O olhar do observador frente às manifestações de arte no Japão

Vai, portanto, o escritor, o poeta marinheiro,
com sua acuidade sentimental, sua excepcional sensibilidade,
seu temperamento de artista refinado,
o senso do típico e do pitoresco e, com a sinceridade que lhe é inerente,
traduzindo em páginas-retratos suas impressões
– verdadeiros instantâneos – de todo aquele mundo colorido,
lírico e heroico, ressumante de exótico saber.
Jorge Fonseca Júnior (1912-1985)
(“Wenceslau de Moraes e outras evocações”, 1980)

Neste segundo post a respeito de Dai-Nippon (Grande Japão), do escritor português Wenceslau de Moraes, abordarei as artes sob a observação arguta do autor. A diversidade artística japonesa não está em um capítulo especial. Moraes a dilui paulatinamente, fato que testemunha o apreço constante e amoroso. À medida que o contexto provoca a atenção acurada, a arte é louvada.

Fidelino de Figueiredo enumera da miniatura à grandiosidade, “cujo louvor em todos os tons é um ritornelo constante nos livros de Moraes, e a cerâmica, a porcelana, o cloisonné ou bronze porcelana, os metais, a arquitetura hidráulica, o lar japonês, modelo de ordem, de asseio, de galanteria nas suas leves paredezinhas de papel, tudo visto numa disposição de benevolência afetuosa, único preconceito da alma do nosso cicerone”.

Wenceslau de Moraes não pasteuriza a arte em conceitos estanques; antes, entende as particularidades de cada uma das manifestações. Inexiste a visão do turista, mas a do europeu que se radica no Japão e se amalgama com o que é pertinente às tradições locais. A natural inclinação de Moraes do todo ao pormenor, captando do gigantismo à essência do multum in mínimo, fá-lo entender os resultados da arte nipônica, sempre com um prazer invulgar.

Sobre a pintura, Moraes observa: “Bem o sabeis; a mãe da arte é a pintura; falar da pintura é falar de todas as artes. Havemos, pois, de falar da pintura. Mas antes, visto que não temos pressa, discorramos um pouco sobre os órgãos do artista que mais particularmente se interessam na criação de um objeto, seja um desenho, seja um bronze, seja uma porcelana, seja o que for, isto é, o olho e a mão, o olho que vê e a mão que executa”. Encanta-o a visualização, fruto do culto ao belo que a natureza oferece. Comenta: “Mas o dom assombrosamente predominante desse olhar nipônico, quando se trate da arte, e por ela sobejamente confirmado, é uma qualidade afetiva extrema, inconsciente porventura, pelos encantos da natureza, por tudo que é visível e belo, por todas as concordâncias da cor, da luz, da forma”. A História da arte renderia tributo através do tempo aos pintores Utamaro (1753-1806), Hokusai (1760-1849), Hiroshige (1797-1858), entre outros. Quanto a Katsushika Hokusai, estende-se, e o pormenoriza em precisas observações “…foi um idólatra, tendo na natureza o seu feitiço; e estudou, com o tenaz fervor de um iluminado, as mil e uma formas da verdade, todas as delícias da cor, todos os segredos da vida”. Saliente-se que a influência das estampas japonesas foi notória no impressionismo em França. Claude Debussy (1862-1918) se inspiraria na gravura “A grande onda”, de Hokusai, para o seu tríptico sinfônico “La Mer” e mantinha gravura de Utamaro emoldurada. Em “Poissons d’or”, terceira peça do segundo caderno de Images, o compositor teria como inspiração uma laca japonesa.

