Quando Ouvir e Parar Fazem a Diferença

Passaporte J.E.M.: Vistos de Portugal e de Espanha, Junho/Julho 1959

Sózinho me aconselhei,
Sózinho chorei.

Adágio Açoriano

Magnus sabia de minha ida a Lisboa em 1959, quando fui um dos cinco a viajar em um Sinca de Paris à capital portuguesa, com pernoites em Bordeaux e Valladolid. O relato está em texto da Revista Música (2006) e em encarte do CD Viagens na Minha Terra, dedicado ao grande compositor português Fernando Lopes-Graça e lançado pelo selo Portugaler (vide curriculum e recordings no site). Foi durante a estada de vinte e poucos dias em Lisboa que se deu meu primeiro recital de piano em terras lusitanas. Queria Magnus saber do retorno. Teria sido com o mesmo grupo? Contei-lhe com pormenores retidos na memória e encontrei em meu primeiro passaporte as comprovações do regresso atribulado, que passo a narrar.
Voltei só, de comboio e em segunda classe. Longa viagem, que se dava em aproximadamente 36 horas. Naquele verão, dias caniculares faziam-se sentir. Aos 25 de Julho tinha-se a impressão de um apogeu da temperatura. O trem, que saíra de Lisboa, chegou a Vilar Formoso, freguesia do Concelho de Almeida, na Beira Alta, fronteira de Portugal com Espanha, pouco antes das seis da tarde. Naquela época, havia a necessidade de vistos para quaisquer deslocamentos internacionais. Houve a parada em Vilar Formoso e os documentos foram examinados, mas, quando da próxima paragem, em Fuentes de Oñoro, já em Espanha, um guarda da alfândega entrou no vagão e pediu os passaportes dos viajantes. Como a minha estada em Portugal foi de três semanas, julguei que o trânsito por Espanha estivesse contemplado no visto que tirara em Paris, no consulado daquele país. Ledo engano. Falhei ao não ter entendido que o visto era apenas para o trânsito pela Espanha em direção a Portugal. Como se lia na permissão oficial, que ocupava uma página, que este estaria a caducar no prazo de noventa dias, não atentei para o fim precípuo do grande carimbo: atravessar apenas as fronteiras espanholas no prazo restrito. O funcionário disse-me pois que eu não poderia entrar no país, a menos que atravessasse a fronteira e obtivesse em Vilar Formoso o visto no Vice-Consulado espanhol, pois o comboio permaneceria cerca de trinta minutos naquela cidade fronteiriça. Recomendei vivamente a minha bagagem, com três pertences preciosos, a um casal que me pareceu confiável e, em desabalada corrida sob sol escaldante naquela época do ano no hemisfério norte, passei pelas fronteiras separadas pela Ribeira dos Tourões, não sem antes, rapidamente, ter exposto a situação aos guardas da guarita. Ao chegar em Vilar Formoso, perguntei a um cidadão o local do Vice-Consulado. Felizmente era bem perto, mas já se encontrava fechado, pois eram seis horas da tarde. Disseram-me que o vice-cônsul estava em uma taverna próxima. Nova corrida até encontrá-lo, na sua meia idade e obeso, já sentado a bebericar naquela tarde abafadiça. Contei-lhe a arfar o meu problema. Não se mostrou indiferente à minha aflição e, dirigindo-se ao Vice-Consulado, deu-me o visto, que ocupou uma outra página do passaporte. Vivia-se em Espanha o longo período de Francisco Franco, Caudillo de España por la Gracia de Dios, e dos conseqüentes grandes carimbos documentais, sinais de poder e “eficiência”. Paguei o que era devido, agradeci efusivamente e nova desabalada corrida em direção ao comboio.

