O Tempo insubornável

O que seria do homem sem o fervor?
Antoine de Saint-Exupéry
(“Citadelle”)

O presente post é bem curto. A dificuldade de acessos e a minha quase absoluta ignorância a respeito da tecnologia, que avança diariamente, impedem minha atualização nesse complexo mister artificial, mas relevante.

Ao retornar às nossas terras dedicarei dois ou três blogs às viagens e haverá, em consequência, a presença de fotos que me são caras e outras que virão nessa turnê.

Ter chegado ao término europeu relativo às apresentações públicas está a me levar a experiências emocionais jamais presentes ao longo desses 71 anos, sempre a tocar e na mais absoluta comunhão com a atividade pianística, buscando aprofundar-me nos porquês da criação musical.

Sob outro aspecto, Bélgica e Portugal habitam o meu de profundis, pois nesses países vivi os mais significativos impactos quando das apresentações pianísticas, mercê também dos repertórios que, se de um prisma, abordavam com bem menos intensidade as composições tradicionalíssimas que povoaram dedos e mente nas quatro primeiras décadas, sob outra égide, o trabalho arqueológico se abriu quando penetrei no repertório do passado pouco ou nada frequentado, mas incomensuravelmente valioso, naquele da contemporaneidade, o que me fez conhecer compositores extraordinários. Se a França me é tão cara, pois parte fundamental de minha formação devo aos ensinamentos recebidos, seria contudo em torno das pesquisas sobre o notável Claude Debussy que se acentuaram as relações.

As amizades mantidas ao longo das décadas se prolongam. Dádivas.

Até um próximo blog, prezado Leitor, cúmplice das minhas linhas ao longo de dezesseis anos.

Desde a fecundação ele cronometra a existência

Na estrada por que vou
Não fujo do meu norte
Edmundo Bettencourt

Inúmeros foram os blogs em que me vali das palavras do ilustre escritor e poeta português Guerra Junqueiro, “Tempo infalível e insubornável”. Sob outra égide, o notável filósofo Vladimir Jankélévich traça uma analogia através do instante do acontecido, presente na passagem, à maneira de um flash, do heliotropismo ao geotropismo, o primeiro em direção à plena luminosidade e o segundo a ter início na fração infinitesimal pós-meio dia, que levará à escuridão no perene ciclo dia-noite.

Se a premissa pode causar estranheza, diria que há o Tempo tão bem explicitado no capítulo 3, versículos 1 a 8, do Livro de Eclesiastes, Tempo para tudo na relação extraordinária do homem com os seus semelhantes, com a natureza e com o Divino. A sua passagem determina os nossos ciclos durante a vida, etapas vencidas, vitórias e derrotas, alegrias e tristezas e tantas mais configurações. Só há uma certeza, jamais poderemos alterar a sua trajetória e, da infância à ancianidade, armazenamos lembranças. São elas que corroboram o aprimoramento, graças ao precioso acúmulo do conhecimento.

Nas incontáveis atividades do homem, há Tempos precisos. Tempo físico, Tempo mental. Para algumas profissões, como nos esportes, o Tempo é implacável quanto à brevidade da ação. Dificilmente um esportista ultrapassa um terço da existência na atividade, considerado no caso a chegada à terceira ou quarta idade. Em inúmeras entrevistas, esportistas, quando na terceira idade, rememoram os fatos do esplendor da forma física e essa repetição é constante, nostálgica, pois o passado longínquo é sempre tema para cronistas esportivos e para ouvintes saudosos.

Creio que a música possibilita ao intérprete continuar a atividade até a velhice e a finalização da carreira se dá basicamente entre os 75 e 80 e tais anos, exceções existindo, como a de Mieczysław Horszowski (1892-1993), que se apresentou em público até os 99 anos, ou Arthur Rubinstein (1887-1982), que adentrou os 90.

