossa inteligência.

Maurice Maeterlink

A inexorabilidade da morte e a dificuldade de nela pensar antolha-se-nos como grande barreira para entendê-la no momento preciso. Mors certa hora incerta é a única salvaguarda de que dispomos para esperar o instante final. Possivelmente, a negligência do homem frente à impermanência, concretude absoluta, torna-o despreparado para entender a morte, tanto espiritual como racionalmente. Os budistas, através da certeza dos renascimentos, aliviam sofrimentos, mal administrados na complexidade do mundo ocidental. O cristianismo, apesar de conceituações claras a respeito da morte, geralmente é mal interpretado nesse quesito pelos fiéis que enterram seus mortos. Há toda uma tradição enraizada que nos coloca indefesos quando o assunto é a finitude física. Bossuet (1627-1704), um dos maiores oradores sacros da história, já escrevia que “não é digno de um cristão revoltar-se contra a morte no momento em que ela se apresenta para o arrebatar”.

Caminho diário percorrido por Álvaro na Béguinage. Gent, 1995. Foto J.E.M. Clique para ampliar.

Álvaro Guimarães foi um amigo impecável. Músico, fixou-se em 1990 na Bélgica, Gent seu universo. Constituiu família e sua esposa, Katrijn Friant, é excelente regente coral e pianista. Tiveram três filhos: Mabel, Mariuga e Celso. Morava na cidade em uma tranquila Béguinage, comum na região flamenga, a conter vários edifícios. De cunho religioso, as Béguinages abrigavam no passado viúvas e solteiras. No aprazível recanto na Lange Violettestraat, Álvaro praticava música dia e noite, amando-a e a pensar nos outros, não apenas a tentar ajudar colegas na área musical, mas também contatando sociedades de concerto e organizando mesmo tantos eventos especiais. Como estudioso preparou o doutorado sob a orientação de Herman Sabbe. Era professor do Conservatório de Música de Gent. Revelou-se igualmente compositor de mérito.
Devo a Álvaro Guimarães minha primeira ida à Bélgica (vide Gent-A Flandres Rejuvenescida, 28/04/07). Em fins de 1994 procurou-me em São Paulo. Ficara impressionado com as composições de Henrique Oswald, que eu gravara em quatro LPs na década de 80, tencionando realizar um evento especial no Musiekconservatorium de Gent, dedicado unicamente às obras do compositor. Empenharam-se, ele e Katrijn, durante todo o ano de 1995 para a récita que se deu aos 18 de Novembro. Participei, como pianista, executando várias obras camerísticas e para piano solo. A Missa de Requiem foi magistralmente interpretada na segunda parte pelo coral Novecanto, sob a regência de Katrijn Friant. Era a primeira vez, após a morte do compositor em 1931, que todo um longo concerto com tantos participantes homenageava Henrique Oswald. Álvaro Guimarães exultou.
Nas primeiras idas à Bélgica, fiquei hospedado em sua casa, que respirava música, ao vivo ou através da rádio. Espírito inquieto, Álvaro partiu para projetos ousados. Foi ele o verdadeiro Embaixador da música brasileira na Bélgica, creio que o maior, assim como um imenso divulgador da música flamenga na Europa e no Brasil. Quantos não foram os músicos de nosso país por ele acalentados que atravessaram o oceano a fim de se apresentar em Gent, ou ter obras interpretadas? Professava admiração confessa pelas obras de Gilberto Mendes e Willy Correa de Oliveira, tendo sido idealizador e responsável pelo magnífico CD lançado na Bélgica unicamente com obras de câmara de Gilberto executada por músicos flamengos. Intérpretes e outros tantos compositores brasileiros tinham de sua parte a melhor acolhida, pois suas portas estavam sempre abertas.
Houve a fase de imenso trabalho para a fixação junto ao público do repertório recente belga e brasileiro. Ao administrar os concertos para o conjunto flamengo The Spectra Ensemble, de música contemporânea, não poupava esforços no sentido de tudo organizar. Foi o responsável pela construção de pontes extraordinárias, ligando Gent ao Festival Música Nova de Santos e às programações em São Petersburgo. Entusiasta, polemizava sempre com afinco. Quantas não foram as vezes em que, calorosamente, dialogamos sobre estéticas musicais. Divergíamos em muitos pontos, mas eu admirava a defesa que fazia de suas idéias arrojadas, sempre com raro brilhantismo. Concordávamos inteiramente quando o tema compreendia repertórios, pois nós ambos lamentávamos a mesmice das programações que ainda impera em tantas sociedades de concerto.
Foi o amigo que me apresentou aos excelentes compositores Boudwijn Buckinx e Lucien Posman, entre outros músicos. Buckinx escreveu, entre 1999-2001 Sete Estudos para o CD que eu gravaria para o selo De Rode Pomp, New Belgian Etudes, sendo que o nº 4 da série foi dedicado a Álvaro Guimarães (Clique para ouvir).
Traduziria do holandês para o português De Kleine pomo – of muziekgeschiedenis van het postmodernisme (O Pequeno Pomo ou a história da música do pós-modernismo, São Paulo, Giordano-Ateliê, 1998), instigante livro do compositor-pensador Boudwijn Buckinx. A meu convite, escreveu para a Revista Música da USP o importante artigo A Bélgica e a Recepção da Música Erudita Brasileira (vol.6 nºs. 1-2, Maio/Novembro 1995, págs. 150-169).
Compareceu a quase todos os meus recitais em Gent desde 1996. Era um prazer revê-lo, conversar e beber in loco, durante as discussões musicais, a cerveja considerada a melhor do planeta. Preferíamos a triplet, realmente excepcional.
Álvaro fumava muito. Diria excessivamente. Acometido por um câncer muito agressivo, lutou com todas as forças, heroicamente. Em Fevereiro último, compareceu ao meu recital no Parnassus, em Gent. Dias após almoçamos e houve troca de experiências quanto à administração do mal, mas já se podia apreender em sua fala resignada, mas com um fio de esperança, o drama que estava a viver.
Ao regressar ao Brasil, mantivemos um intercâmbio através de e-mails, ele relatando a evolução e o tratamento da doença, eu a encorajá-lo. Durante todo esse período, Álvaro era lembrado diariamente em minhas preces noturnas e matutinas. Não hesitei em comunicar o fato a ele. Ao receber de um amigo O Livro Tibetano do Viver e do Morrer, de Sogyal Rinpoche, disse-me que a obra fazia-lhe bem. Realmente, trata-se de livro singular, pleno de sabedoria. Uma grande obra. Nos últimos meses, a religião foi-lhe reconfortante, e o livro, indicado pelo amigo, tem sido também minha leitura de cabeceira.
Um pouco antes de minha viagem a Portugal, Álvaro escreveu-me a dizer que os médicos tinham-lhe dado poucos dias de vida. Mas havia serenidade e resignação em seu e-mail, característico de alguém que encontrara a paz. Tenho a convicção de que a família e o livro mencionado foram decisivos. Ao regressar no começo de Junho, mais e-mails foram trocados. Acreditava que estava a se recuperar, pois ganhara peso e sentia-se melhor. A mensagem do dia 18 de Junho último confirmava esperanças, mas tudo a deixar nas mãos de Deus: “A máxima de minha mãe ainda é a melhor explicação, deixar com Deus aquilo que os médicos não conseguem, e seguir em frente. Obrigado pelas preces, agora e sempre.”
Ao telefonar ao amigo dias antes de minha viagem, Álvaro, completamente estruturado na Bélgica, citou Gonçalves Dias, dizendo: “Não permita Deus que eu morra, sem que eu volte para lá”. Não foi possível. Álvaro Guimarães morreu no dia 23 de Junho, cinco dias após nosso último contacto, sem concretizar o que almejava. O e-mail de sua dedicada esposa Katrijn, “Álvaro nos deixou”, abruptamente levou-me às lágrimas, pois já começara a conviver com suas esperanças. Duas pátrias Álvaro leva consigo indelevelmente, Brasil e Bélgica, países que amou.