Em período efervescente das artes e da literatura em França, causaria admiração o traço único, sem falha, preciso, irremovível, a inexistir espaço para retoque nas criações das gravuras japonesas. Wenceslau de Moraes capta a essência da pintura nipônica. Sua interpretação, habituada anteriormente às pinturas ocidentais, se extasia frente à precisão oriental e às mensagens transmitidas. Eliminado o supérfluo, permanece esse traço que capta o instante do acontecido e a autenticidade do tema em pauta. Escreve: “Uma pintura japonesa é sempre uma invocação. Adivinha-se o trabalho do pincel, não se esforçando em reproduzir a natureza, não em ser criador, mas em traduzir a impressão persistente que nos fica do espetáculo da mesma natureza. Eu me explico melhor, exemplificando: o pincel nipônico não conhece a veleidade de criar uma rosa, o que só pode, bem pensado, fazer o Pai do Céu; prescinde de modelo, fá-la de cor; quando a traça não se preocupa em enganar as abelhas que venham esvoaçar sobre o papel em busca de mel para o seu cortiço; preocupa-se apenas com a flor, no que dela persiste mais intenso na reminiscência, pelos seus atributos dominantes; é como se dissesse que aquele pincel inteligente não pinta, pensa e recorda”.

Admira o kakemono, arte pintada ou caligrafada em longas tiras de seda, cetim ou papel, presentes nas moradas das várias classes sociais. Conservadas em rolos, amiúde são estiradas quando da visita de familiares e amigos, ornando os ambientes desprovidos de excessos. Moraes observa: “Não escapa à observação do amador a íntima preocupação de realces, de harmonias que existem entre o desenho e o mimo de coloração do tecido; há nessa coloração como que um misterioso estímulo do sentimento, predispondo para a melhor compreensão do assunto”.

Clique para ouvir de Tsuna Iwami, “Algo sutil e profundo”, a partir de poema de M.Miyamoto, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=tRgb1y0sStg

Moraes tem posições de interesse sobre a porcelana nipônica, historiando-a e, após, enaltecendo-a, apesar de críticas à industrialização. Considera que, apesar de os processos fabris terem origem na China, os japoneses se serviram da livre fantasia. Enfatiza pormenores dessa arte que “encanta pela gentileza das formas, pelo mimo nos desenhos, pelo brilho nos esmaltes. Na jarra, no vaso, na garrafa, no perfumador, no boião, o mais saltante enlevo está na doçura sugestiva das curvas, na geometria amorosa do nu, inédita, que parece inspirar-se na gracilidade suave de um braço, ou na redondeza túmida de um seio, ou na amplidão serpentina de um quadril. Depois vem a ingenuidade bucólica do desenho, nas florinhas que estrelam os fundos, nos insetos e nas aves que voejam, nos longes cariciosos da paisagem. Depois ainda é a harmonia inimitável das tintas e dos ouros, das cores inefáveis, banhadas na frescura eterna dos esmaltes”. A influência da louça japonesa na Europa não é esquecida pela pena moraesiana e, após mencionar as fábricas de Delft, na Holanda, e a produção em Saxe e Chantilly, comenta: “Estais julgando: é a moderna louça luxuosa da Europa devendo tudo ao Japão”.

Moraes enaltece as olarias japonesas, que datam dos primeiros séculos da era cristã. Escreve: “Acima da porcelana em méritos, como arte nacional, está a olaria japonesa. É neste ramo da cerâmica, no trabalho paciente das argilas, que o sentimento e a viva originalidade indígena atingem um primor adorável”. Após considerar a alta feição artística da faiança japonesa  “…profundamente nacional, mais ornamental que utilitária, amorosa da natureza, das formas animais, por vezes humorística e que é representada principalmente pelas inúmeras formas da estatueta, do boião de perfumes, da caixa de remédios, do perfumador, da floreira. Compreende-se efetivamente o que possa dar essa argila pastosa, obediente a todos os contatos, quando sujeita às mãos habilidosas, mais ligeiras, mais artísticas que se conhecem”.

Wenceslau de Moraes discorre sobre materiais como o bronze e a madeira, do grandioso à miniatura, dos Budas gigantes aos netsukês de madeira ou marfim. Impressiona-o o culto às imensas esculturas em bronze de Buda, os Daibutsus de Nara e de Kamakura.

Sobre o teatro, Moraes está atento: “O teatro japonês cultiva um naturalismo estranho, minucioso nos ínfimos detalhes, por vezes duma perfeição inconcebível. Não é o enredo, o mistério sentimental do drama que procura interessar o espectador; é o jogo físico, mecânico, que sugestiona a vista, e assim encaminha por indução o espírito a um grau de sentimentalidade individual e vaga, que borboleteia certamente em cada um em mil divagações, de que cada um se constitui o exclusivo auto; um surdo poderá compreender o drama, um cego, nunca”. Os Teatros Nô e Kabuki estão entre os mais renomados.