Estou a me lembrar de uma primeira apresentação pública em 1953 no Convento São Francisco, no Largo que leva o nome do santo. A convite de D. Henrique Golland Trindade, arcebispo de Botucatu, prelado de cultura invejável e orador sacro de renome, meu irmão João Carlos e eu nos apresentamos. Após 71 anos a tocar em público, no Brasil e no Exterior, cesso as apresentações de maneira voluntária, cônscio de que sempre busquei transmitir as mensagens musicais após aprofundamentos. Chego a termo, neste pórtico dos 85 anos, convicto de nunca ter feito concessões de repertório, tampouco cedido espaço à música popular para fins mediáticos, gênero que admiro em algumas de suas tendências mais tradicionais, mas entendo como uma categoria outra. Assim pensava também o ilustre compositor Gilberto Mendes (1922-2016).

Serão três recitais neste ano, dois na Europa e um no Brasil. No dia 25 me apresentarei em Gand, na Bélgica. A escolha tem simbolismo. Nessa cidade foi lançada a maioria de meus CDs gravados na mágica capela de Mullem (século XI), tendo à frente o notável engenheiro de som Johan Kennivé. André Posman, diretor da De Rode Pomp, fez-me   o convite para a primeira gravação e a relação musical e de amizade me leva a render essa humilde homenagem aos amigos que cultuei na Bélgica Flamenga durante esses 27 anos. Um privilégio que acalento no meu de profundis.

Aos 30 o recital será em Lisboa, no Museu Nacional da Música. Encerrarei minha atividade pública na Europa na cidade em que me apresentei pela primeira vez, aos 14 de Julho de 1959, na Academia de Amadores de Música, templo sagrado do excepcional compositor português Fernando Lopes-Graça (1906-1994), que me fez o convite. Se laços de sangue existem, pois meu saudoso Pai nasceu em Braga em 1898, outros laços se formaram e as cerca de 50 viagens a Portugal, sempre a tocar, levam-me à última récita em solo europeu.

O encerramento se dará na Fundação Pinacoteca Benedicto Calixto, em Santos, no dia 24 de Agosto. Inúmeras vezes lá me apresentei, sempre com a presença de outro saudoso amigo, o excepcional compositor Gilberto Mendes (1922-2016).

Sempre preferi tocar em salas menores, geralmente tendo público mais concentrado e verdadeiramente amante da música. Foi uma das causas de jamais ter tido empresário. Enfim, são escolhas e alegro-me de ter agido sempre com esse desiderato, apesar de ter me apresentado em salas enormes, mas sem o mesmo prazer.

O próximo blog será bem curto, pois após o recital em Gand tocarei em Lisboa e darei palestras em Évora e Coimbra. Nesta, haverá o lançamento oficial de meu livro “Impressões sobre a Música Portuguesa e outros temas” (II), publicação da Imprensa da Universidade de Coimbra. Encerro o tour com entrevista na Rádio Difusão Portuguesa (RDP), sob a condução do competente Paulo Guerra.

Terei a companhia de minha querida filha Maria Beatriz. A partir do dia 10 de Junho escreverei dois blogs explicando o porquê dos repertórios apresentados e ilustrados com fotos dos eventos tiradas por Maria Beatriz.

 

After preliminary considerations about the passing of time, I explain that this year my public pianistic performances will come to an end. On this tour I will play in Ghent and Lisbon, my last recitals in Europe. There is a strong symbolism in such choices. I will give lectures in Evora and Coimbra, and in this city there will be the launching of my book “Impressões sobre a Música Portuguesa e outros temas” (II) (Coimbra, Coimbra University Press.

A observação que conduz à arte inovadora

Mas teria sido Pituba um homem de crença profunda, radical e intransigente?
Um fanático para exagerar a qualificação?
Não cremos, e a redação de uma carta à irmã Martha (24/07/1916)
indica um equilíbrio religioso com crença profunda,
sem crendices nem superstições.
O que se poderia esperar do equilíbrio que transparece em toda sua vida”.
Eduardo Etzel
“Arte Sacra Popular Brasileira”, 1975)

A continuação do post anterior, abordando as inovações práticas que substanciam a criação de uma imaginária sacro-popular de um artista singular, expõe características que surpreendem os admiradores da arte. Dito Pituba seria um santeiro a mais entre tantos que confeccionaram imagens sagradas Brasil afora, não fosse sua incrível capacidade de encontrar em seu ambiente rural soluções surpreendentes. Primou, em sua longa atividade como santeiro, pela acuidade observadora.