Passaporte J.E.M.: Vistos de Portugal e de Espanha, Junho/Julho de 1959

Ao atravessar a fronteira, sempre a correr, levantei meu braço mostrando o passaporte à guarda, sem ter observado que houvera a troca dos militares às seis em ponto, um ou dois minutos após tê-la atravessado pela primeira vez. Continuei acelerado, verdadeiro sprint, quando ouvi gritos para que parasse. Imediatamente me dei conta de que deveria obedecer e, ao olhar para trás, dois carabineiros ajoelhados, com aqueles curiosos chapéus negros de três bicos, apontavam fuzis em minha direção. Estremeci, dirigi-me à guarda com os braços erguidos e, sempre a segurar o passaporte, contei meu drama, mostrei o vistoso carimbo obtido minutos antes e deixaram-me ir.
Faltava um minuto para a partida. Ao chegar ao trem, tenso e absolutamente ensopado pela transpiração, entreguei da janela umas moedas a dois meninos que vendiam água. Com o dinheiro em mãos, desapareceram a correr, e eu não recebi aquilo de que mais necessitava no momento.
À noite do dia seguinte o comboio encontraria em Paris o destino final, e meu estado era de absoluta fraqueza e desânimo. Estava literalmente destruído fisicamente. A única alegria residia no não extravio dos dois manuscritos autógrafos – Em Alcobaça dançando um velho fandango e Dança antiga - que o grande compositor Fernando Lopes-Graça ofereceu-me após meu recital na Academia de Amadores de Música, em Lisboa, no qual interpretara tais peças, assim como do magnífico Dicionário de Música em dois volumes, de sua autoria, com sensível dedicatória.
Quase cinqüenta anos se passaram e relembrar essa atribulada viagem resgata o registro da memória acompanhado da profusão de carimbos que as autoridades governamentais e cartoriais continuam tanto a apreciar. Serviu, contudo, de experiência definitiva no sentido de estar atento à leitura da documentação, quando em qualquer viagem, e saber aconselhar-me nesse mister e n’outros também.

Tribulations at the Border:
On how border guards held me at gunpoint demanding proof of identification as I inadvertently sprinted past them when crossing the Portuguese-Spanish border and the lesson I learned from this incident.

O Homem Frente às Renovações

Praça José da Silva Martins, na confluência das Avenidas Juscelino Kubitschek e Nações Unidas.

Cada um de nós emergirá ao fim do Ano Novo, ou maior ou menor; ou então, absolutamente não teremos crescido, permanecendo em completa inércia, exatamente aquilo que agora somos. Porem, para aqueles dentre nós que sentem ardor, que é que um Novo Ano significa? Não poder ter esta significação? Somos semelhantes a viajantes, penetrando, em nossa longa jornada, por um país novo e desconhecido, onde fados estranhos e estranhas aventuras nos esperam. Nesta terra, à medida que o peregrino observador a percorre, oportunidades se acumulam sob seus passos. Porém, para os utilizar, necessita ser sábio e estar alerta. Pois de uma cousa deve lembrar-se, – que é um viajante e que o que lhe compete é, não deter-se, mas passar adeante.
Jiddu Krishnamurti