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Álvaro Guimarães. Dignificou com o mais puro empenho a música brasileira no Exterior. Música multifacetada, de várias tendências. Disposto ao diálogo, entendeu igualmente que deveria se abrir para a música de outros povos. E o fez com dedicação. Uma personalidade que trabalhou sempre longe dos holofotes. Tem ele grande relevância para a cultura musical como um todo. Repouse em paz, meu querido amigo.

Comovente texto de Katrijn Friant. Clique para ampliar.

Álvaro Guimarães moved to Belgium when still a young musician. There he settled in Gent, married the pianist and choral conductor Katrijn Friant, raised three children and taught at the local conservatory. It was at his invitation that I gave my first recital in Gent in 1995, entirely dedicated to the works of the Brazilian composer Henrique Oswald. Like me, many fellow musicians crossed to ocean thanks to Álvaro’s efforts to promote our classical music in Belgium. He was the link between Gent and the New Music Festival in Santos and also the musical associations of St. Petersburg in Russia. It was Álvaro who introduced me to the great Belgian composers Lucien Posman and Boudwijn Buckinx, among others. Buckinx was the author of seven etudes of my CD ”New Belgian Etudes”. One of them he dedicated to Álvaro Guimarães, who has honored me with his presence in almost all my recitals in Gent. It was so last February, despite his failing health. After my return to Brazil, we kept in touch by e-mail. Though the doctor’s prospects for him were somber, he confessed he felt an urge to visit Brazil once more, quoting a passage of our famous poem “Canção do Exílio” (Song of Exile) written by Gonçalves Dias: “May God not let me die/without going back there”. But it was too late. The man with two homelands died last June 23 in Gent without fulfilling his last dream. The professional who, through his lifelong commitment to music and his enthusiasm in promoting composers and performers of his native country in his adopted country, was in my view the greatest ambassador of the Brazilian music in Belgium. May you rest in peace, my friend.