Se considerada a arte sacra erudita, verifica-se que basicamente obedece a ditames oriundos da tradição. Ao verificarmos imagens de um determinado santo, nota-se que certos atributos essenciais permanecem inalterados. Pituba, artista da arte sacra popular, teria recorrido não apenas a membros da igreja, como igualmente a fiéis conhecedores dos símbolos representativos. Se mantém a tradição para determinados santos, como São Pedro e as chaves; Santo Antônio, o menino Jesus e um livro; São Benedito e o menino Jesus, quando usa a imaginação tem-se resultados surpreendentes, dado o convívio com o meio citadino-rural observado com argúcia.

Para a imagem inicial deste post, representando São Sebastião (72 cm), Pituba encontrou soluções para os braços, mas sobretudo para os olhos, utilizando-se dos de uma boneca. Fá-lo naturalmente, sem elucubrações. Essa arte singela, criativa, existe a partir do talento inerente.

Santa Catarina (287-305) foi martirizada em uma roda dentada aos 18 anos. Pituba recorreu à roda de ralar mandioca de quatro raios, pois lhe era familiar. Santa Bárbara, protetora contra as tempestades e relâmpagos, tem sobre os braços uma torre onde esteve presa a mando de seu pai. Preservando a fé cristã e condenada à morte, foi decapitada pelo próprio pai, que, reza a lenda, morreu a seguir atingido por um relâmpago;   Santa Luzia (383-204), igualmente martirizada, é representada nas muitas caracterizações de Pituba com uma pequena bandeja e dois olhos arrancados antes do martírio, daí ser conhecida como a Santa da visão. Tantos outros santos martirizados têm, da parte de Pituba, a interpretação que leva ao instrumento de tortura, símbolo que marca o final trágico da existência. Quanto à palma, representativa do martírio do santo ou santa, Pituba recorria a um vizinho sapateiro e suas palmas para as pequenas imagens de madeira eram de couro.

Santa Maria foi muito procurada pelos devotos. Está representada em várias versões, a depender da geografia e das devoções. Há várias representações de Nossa Senhora Aparecida ainda não coroada, fato que se deu em 1904, o que naturalmente posiciona a cronologia da feitura.

O aumento progressivo de fiéis à procura de seu santo ou santa de devoção fazia com que Pituba não apenas ampliasse sua hagiografia, como também tivesse que inovar. E inovou. As soluções encontradas por Dito Pituba foram sempre de ordem prática.

As dimensões das imagens variavam de acordo com os pedidos dos devotos que mantinham oratórios em suas casas rurais. Pituba também os confeccionava, a atender aos pedidos diversos quanto às dimensões solicitadas pelos fiéis. O aumento da demanda fez com que Dito Pituba procurasse soluções práticas. E encontrou.

Para os pequenos Divinos, sempre presentes nos oratórios domésticos, Pituba tem a sua identidade revelada através do corte das asas, frequente em todos os Divinos dessa dimensão.

Nos oratórios feitos antes do aumento natural de pedidos, Pituba se utilizava de madeiras ditas nobres e mais difíceis de serem cortadas para a feitura posterior dos oratórios caseiros. Em determinado momento deve ter concluído que as caixas de bacalhau, bebidas importadas ou óleo para motores, estas oriundas dos Estados Unidos, feitas em madeira mole, seriam adequadas para a realização do trabalho e já vinham “quase prontas” para o seu desiderato de santeiro. Obviamente faltavam-lhe as portas e o frontal, a adequação e a pintura, mas Pituba sabiamente resolveu o problema. Para as portas e o frontal recorria às sobras das caixas. Na ilustração a seguir, veem-se duas portas pintadas adornadas com anjos, únicas peças que subsistiram à ação dos cupins num oratório doméstico. Na inscrição em baixo-relevo, lê-se “Rubi Cognac Cuisinier”, a testemunhar a procedência.