Ao comentar os cultos xintoísta e budista, Moraes escreve: “Insinua-se fortuitamente no Japão, pelo século VI da era cristã, a crença budista trazida da Coreia”. Acrescenta: “Os dogmas dos dois cultos acomodam-se, contemporizam-se de parte a parte”. Entre os deuses familiares está “Benten, a deusa das artes e da beleza, representada como uma formosa cortesã dedilhando numa espécie de guitarra indígena, o biwa”.  A gravura de Hônen Metamorfose da Lua não estaria a render culto a Tsukiyomi-no-Mikoto, o deus lua, um dos deuses da crença xintoísta?

Moraes não deixa de pontuar alguns instrumentos musicais, estes sob os dedos etéreos das gueixas: “Os instrumentos indígenas, onde pousa a alvura das mãos das gueixas, são o shamisen, o koto, o biwa, outros ainda lembrando a guitarra. O bandolim, a harpa; instrumentos de corda, adaptando-se assim obedientemente à intenção, ao vago, ao incompleto da trova, dos cantares”. A imaginação moraesiana viaja ao som instrumental e das vozes: “As cordas que gemem em trêmulos, soltam exclamações súbitas, acompanhando a voz em melancolias arrastadas; é a música da vida, o ramalhar das árvores, o sussurro das águas, o ciclo dos insetos e dos pássaros , o grito insólito do corvo cortando o espaço; por sugestão, adivinha-se nela o eterno enlevo dos sexos, a curva dardejante das borboletas brancas perseguindo-se sem se alcançarem, todos os dramas da simpatia e do desejo, da alma e dos sentidos, que constituem a lei da existência universal”.

Quanto à arte singela das moradas japonesas, Moraes as compara às “habitações dos chamados povos cultos nas civilizações ocidentais”. Nessa visão, compara o luxo das moradas europeias plenas de móveis e objetos, com a casa japonesa: “Para o lar japonês, entra-se deixando à porta os sapatos, como para um místico santuário; não procureis a sala, que não existe; o lar é da família e dos amigos íntimos; todos os aposentos são iguais, sem mobília, sem ornamentações, com a simples esteira de repouso sobre a qual os corpos se entendem em grupos afetuosos, bebendo chá, fumando, palestrando, espraiando o olhar pelos caprichos do jardim, pela paisagem distante: maciços verdes de arvoredo, lombadas flexuosas de colinas, espumas de cascatas, azuis serenos do céu e de águas que são, afinal, a portentosa ornamentação da casa japonesa”. Essa comparação com moradas ocidentais não evidenciaria o âmago do despojamento ao qual Wenceslau se propôs nessa japonização voluntária?

Não sendo possível abordar em dois posts, com o espaço a que  me proponho semanalmente, toda a riqueza de Dai-Nippon, que permeia uma multiplicidade de temas através de um olhar agudo e de um pensar privilegiado, recomendaria ao leitor que deseje saber mais sobre o escritor buscar preciosa bibliografia portuguesa, mas também brasileira, assim como as obras de Wenceslau de Moraes elencadas no post anterior.

Clique para ouvir de Tsuna Iwami, “Idade Madura”, a partir de poema de M.Miwa, na interpretação de J.E.M.:

(62) Tsuna Iwami – Maturity – José Eduardo Martins – piano – YouTube

In this second post about Wenceslau de Moraes’ “Dai-Nippon”, I focus on the artistic manifestations he has punctuated. The evidence of a voluntary and loving japanization is clear in Moraes, who gives Western readers a fascinating glimpse into old Japanese culture not with a tourist’s view, but that of the European who settles in Japan and adopts the local traditions.