A todo fim de ano, o ser humano busca interiormente o renascimento que deveria acontecer no alvorecer de outro período inexorável. Tão logo o reinício das atividades nos primeiros dias, percebe-se que a rotina, os hábitos enraizados fazem sucumbir vãs promessas desse renovar. É absolutamente humano e acontece em todos os povos, que, ajustados a outros calendários, criam a esperança de um desabrochar, lindo no conceito, difícil na prática.
A cada ano antecipa-se a pressão publicitária relacionada às festividades em torno da transição para o Ano Novo. A insistência no sentido de que tudo será diferente é repetitiva em quase todas as propagandas. Estimula-se a mudança para melhor, tantas vezes a certeza da frustração do amanhã. Fica no ar a “aparência” da felicidade.
Estou a me lembrar de preceitos de meu saudoso pai, José da Silva Martins (1898-2000), que a cada ano propunha metas e geralmente as cumpria, criava métodos para os quatro filhos e raramente deixava de aplicá-los. Havia o amálgama de atitude espartana à aplicação ateniense. Dir-se-ia ainda, um misto de Apolo e Dionísio. O velho patriarca, a fim de fazer-se doutrinário, era o paradigma de conduta, método, disciplina e afeto também, mercê da ação moderadora de nossa mãe (vide Mãe, 15/07/07, categoria Cotidiano). Após assistir à plena sedimentação de seus descendentes, realizaria ainda, a partir dos 86 anos, o seu sonho, escrever, e nessa idade veria o primeiro de seus sete livros publicados.
Os anos se passaram, as décadas foram acumuladas em quantidade fora dos limites, e meu pai chegaria aos 102 anos incompletos, pois faltavam apenas vinte e dois dias para isso quando a senhora morte surgiu, aos 19 de Maio de 2000. Um primeiro alerta da renovação já se fazia prenunciar quando, duas horas antes de seu desenlace, ouvi a respiração que o acompanhou desde 1898. Parecia-me irreal aquele arfar sôfrego e rápido, últimos vestígios de vida de alguém que nascera no século XIX e chegara até ao amanhecer do XXI. Irreal e a causar impacto emotivo, que seria apreendido, diferentemente, dois dias após, também em um hospital, quando ouvia outro respirar, também acelerado, o de uma neta que vinha ao mundo, a clamar vida, alegria e renascimento.
Um fato inusitado deu-se três meses após meu pai ter completado os 100 anos de idade. Sempre soubera digitar com destreza em máquinas de escrever, contudo queria mais e comprou um computador, aprendendo com incrível rapidez os meandros elementares. Durante uns bons trinta anos tive o hábito de almoçar com meus pais todas as sextas-feiras. Fi-lo certa vez e, ao entrar em seu escritório, surpreendi-me ao ver o pai centenário frente à internet. Como mantinha segredo desse “descobrimento”, chegou inclusive a ficar um tanto irritado. Nada que o bom vinho tinto português à mesa não atenuasse. Seu último livro foi inteiramente digitado no computador e ele trocava idéias on line com seu editor.
Após sua morte, fiquei com o computador que a ele pertencera. Relutava em aprender essa tecnologia hoje tão difundida. Dessa maneira, apenas um ano após o PC começou a funcionar, graças às aulas recebidas de meu ex-aluno de piano na universidade, Magnus Bardela, sempre possuidor de uma arguta escuta musical e hoje com carreira promissora em outra área. É ele o responsável pela colocação de meus posts, sempre acompanhados de ilustrações pertinentes por mim escolhidas e por ele trabalhadas. Sem as colaborações de Magnus e de Regina Maria Pitta, revisora dos textos, tudo se tornaria mais complexo.

O Método Diário de meu pai, escrito aos 101 anos.

Assim que a impressora foi instalada, duas páginas que permaneciam na memória da máquina surgiram: na primeira, ora reproduzida, meu pai fixava sua rotina diária. Aos 101 anos, ei-lo absolutamente convicto e sereno quanto ao seguimento de seus horários. Vê-se a espiritualidade em um homem que entendia as religiões num sentido plenamente ecumênico, pois sentia-se teósofo. Entre seus autores preferidos mais recentes na esfera místico-religiosa, Maurice Maeterlinck (1862-1949), Annie Besant (1847-1933) e Jiddu Krishnamurti (1895-1986). Compreendia ainda meu pai que o corpo humano deveria sempre ser entendido como um templo, perenemente preservado através da alimentação correta e dos exercícios físicos. Caminhadas diárias e 15 minutos de ginástica sueca, três refeições comedidas e nenhum outro alimento fora dos horários, eis a rotina de tantas décadas. Numa segunda página, ele se mostrava plenamente realizado e aguardava o chamado de Deus para ir ao encontro de minha mãe, que falecera um ano antes. Ao sairem essas duas únicas e derradeiras páginas da impressora, ficamos emocionados. Algumas horas após redigi-las, meu pai teve uma queda, por pura distração, houve trauma craniano e morreria no coma três meses após.
Creio ser relevante o entender apenas seqüencialmente as passagens de ano. Estrutura básica, princípios, metas, projetos de vida, estes nascem do pensar e do agir que se acumulam, serenamente ou não, e estarão a resultar mais ou menos intensamente, dependendo das atitudes tomadas. Impactos que independem da vontade podem alterar projetos, mas se houver centelha, o ser humano tendo esforço, persistência, paciência e concentração, atingirá parâmetros de realizações possivelmente não imaginados, mesmo que em senda diferenciada. Sentirá que todas as experiências, boas e más, serviram de acúmulo para o aprimoramento interior.
Serve essa página como um estímulo àqueles que entendem a seqüência da vida como renovação, e não apenas o Novo Ano do calendário. Os objetivos, sejam eles quais forem, nas mais diversas faixas etárias, só se realizam através do envolvimento pleno e harmonioso. O recomeço é diário, sem tréguas e, na medida do possível, sem traumas. As nossas camadas de todas as categorias acumulam-se e a existência, pouco a pouco, pode merecer um olhar mais amoroso. Se os passos diários são nosso calendário, este pode servir como norte para muitas resoluções previstas. Nesse desiderato, a inclusão de um pequeno Poslúdio clarifica o fluxo contínuo do blog.