Na foto a seguir, um dos tantos oratórios de autoria de Dito Pituba no qual utilizou a madeira dessas caixas vindas da Europa (bebidas) ou dos Estados Unidos (óleo para motores) para agilizar seu ofício. Veem-se ao fundo arabescos, motivos florais que caracterizam o estilo de pintura para a ornamentação dos oratórios domésticos.

Conheci Lázaro Pituba, filho de Dito Pituba. Naquele último lustro dos anos 1970, Lázaro já era nonagenário. Completamente cego, tinha a mente aberta e diálogo prazeroso. O ilustre pesquisador Eduardo Etzel já obtivera, décadas atrás, inúmeros dados da vida e dos trabalhos de seu pai. Tendo conhecido uma boa quantidade de imagens sacras realizadas por Pituba, colhi de Lázaro Pituba informações adicionais e fotografei-o, pois seria bem possível que o artista popular, vivendo em meio restrito, tivesse em mente personagens de seu meio, subtraindo do tipo físico que cruzava no cotidiano elementos para a feitura das imagens, mormente de seus familiares. Formato da cabeça, nariz, características do corpo eram elementos impregnados em sua mente. O perfil de Lázaro traduzia muito o formato de algumas cabeças de santos criadas por Pituba, assim como o formato do nariz. Tirei a foto e, ao mostrar ao Dr. Eduardo Etzel, ele concordou plenamente com a “teoria”.

As muitas visitas a Lázaro para saber mais de seu pai levaram a uma atitude inusitada. A certa altura, pediu à sobrinha para retirar um cordão de couro de seu pescoço com uma mínima imagem de Santo Antônio em chifre de veado. Portava-o desde a adolescência, presente de seu pai, Dito Pituba. Ofereceu-mo e a foto ilustra a miniatura. Bem desgastada pelas décadas, esse presente tão caro para Lázaro me comoveu.

Causou-nos, ao Dr. Eduardo Etzel e a mim, forte emoção o Voto de Louvor, assinado pelo vereador Eduardo Ribeiro, que recebemos da Câmara Municipal de Santa Isabel aos 28 de Março de 1978. , “pela pesquisa que realizaram a respeito dos trabalhos de arte executados pelo Sr. Benedito Amaro de Oliveira, artista isabelense falecido em 1923, homenageado por esta Casa através da aprovação da Lei nº 1024, de 22 de março de 1978”. Dias após, aos 10 de Abril, o Presidente da Câmara Municipal de Santa Isabel, vereador Levy de Oliveira Lima, ratifica o Voto de Louvor (ofício nº 88/78) e acrescenta: “Por nossa vez, através da Lei nº 1.024, de 22 de março do corrente ano, demos o nome do ilustre artista a duas vias da nossa cidade, como homenagem póstuma ao trabalho ao qual se dedicou com esmero e carinho”. Posteriormente o vereador Eduardo Ribeiro me ofereceu uma placa da rua que conservo com apreço.

Ratifico que, de minha parte, nada teria acontecido não fosse o grande privilégio de ter conhecido e ser orientado pela figura exemplar do Dr. Eduardo Etzel. Devo o que sei a  respeito da arte sacra popular, mormente referente a criada pelo notável Dito Pituba, ao grande mestre que, pneumologista e mais tarde psicanalista, captou a essência dos traços do artista. Indicou-me os caminhos a trilhar nessa vasta região do Alto Tietê e parte do Vale do Paraíba onde poderia encontrar traços deixados por Dito Pituba. Como pneumologista salientava determinados aspectos físicos das imagens, como psicanalista buscou penetrar no de profundis de Dito Pituba, como grande especialista em arte sacra transmitiu-me preciosos ensinamentos relativos à restauração. Dádiva.

The remarkable Dito Pituba, working in rural areas, was an artist who, when making about 5,000 images, oratories, and divines, had the creative gift that made him find surprising solutions.