A niponização de ilustre figura literária portuguesa

O Dai-Nippon é a explicação interpretativa
do que há de mais específico e diferencial na vida japonesa,
feita com um critério japonês,
que o admirável escritor não teve de compor laboriosamente,
por via didática,
mas que brotou espontâneo da sua simpatia amorosa
e do seu desapego do ocidentalismo.
Fidelino de Figueiredo

Em edição brasileira, publicado durante as comemorações dos 450 anos da chegada dos portugueses ao Japão (1543-1993), Dai-Nippon, de Wenceslau de Moraes (Rio de Janeiro, Nórdica), teve justa homenagem da comunidade portuguesa, com o apoio cultural da Academia Lusíada de Ciência, Letras e Artes (da qual fui integrante) e da Aliança Cultural Brasil-Japão. Àquela altura, ofereci recital de piano na Casa de Portugal, privilegiando obras de compositores dos três países como um dos eventos da Exposição Wenceslau de Moraes, realizada entre Novembro e Dezembro de 1993 naquela tradicional Casa.

A leitura de “Dai-Nippon” fascinou-me àquela altura, inclusive pela apresentação, o ensaio magnífico de Fidelino de Figueiredo (1888-1967), notável homem público, professor, historiador e crítico literário português. Sob o título “O homem que vendeu a sua alma”, o ensaio foi publicado em 1925 no volume “Torre de Babel”.

Recentemente, uma amiga falou-me de Wenceslau de Moraes e mostrou interesse em conhecr “Dai-Nippon”. Essa chamada fez-me reler o livro, 480 anos após o desembarque português no Japão, e a impressão durante a revisitação apenas ficou ratificada e acrescida.

Considere-se que os portugueses foram os primeiros ocidentais a aportar no Japão aos 23 de Setembro de 1543. Fernão Mendes Pinto (1509-1583), aventureiro, mercador, explorador, missionário jesuíta, apesar de lá não estar nessa data, durante vinte e um anos desembarcou em terras do Oriente, e foi o autor da célebre Peregrinação, “primeira obra do japonismo literário”, segundo Fidelino de Figueiredo. Escrita tardiamente, de memória, tantas vezes sem quaisquer apontamentos, há que se perdoar equívocos, dadas as circunstâncias. Mencioná-lo se faz necessário, mormente pelo fato de que, séculos após, Wenceslau de Moraes cultuará de maneira plena o japonismo e se lembrará do autor de Peregrinação em Dai-Nippon.

Wenceslau de Moraes foi uma figura singular que, após a formação junto à Escola Naval, esteve a serviço da Marinha de Guerra Portuguesa, período em que foram várias as suas atuações de Moçambique ao Timor, Japão, Macau. Nesta cidade foi professor no Liceu e se casou com uma chinesa, Vong-lo-Chan, com quem teria dois filhos. É nomeado cônsul em Kobe em 1898, deixando esposa e filhos em Macau. As duas japonesas com viveria sucessivamente, Ó-Yoné Fukumoto e Ko-Haru, tia e sobrinha, morrem adoecidas, o que o levou à depressão. No Japão, a sua atividade literária se intensifica e, como correspondente no Exterior para diversos periódicos, delineia lentamente sua visão como arguto observador de aspectos essenciais do país, sendo que os seus relatos, mormente quando em Tokushima, seriam bem difundidos em Portugal. Com o passar dos anos, Wenceslau de Moraes sofre transformações e se japoniza. Pratica os costumes do Japão e traja-se à maneira dos habitantes locais. Faleceu em Tokushima aos 75 anos. Monumento em Tokushima e em Kobe homenageiam o escritor. Entre suas obras, salientemos: Traços do Extremo Oriente (1895), Cartas do Japão (1904), O culto do chá (1905), Fernão Mendes Pinto no Japão (1920), Ó-Yoné e Ko-Haru (1923), Os serões no Japão (1926).

Daí-Nippon é obra referencial. Após abordar sucintamente a história do Japão com o olhar de um europeu, Moraes penetra no âmago das culturas do país a descreve com admiração temas relevantes, entre estes as artes em suas modalidades, costumes, afetos, arquitetura religiosa, as moradias típicas e a economia do mobiliário, as tradições enraizadas desde tempos imemoriais, as armas e o sabre perene nas lutas marciais, a mulher japonesa — essa figura feminina delicada e gentil, inúmeras vezes exaltada em sensual poética —, o chá como elo nas relações, a morte entendida sem luto.