New Year’s Resolutions:
One of the traditions of the season is the making of New Year’s resolutions. Since this is considered a time of rebirth, we are encouraged to set our goals for the next year – most of the times just to fail to meet them as the year gets underway. It reminded of my father, who each year set the goals he wanted to attain and really strived to reach them. He lived 102 years and till the very end was rigorously self-disciplined, keeping a list of pre-established steps to guide him through the days. Life is a challenge renewed constantly, not only by the year-end, and we should aim to get better – with effort, patience and persistence – as we move forward.

Poslúdio

O blog existe desde 2 de Março de 2007. Foram 53 posts publicados e inúmeras comunicações com leitores do Brasil e do Exterior, o que me traz uma grande alegria. No sentido de tornar os textos mais amplamente apreendidos pelo leitor, incluí no menu do blog um item, Instruções.
Quanto ao website, já estão disponíveis os itens: curriculum, blog, portraits, recordings, repertoire e contact. Através deste último, poderá o leitor transmitir as suas mensagens diretamente para J.E.M. Entramos pois em 2008 a buscar o aperfeiçoamento, nosso perene objetivo.

This Postlude explains the insertion of the item “Instructions” in the menu options, so as to make easier the access to the blog, integral part of the site under construction.

Um Conto Singelo

Dom Henrique G. Trindade, óleo sobre tela, Carlos Oswald.

De todas as histórias que nos contava
guardei apenas uma vaga e imperfeita lembrança.
Porém, uma delas ficou tão nitidamente gravada
em minha memória, que sou capaz de repeti-la
a qualquer momento – a pequenina história
do nascimento de Jesus.

Selma Lagerlöf

Dom Henrique Golland Trindade (1897-1974) foi uma figura extraordinária. Poder-se-ia acrescentar: homem santo ou iluminado, a depender das conceituações espiritualistas. Nascido em Porto Alegre, a vocação levou-o à formação religiosa competente. Tornou-se franciscano e atuou com intensidade frente a várias paróquias do país. Quando designado para a vida eclesiástica em Botucatu, no Estado de São Paulo, teve seu apostolado voltado aos mais simples e às crianças órfãs. Bispo e mais tarde arcebispo da diocese de Botucatu, nem por isso deixou de lado essa missão diária de assistir aos desalentados da cidade. Fundador da Congregação Diocesana das Irmãs Servas do Senhor em 1952 e da Vila dos Meninos Sagrada Família, Dom Henrique amava as Artes. A Capela da Santíssima Trindade do Seminário Arquidiocesano foi pintada por Henrique Oswald, filho do grande artista plástico Carlos e neto do não menos ilustre compositor Henrique (vide post de 19 de Outubro).

Pormenor da ábside da Capela da Santíssima Trindade, Botucatu - óleo sobre reboco preparado, pintura Henrique Oswald.

