In Memoriam

Álvaro Guimarães e J.E.M. Gent, 1995. Clique para ampliar.

Eis onde estamos.
Para nós, em nossa vida e em nosso universo,
há apenas um acontecimento de monta: é a nossa morte.

Seria salutar que todos nos preparássemos para essa ideia
na claridade dos dias e na força da nossa inteligência.

Maurice Maeterlink

A inexorabilidade da morte e a dificuldade de nela pensar antolha-se-nos como grande barreira para entendê-la no momento preciso. Mors certa hora incerta é a única salvaguarda de que dispomos para esperar o instante final. Possivelmente, a negligência do homem frente à impermanência, concretude absoluta, torna-o despreparado para entender a morte, tanto espiritual como racionalmente. Os budistas, através da certeza dos renascimentos, aliviam sofrimentos, mal administrados na complexidade do mundo ocidental. O cristianismo, apesar de conceituações claras a respeito da morte, geralmente é mal interpretado nesse quesito pelos fiéis que enterram seus mortos. Há toda uma tradição enraizada que nos coloca indefesos quando o assunto é a finitude física. Bossuet (1627-1704), um dos maiores oradores sacros da história, já escrevia que “não é digno de um cristão revoltar-se contra a morte no momento em que ela se apresenta para o arrebatar”.

Caminho diário percorrido por Álvaro na Béguinage. Gent, 1995. Foto J.E.M. Clique para ampliar.

Álvaro Guimarães foi um amigo impecável. Músico, fixou-se em 1990 na Bélgica, Gent seu universo. Constituiu família e sua esposa, Katrijn Friant, é excelente regente coral e pianista. Tiveram três filhos: Mabel, Mariuga e Celso. Morava na cidade em uma tranquila Béguinage, comum na região flamenga, a conter vários edifícios. De cunho religioso, as Béguinages abrigavam no passado viúvas e solteiras. No aprazível recanto na Lange Violettestraat, Álvaro praticava música dia e noite, amando-a e a pensar nos outros, não apenas a tentar ajudar colegas na área musical, mas também contatando sociedades de concerto e organizando mesmo tantos eventos especiais. Como estudioso preparou o doutorado sob a orientação de Herman Sabbe. Era professor do Conservatório de Música de Gent. Revelou-se igualmente compositor de mérito.
Devo a Álvaro Guimarães minha primeira ida à Bélgica (vide Gent-A Flandres Rejuvenescida, 28/04/07). Em fins de 1994 procurou-me em São Paulo. Ficara impressionado com as composições de Henrique Oswald, que eu gravara em quatro LPs na década de 80, tencionando realizar um evento especial no Musiekconservatorium de Gent, dedicado unicamente às obras do compositor. Empenharam-se, ele e Katrijn, durante todo o ano de 1995 para a récita que se deu aos 18 de Novembro. Participei, como pianista, executando várias obras camerísticas e para piano solo. A Missa de Requiem foi magistralmente interpretada na segunda parte pelo coral Novecanto, sob a regência de Katrijn Friant. Era a primeira vez, após a morte do compositor em 1931, que todo um longo concerto com tantos participantes homenageava Henrique Oswald. Álvaro Guimarães exultou.
Nas primeiras idas à Bélgica, fiquei hospedado em sua casa, que respirava música, ao vivo ou através da rádio. Espírito inquieto, Álvaro partiu para projetos ousados. Foi ele o verdadeiro Embaixador da música brasileira na Bélgica, creio que o maior, assim como um imenso divulgador da música flamenga na Europa e no Brasil. Quantos não foram os músicos de nosso país por ele acalentados que atravessaram o oceano a fim de se apresentar em Gent, ou ter obras interpretadas? Professava admiração confessa pelas obras de Gilberto Mendes e Willy Correa de Oliveira, tendo sido idealizador e responsável pelo magnífico CD lançado na Bélgica unicamente com obras de câmara de Gilberto executada por músicos flamengos. Intérpretes e outros tantos compositores brasileiros tinham de sua parte a melhor acolhida, pois suas portas estavam sempre abertas.
Houve a fase de imenso trabalho para a fixação junto ao público do repertório recente belga e brasileiro. Ao administrar os concertos para o conjunto flamengo The Spectra Ensemble, de música contemporânea, não poupava esforços no sentido de tudo organizar. Foi o responsável pela construção de pontes extraordinárias, ligando Gent ao Festival Música Nova de Santos e às programações em São Petersburgo. Entusiasta, polemizava sempre com afinco. Quantas não foram as vezes em que, calorosamente, dialogamos sobre estéticas musicais. Divergíamos em muitos pontos, mas eu admirava a defesa que fazia de suas idéias arrojadas, sempre com raro brilhantismo. Concordávamos inteiramente quando o tema compreendia repertórios, pois nós ambos lamentávamos a mesmice das programações que ainda impera em tantas sociedades de concerto.
Foi o amigo que me apresentou aos excelentes compositores Boudwijn Buckinx e Lucien Posman, entre outros músicos. Buckinx escreveu, entre 1999-2001 Sete Estudos para o CD que eu gravaria para o selo De Rode Pomp, New Belgian Etudes, sendo que o nº 4 da série foi dedicado a Álvaro Guimarães (Clique para ouvir).
Traduziria do holandês para o português De Kleine pomo – of muziekgeschiedenis van het postmodernisme (O Pequeno Pomo ou a história da música do pós-modernismo, São Paulo, Giordano-Ateliê, 1998), instigante livro do compositor-pensador Boudwijn Buckinx. A meu convite, escreveu para a Revista Música da USP o importante artigo A Bélgica e a Recepção da Música Erudita Brasileira (vol.6 nºs. 1-2, Maio/Novembro 1995, págs. 150-169).
Compareceu a quase todos os meus recitais em Gent desde 1996. Era um prazer revê-lo, conversar e beber in loco, durante as discussões musicais, a cerveja considerada a melhor do planeta. Preferíamos a triplet, realmente excepcional.
Álvaro fumava muito. Diria excessivamente. Acometido por um câncer muito agressivo, lutou com todas as forças, heroicamente. Em Fevereiro último, compareceu ao meu recital no Parnassus, em Gent. Dias após almoçamos e houve troca de experiências quanto à administração do mal, mas já se podia apreender em sua fala resignada, mas com um fio de esperança, o drama que estava a viver.
Ao regressar ao Brasil, mantivemos um intercâmbio através de e-mails, ele relatando a evolução e o tratamento da doença, eu a encorajá-lo. Durante todo esse período, Álvaro era lembrado diariamente em minhas preces noturnas e matutinas. Não hesitei em comunicar o fato a ele. Ao receber de um amigo O Livro Tibetano do Viver e do Morrer, de Sogyal Rinpoche, disse-me que a obra fazia-lhe bem. Realmente, trata-se de livro singular, pleno de sabedoria. Uma grande obra. Nos últimos meses, a religião foi-lhe reconfortante, e o livro, indicado pelo amigo, tem sido também minha leitura de cabeceira.
Um pouco antes de minha viagem a Portugal, Álvaro escreveu-me a dizer que os médicos tinham-lhe dado poucos dias de vida. Mas havia serenidade e resignação em seu e-mail, característico de alguém que encontrara a paz. Tenho a convicção de que a família e o livro mencionado foram decisivos. Ao regressar no começo de Junho, mais e-mails foram trocados. Acreditava que estava a se recuperar, pois ganhara peso e sentia-se melhor. A mensagem do dia 18 de Junho último confirmava esperanças, mas tudo a deixar nas mãos de Deus: “A máxima de minha mãe ainda é a melhor explicação, deixar com Deus aquilo que os médicos não conseguem, e seguir em frente. Obrigado pelas preces, agora e sempre.”
Ao telefonar ao amigo dias antes de minha viagem, Álvaro, completamente estruturado na Bélgica, citou Gonçalves Dias, dizendo: “Não permita Deus que eu morra, sem que eu volte para lá”. Não foi possível. Álvaro Guimarães morreu no dia 23 de Junho, cinco dias após nosso último contacto, sem concretizar o que almejava. O e-mail de sua dedicada esposa Katrijn, “Álvaro nos deixou”, abruptamente levou-me às lágrimas, pois já começara a conviver com suas esperanças. Duas pátrias Álvaro leva consigo indelevelmente, Brasil e Bélgica, países que amou.