Após aportar inúmeras vezes em terras do Ocidente e Oriente, será no Japão que encontrará a sua tebaida. A escolha pelo país, voluntária, definitiva, acentua ainda mais a determinação de mudança em direção à japonização, e o olhar do observador ao longo dos anos saberia interpretar até pormenores que os habitantes locais, imersos em suas rotinas, porventura minimizavam. Há convicção plena em suas narrativas autobiográficas.

Clique para ouvir, de Tsuna Iwami (1923-2012), “O Mar”, a partir de poema de M. Miwa, na interpretação de J.E.M. (gravação em long play – 1979). :

https://www.youtube.com/watch?v=PK2qMzhu7IU

Creio necessário inserir alguns parágrafos basilares de Dai-Nippon, pois se houve, mormente após Hiroshima e Nagasaki, transformações em muitas áreas elencadas acima, outras tantas preservam tradições milenares. Há que se entender as observações de Wenceslau de Moraes sobre o Japão e seus costumes como escritas por um ocidental que, absorvendo o japonismo por inteiro, não deixou de tantas vezes, mesmo inconscientemente, inclinar-se à irresistível comparação entre duas culturas tão diferentes. É cônscio de que da estada dos portugueses pelo Japão, que se estende até meados do século XVII, “pouco ficou, mas ainda o bastante para assinalar até hoje a sua intensa influência momentânea. De monumentos, uma ou duas pontes de tosca alvenaria, galgando pela ribeira que serpeia por Nagasaki. De crenças, uma mística flor de cristianismo, que todas as matanças não lograram fazer murchar inteiramente e que, dois séculos depois, foi revelada numa tribo fiel de gente humilde, vivendo às ocultas na comunhão da mesma fé, ensinada pelos missionários aos trisavós. Na linguagem ficou uma multidão de palavras portuguesas, hoje inteiramente nacionalizadas; imagine-se a agradável surpresa de um português quando escuta esses vocábulos patrícios, proferidos tão longe da sua terra”. São muitos. A título exemplificativo, mencionemos os termos tabaco, bidro (vidro), copocatana (espada), conpeito (confeito), pan (pão), arigatô (obrigado), biôbu (biombo)…

Curiosamente, em Dai-Nippon o autor escreve que o japonês não cria, mas imita à perfeição, comentando que, da decadência da “maravilhosa originalidade artística deste povo, resulta por outro lado a noção profunda do seu intensíssimo dom imitativo, adaptador, dom que já hoje faz arrecear seriamente a egoísta Europa, diagnosticando-lhe não sei que futuro de lutas de competência, de arrojos pertinazes, de gente que muito quer e muito pode”. Após a Segunda Grande Guerra, o Japão derrotado, a criação do denominado Plano Colombo visou ratificar a influência dos Estados Unidos nos países que sofreram os efeitos da Guerra em países asiáticos, possibilitando investimentos na nação japonesa. Estou a me lembrar de que, na adolescência e juventude, nos primeiros lustros da segunda metade do século XX, era comum falar-se pejorativamente da imitação dos produtos ocidentais replicados no Japão. As décadas vindouras provaram a incrível recuperação do país e a inovação em tantas áreas. Hoje, o Japão integra o G7, grupo composto pelos países mais industrializados e com índices altos de desenvolvimento humano. É pois de interesse uma observação que Wenceslau de Moraes faz àquela altura: “No entretanto, o operário europeu envolve-se nas grandes lutas sociais, afrouxa no trabalho, estorce-se de miséria sobre a enxerga do lôbrego casebre, e em filhos inúteis prolifera… Não virá também um dia, longe sem dúvida, para a indústria nipônica bater-nos à porta, mais barata e mais perfeita do que a nossa? Ai, Inglaterra!”.

Reiteradas vezes Wenceslau de Moraes escreve sobre a mulher japonesa. Tem por ela admiração em quaisquer condições. Estende-se sobre a figura feminina. Busca desvendar seus mistérios. Mussumês, gueixas, anmas (massagistas cegas) são observadas em seus gestuais, seus passos delicados e em seus dramas (no caso, aquelas que vivem no bairro de prazeres mundanos em Yoshiwara).

No próximo post abordarei temas relacionados às artes em suas várias modalidades e ao culto às imagens de Budas gigantescos.