Em 1952, João Carlos e eu demos um recital na Igreja de São Francisco, no Largo do mesmo nome, em São Paulo. Era uma homenagem ao eminente prelado. Nos anos subsequentes, oferecíamos um recital no Colégio Santa Marcelina, em Botucatu, com a renda inteiramente destinada à Vila dos Meninos. Por várias vezes fomos passar alguns dias no Arcebispado da cidade e, orientados por Dom Henrique, apreciávamos, nos mínimos pormenores, a belíssima pintura de Henrique Oswald na ábside da Capela. Foi nosso padrinho de crisma. Em 1963, em Campinas, oficiaria o meu casamento com Regina.
Recordações tornam-se necessárias. Dom Henrique mostrava-me, em seu quarto, algumas imagens em madeira, a representarem S. Francisco. Chamou-me a atenção sua cama, uma larga tábua envernizada coberta por lençol e manta, sem qualquer colchão ou acolchoado. Perguntei-lhe o porquê. Disse-me que era o mínimo de penitência a ser feita. Indaguei-lhe certa vez a respeito da corrente e do crucifixo, assim como do anel de autoridade eclesiástica, todos em madeira, seus objetos pessoais de todos os dias. Respondeu-me que ouro ou pedras preciosas, comuns à alta hierarquia da Igreja, representavam ostentação. Em outra oportunidade, no início da década de 70, dera um recital em Botucatu e no dia seguinte, bem cedo, fui visitá-lo na Vila dos Meninos, onde há muito se recolhera. Econtrei-o ajoelhado, naquela manhã fria, a podar umas rosas. Tentei levantá-lo. Disse-me que estava bem. Perguntei ainda como se sentia, após a renúncia da arquidiocese muito tempo antes, a fim de cuidar de crianças desamparadas. Baixou o capuz e serenamente respondeu: “Enquanto eu tiver braços para levantar e louvar a Deus, estarei bem”.
Grande orador sacro, seus sermões não apenas cativavam pela profundidade dos ensinamentos, mas igualmente pelo vernáculo impecável. Escreveu vários livros, entre os quais Matt Talbot – O Operário Penitente (Petrópolis, Vozes, 1945, 181 págs.) e Os Nossos Pobres Contos (Petrópolis, Vozes, 1952, 171 págs). Para este Natal, lembrei-me de um conto de Dom Henrique inserido no segundo livro mencionado. Em 1954, nosso padrinho ofereceu-nos essas duas pequenas obras. Li-os, e muito ficou naquele fundo da memória reservado àquilo de que gostamos.
Telefonei à Editora Vozes e gentilmente aquiesceram no sentido da publicação on line de Velho Natal, um conto, entre centenas de outros, escritos por autores os mais díspares, divulgados pelo mundo e relativos ao evento máximo da cristandade. Porventura um dos mais simples e despojados, características essenciais da personalidade de Dom Henrique. Transcrevo-o pois aos leitores:

Presépio - lápis de cor e papel colado, Maria Teresa, minha neta.