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Álvaro Guimarães. Dignificou com o mais puro empenho a música brasileira no Exterior. Música multifacetada, de várias tendências. Disposto ao diálogo, entendeu igualmente que deveria se abrir para a música de outros povos. E o fez com dedicação. Uma personalidade que trabalhou sempre longe dos holofotes. Tem ele grande relevância para a cultura musical como um todo. Repouse em paz, meu querido amigo.

Comovente texto de Katrijn Friant. Clique para ampliar.

Álvaro Guimarães moved to Belgium when still a young musician. There he settled in Gent, married the pianist and choral conductor Katrijn Friant, raised three children and taught at the local conservatory. It was at his invitation that I gave my first recital in Gent in 1995, entirely dedicated to the works of the Brazilian composer Henrique Oswald. Like me, many fellow musicians crossed to ocean thanks to Álvaro’s efforts to promote our classical music in Belgium. He was the link between Gent and the New Music Festival in Santos and also the musical associations of St. Petersburg in Russia. It was Álvaro who introduced me to the great Belgian composers Lucien Posman and Boudwijn Buckinx, among others. Buckinx was the author of seven etudes of my CD ”New Belgian Etudes”. One of them he dedicated to Álvaro Guimarães, who has honored me with his presence in almost all my recitals in Gent. It was so last February, despite his failing health. After my return to Brazil, we kept in touch by e-mail. Though the doctor’s prospects for him were somber, he confessed he felt an urge to visit Brazil once more, quoting a passage of our famous poem “Canção do Exílio” (Song of Exile) written by Gonçalves Dias: “May God not let me die/without going back there”. But it was too late. The man with two homelands died last June 23 in Gent without fulfilling his last dream. The professional who, through his lifelong commitment to music and his enthusiasm in promoting composers and performers of his native country in his adopted country, was in my view the greatest ambassador of the Brazilian music in Belgium. May you rest in peace, my friend.