“Dai-Nippon (Great Japan) is a singular book and its author, Wenceslau de Moraes, a Portuguese writer and journalist, ended up adopting the country of the Rising Sun, becoming almost completely Japanese and dying there.

 

A transformação vertiginosa da sociedade em direção ao impasse

Para que ame alguém a Humanidade,
se sinta disposto a guiar os mais pequenos no caminho do futuro
e não duvide da eficácia do esforço,
é sobretudo preciso que possua a longa perspectiva
que só dá o conhecimento das grandes realizações humanas
em todos os domínios.
Agostinho da Silva
(“Considerações”)

Recebo habitualmente a sábia coluna de Flávio Viegas Amoreira, escritor, crítico literário e poeta de valor. Publicada em A Tribuna de Santos, o texto de Amoreira é uma das poucas colunas realmente culturais de nossa imprensa. Seus livros de poesia e de análise literária estão entre os melhores neste país em que a cultura erudita, ao receber a “alcunha” de elitista, tem sido vilipendiada, para gáudio de extremistas sociais mediáticos. Soma-se a essa leitura mensagem de Gildo Magalhães, ilustre professor titular da História da Ciência (FFLECH-USP), que comenta o último post sobre excepcionalidades.

Ao longo de quase 16 anos tenho apontado em meu blog o desmonte progressivo da atividade cultural erudita em nosso solo. Décadas atrás, habitualmente escrevia para um respeitado Suplemento Cultural de São Paulo, que mantinha uma equipe altamente qualificada para a análise das temáticas a serem abordadas. Em princípio, reuníamo-nos duas vezes ao ano para debater conteúdos, primordialmente sobre artes e literatura. Estou a me lembrar de que durante 10 anos colaborei com artigos sobre música, principalmente, e tantos deles tinham três páginas!!! Resultaram em livro publicado em 1990 (Belém, Cejup) sob o título “Encontros sob Música”, com prefácio do saudoso e ilustre acadêmico Nilo Scalzo. A certa altura, um comunicado da direção aos colaboradores – entre estes havia figuras referenciais na literatura e nas artes da cidade – rezava que os artigos teriam de ser mais econômicos e que o jornal poderia, se necessário, diminuir a dimensão de determinadas contribuições. Escrevi à direção desligando-me e argumentando que não poderia admitir interferência nos artigos enviados, pois nunca antes tinha havido ingerência do editor-chefe; pelo contrário, apenas estímulo. Progressivamente o Suplemento descaracterizou-se. Jamais voltei a ler o Jornal que o mantinha e realmente não sei se ainda existe aquele veículo cultural, referência na cidade.

No incisivo artigo “Sem férias de ti”, Flávio Viegas Amoreira evidencia a importância sempre fulcral da literatura. A inspirar o texto, o atual período de férias. Focaliza um autor emblemático, Michel de Montaigne (1533-1592), e faz vários questionamentos cujas respostas, na atualidade, estão explícitas nos “Essais” do notável filósofo, escritor, humanista e moralista francês.

A anteceder a justa louvação a Montaigne, Amoreira insere posicionamento claro e objetivo sobre a decadência sempre em ascensão de valores antes cultuados. Essa colocação vem ao encontro de temática que insistentemente integra meus posts nesses já quase 16 anos de blogs hebdomadários e ininterruptos. Escreve Flávio Viegas Amoreira: “Visito sites e, quando abro a homepage de algumas plataformas de notícias, sou bombardeado por informações insólitas, o que só reforça a necessidade de um jornal impresso ou eletrônico que me dê nexo e credibilidade interpretativa em meio a tanta fadiga digital. Vivemos na era da euforia. Tudo precisa causar e bombar. A moda diz mais que estilo. Euforia, originária do grego, é isso: reagir a tudo, extrapolar do seu eixo, o eu para fora, aloprar para ser mais atual”. Acrescentaria que um dos mais importantes sites de notícias do país, já na homepage, entre várias chamadas sobre política, sempre ideologicamente construídas, e a respeito do cotidiano bem duvidoso, exibe imagens e anúncio da mais abjeta pornografia, só para assinantes abrirem e, logicamente, há aqueles que acessam. Todavia, a simples exibição das imagens já traduz a decadência moral que invade as colunas noticiosas, uma verdadeira blasfêmia. Chegamos ao impasse referente à preservação de costumes e moralidade.