“ O Papai Noel, enviado do Menino Jesus, com suas longas barbas e seu capuz de ponta, já se fora…
Mas quantos presentes deixara! Nunca se mostrara assim tão generoso: tambor, corneta, livros de figuras, roupa e… um velocípede, pelo qual o pequeno felizardo tanto suspirara! Oh! Poder agora correr pelas alamedas do jardim, pelas calçadas e praças públicas, que prazer! Não era muito grande, não; e Papai Noel do Deus Menino dissera que, em breve já não lhe serviria. Mas, qual história! A gente não cresce tão depressa assim: sempre se conhecera do mesmo tamanho e a seu pai sempre vira com seus bigodes salpicados de brancura…
E o rapazito pulava de alegria. Nem era tudo: os armários estavam abarrotados de doces e empadas, nozes, amêndoas e avelãs; sobre as mesas era tudo flores e frutas, maçãs das bem vermelhinhas, e peras daquelas plenas de suco, como de água as esponjas; na cozinha, bem temperadinho, estava o mais gordo peru que fora, já na véspera, degolado. E enquanto pensamentos elevavam o pequerrucho, fazendo vir-lhe água à boca, lembrava-se de que, daí a pouco, vestiria sua roupinha nova, cor de neve, calçaria seus sapatitos pretos de verniz e, depois, todo faceiro, entre o papai e a mamãe, iria assistir à missa de festa na matriz. Lá veria o encantador presépio: o Menino Jesus nas palhas da manjedoura, as ovelhinhas a pastar pelas encostas das montanhas… de papelão, anjinho a voar, pastores com suas flautas a tocar, os reis magos com seus pajens e camelos, lá ao longe, tão longe, tão longe, que só se prostariam aos pés do menino, 12 dias depois. E quando ele tivesse examinado bem todas as maravilhas do presépio, apareceria o bondoso pároco, segurando um cálice de ouro, com os cabelos brancos como a lã das ovelhas; rezaria muito ao altar, contaria a seus paroquianos a história do Menino Deus, que sempre se ouvia com novo prazer. Lá em cima, na tribuna, cantariam: ‘Noite feliz!’ que ele também sabia. Depois, os meninos vestidos de vermelho, tocariam as campainhas, todos bateriam no peito, e lá iriam, papai e mamãe, com as mãos juntas e os olhos baixos, receber sobre a língua, das mãos do pároco, um pãozinho branco, que a mãe sempre dizia ser a morada do Menino Deus; e quando voltassem a seus lugares, o rosto do pai pareceria mais belo e a mãe, com lágrimas de alegria, o apertaria contra o peito, dizendo: ‘Meu filho, meu filho, pede a bênção a Jesus, para que nunca te afastes dele!’ – Depois voltariam para casa e, com os primos e com as primas… que festa o dia inteiro!
Oh! Natal! Natal! Que belo dia! Por que Jesus não nasceu mais vezes? Poderia alguém estar triste em tal festa? Poderia alguém chorar?
E os sinos da matriz bimbalhavam alegremente: ‘vinde adorar o Menino Deus!’
.. .. .. .. ..
E… o jovem despertou. Passou os olhos tristemente esbugalhados pelo quarto, onde a riqueza e o luxo se uniam ao desleixo e à desordem. Olhou para o relógio prateado da parede: nove horas; para a folhinha: 25 de Dezembro!
Os sinos da matriz, sim, repicavam, realmente, mas… o resto fora já, em tempos idos, realidade. Agora… fora um sonho.
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Natal! Natal! A roupinha branca, há muito que não a tinha; os pais já descansavam sob o mármore do sepulcro, aonde ele ia, uma vez por ano, contrafeito, depositar um punhado de saudades e colher uma braçada de espinhos e remorso. A história do Menino Deus era, agora, para ele, uma bela lenda para educar crianças. Com seus vinte e três anos já era senhor da grande fortuna paterna, que ele se encarregava de dissipar. Tinha liberdade, tinha ‘amigos’, tinha festas, mas não tinha felicidade, pois já perdera aquela inocência da qual a mãe era tão ciosa, e a fé, da qual o pai tanto se orgulhava.
De que servia o seu rio de dinheiro, se não era suficiente para comprar a alegria e a paz da sua infância? De que lhe servia a liberdade, se sua alma gemia em dura escravidão?…
O sonho fez-lhe mal. Levantou-se da cama, banhado em suor frio.
Correu a cortina do balcão, que abria para a rua, e viu o rosto do rapazito alegre, as crianças felizes, sobraçando os seus mimos, e os velhos bem dispostos, em seus fatos domingueiros.
‘Poderia alguém estar triste em tal festa? Poderia alguém chorar?’ E o rapaz atirou-se sobre a poltrona de veludo, cobriu o rosto com as mãos e … chorou! Chorou no meio de sua riqueza, enquanto os pobrezinhos, alegres, acudiam ao bimbalhar dos sinos, que chamavam, alvissareiros: ‘Vinde adorar o Menino!’”

Velho Natal (Old Christmas) is an unpretentious Christmas story written by Dom Henrique Golland Trindade (1897-1974), a priest and a holy man, once archbishop of the city of Botucatu, a position to which he resigned in order to minister to the poor, orphaned and helpless. A very dear friend of mine, he was the sponsor at my Confirmation and officiated my wedding cerimony.