Corroborando as precisas palavras de Amoreira, transcrevo posição de Gildo Magalhães relativa a um de meus últimos posts, em que comento excepcionalidades: “São constatações justas, embora pareçam duras. Podem-se aplicar a todos os ramos de atividade, desde intérpretes e compositores até pintores, professores, marceneiros, etc. Naturalmente surge ademais a questão do reconhecimento através das premiações. Estas em si têm certa dose de relativismo – vide, por exemplo, o prêmio Nobel. De quantos agraciados com o Nobel de literatura poderíamos dizer que sua obra sobrevive? Novamente seria uma minoria. Isto para não dizer que o prêmio ignora luminares que, apesar de não ganharem, têm uma perenidade desconcertante. Creio que isto se aplica até mesmo aos prêmios relativos à ciência, como a física ou  a química. Para contrariar aquilo que foi a contemporaneidade, vez por outra um talento especial é resgatado do oblívio da História, como acontece com algum compositor do passado, por exemplo. É este um dos meus incentivos para o ofício de historiador, de reavaliar aquilo que vem rotulado com a estampilha do Sic transit gloria mundi” (assim transita a glória do mundo).

Não pude deixar de pensar em Mário Quintana (1906-1994), notável poeta, jornalista e tradutor, mencionado em “Sem férias de ti” e que, nos comentários de Flávio Viegas Amoreira, tem seu perfil delineado: “Mário Quintana – que viveu para os livros, celibatário, solitário feliz e mestre respeitado nacionalmente – pouco saiu de Porto Alegre. Tradutor de Proust, erudito modesto que foi rejeitado pela Academia Brasileira de Letras, nunca se insurgiu: era leitor de Montaigne”. Repetia-se na ABL o que ocorre entre os agraciados com o Nobel, mormente na literatura, a inobservância por vezes do pleno mérito, privilegiando-se as figuras mediáticas sob fortes holofotes e desprovidas de obra literária consolidada. Nada a fazer, pois premiações e condecorações estão sujeitas a tantos outros interesses!!!

Nos termos do tema do último post sobre excepcionalidades, em que coloquei como requisito essencial o denodo, a aplicação, a disciplina e a concentração, Gildo Magalhães tece relevante comentário sobre figuras excelsas que percorreram a existência breve ou longamente dedicando-se a várias atividades com perseverança. Escreve: “São notáveis mesmo estes exemplos de talentos múltiplos, entre eles o de Paderewski, como você mesmo discorreu em outro excelente blog (vide Ignaz Jan Paderewski, 19/03/2022). E sobre o trabalho febril e ao mesmo tempo genial, a ciência também tem exemplos. Um deles é o de Évariste Galois, que morreu em 1832 aos 20 anos, num duelo. Ele passou a noite anterior ao encontro fatal escrevendo e fazendo cálculos para uma memória, que acabou ao amanhecer e mandou entregar ao amigo Cauchy, ‘caso morresse’ – funesta premonição. Esse trabalho resolveu um problema secular e se demonstraria com o tempo a peça basilar para a criação de um novo ramo da álgebra, com desdobramentos até os dias de hoje”.

Os argumentos de Flávio Viegas Amoreira e de Gildo Magalhães corroboram posicionamentos de tantas personalidades conscientes dessa hecatombe dos valores culturais, dos costumes e da moralidade. Vozes que, não obstante, não influenciam os detentores do poder, a mídia atual e, principalmente, aqueles que manipulam essas tendências que levam à degeneração e que visam sempre ao lucro como desiderato final. Hélas, trois fois hélas, como bem reza a língua francesa para designar com ênfase a nossa tão presente palavra infelizmente.

An incisive article by writer and critic Flávio Viegas Amoreira agrees with positions that I have been putting forward in my posts, the decadence of values accepted for centuries. The full professor of the University of São Paulo Gildo Magalhães, for his part, comments on the previous post, emphasizing that awards not always honor the right figures in history.