Da solidão a uma noite mágica

De todas as histórias que nos contava guardei apenas
uma vaga e imperfeita lembrança. Porém,
uma delas ficou tão nitidamente guardada em minha memória,
que sou capaz de repeti-la a qualquer momento,
a pequenina história do nascimento de Jesus.
Selma Lagerlöf (1858-1940)
“Lendas cristãs”
Prêmio Nobel de Literatura (1909)

Quantos de nós, cristãos, não temos algumas recordações do Natal enquanto crianças? Havia algo misterioso relacionado ao evento maior da cristandade. Quando miúdos, era-nos ensinada toda a saga que culminaria com o nascimento de Jesus e, nesse contexto, também aguardávamos a figura do Papai Noel com seus presentes.

O tempo passou e, aos 20 anos, um prêmio num Concurso Nacional de Piano em Salvador contemplou-me com bolsa do governo da França para estudar em Paris. Devido a não burocracia dos franceses, poucos dias após já estava em Paris.

Primeiro Natal fora do lar naqueles remotos tempos de amizades ainda não solidificadas. Intenso estudo pianístico, sob orientação da lendária pianista e professora Marguerite Long, levava-me, por vezes, a 10 horas diárias de estudo.

Noite gélida na véspera do Natal de 1958 em Paris. O barômetro apontava 3 graus negativos no portal do prédio onde morava, Rua Jacques Bingen, 16, no 17ème. Sai a caminhar sem destino preciso. No percurso via muitos apartamentos iluminados, a contrastar com o aspecto dos prédios que, àquela altura, ainda mantinham um cinzento sombrio, treze anos após o final da 2ª Grande Guerra. As passadas a esmo na gélida noite apenas acentuavam um sentimento de nostalgia. Nevava tenuemente.

A intenção primeira era continuar a andar por uns bons quilômetros sem rumo preciso, mas a cerca de um ou dois km após, ao passar em frente a um edifício que mantinha as luzes acesas e portas abertas, ouvi vozes femininas a cantar. Surpreso, simplesmente parei e fiquei encantado após pensamentos, se não negativos, incertos. Repentinamente, duas freiras já com certa idade desceram uns poucos degraus da escada e, agitadas, conversavam sobre a ausência do organista para a missa do galo. Delas me aproximei e perguntei-lhes se algo grave ocorrera. Disseram que o coral das noviças sempre cantava com acompanhamento na noite de Natal e que sem um guia se sentiam desamparadas. Afirmei-lhes que estava em Paris a estudar piano e que se quisessem… A agitação transformou-se em sorrisos largos e conduziram-me ao recinto onde as moças estavam realmente desconsoladas. O instrumento era um antigo harmonium ou harmônio. Deram-me as partituras e iniciamos a seguir os ensaios, que demoraram uma boa hora, pois logo após cidadãos, a maioria constituída por casais de idosos bem protegidos do frio intenso, adentraram parte da sala transformada em Capela.

Solicitei que uma das freiras ficasse ao meu lado para as entradas dos hinos religiosos durante a Santa Missa. Não me recordo das peças sacras que acompanhei no transcurso da cerimônia religiosa, apenas vindo-me à memória a célebre “Adeste Fidelis”. À medida que transcorria a Missa algo extraordinário se passava comigo, uma espécie de entusiasmo contido. Finalizada a Missa, enquanto os fiéis ainda permaneciam na Capela, toquei, em ato espontâneo naqueles momentos de confraternização, “Jesus Alegria dos Homens”, de J.S.Bach-Hess, incidente inusitado, mas que agradou as irmãs da Ordem religiosa.

Clique para ouvir, de Bach-Hess, o coral “Jesus alegria dos homens”, na interpretação de J.E.M. (gravação realizada em Mullem, Bélgica, 2004):

https://www.youtube.com/watch?v=flrkpW5L4KQ

Findos os ofícios, despedi-me das freiras, que não me deixaram partir, fazendo-me um convite, pois no salão contíguo à Capela, haviam preparado uma ceia singela. Para o jovem que eu fui, aquele sincero apelo para que permanecesse foi um verdadeiro bálsamo, evocou o que sempre senti nas festas natalinas em casa de meus pais e dissipou quaisquer pensamentos de nostalgia. Ao perguntar a uma das freiras a Ordem a que pertenciam, disseram-me que se tratava de uma irmandade católica de origem norte-americana.

Ao regressar naquela noite tão fria rememorei tantos contos lidos ao longo das décadas que invocavam episódios mágicos ou misteriosos relacionados ao Natal. Fiquei a pensar que não teria sido apenas o acaso, mas algo mais, pois até então nunca havia transitado por aquela rua. A não menos de 100 metros de onde morava há a Église Saint-Charles-de-Monceau, na Rue Légendre, igreja que frequentei várias vezes, tendo por ela passado no início da caminhada daquela noite, mas sequer prendeu-me a atenção.

Clique para ouvir do notável compositor e meu estimado amigo, Eurico Carrapatoso, “Ó meu menino Magnificat em talha dourada”. Coro e Ensemble Olisipo, soprano Angélica Neto:

https://www.youtube.com/watch?v=Mdud4L0yR4U

Se tivesse de enumerar outras reuniões natalinas mantidas na memória, não saberia precisá-las em seus pormenores. Esvaíram-se e apenas lampejos veem-me à mente. Qual a razão de unicamente aquela véspera de Natal em Paris ter ficado indelével, com suas cenas incólumes? Ao pensar nelas, a mente ativa as imagens registradas e guardadas no meu de profundis. O notável filósofo francês Vladimir Jankélévitch (1903-1985) afirmava que o segredo se explica, o mistério é insondável.

Fosse hoje, não mais me sentiria sequer seguro a perambular noite adentro pelas ruas menos frequentadas de Paris.

A todos os leitores desejo um Natal em Paz, algo de que estamos a necessitar nestes tempos turbulentos por que passa o país.

Clique para ouvir “Natal de Elvas”, na interpretação do Coro Capela Gregoriana Laus Deo, dirigido pela minha dileta amiga Idalete Giga, que realizou a harmonização da música extraída do Cancioneiro alentejano:

https://www.youtube.com/watch?v=l5YnExjckwU

Of all Christmas nights I have attended, very few actually remain in my memory. Only one was unforgettable: a magic Christmas eve in Paris in 1958, probably the happiest of my entire life, indelibly retained in my mind with all details.

Um notável músico-pensador argentino

Por que insistir em afirmar que um artista se sacrifica pelo seu ideal:
seria mais razoável considerar que é o ideal que o sacrifica.
Ou, mais uma vez, pode-se supor que, se há sacrifício,
é sempre em nome de uma vocação,
o que diminui a martirologia dos sacrificados.

A verdadeira maturidade só começa
quando o homem toma consciência efetiva da sua própria solidão.

Juan Carlos Paz
(“Memorias I”)

Um dos prazeres do leitor é regressar a um livro décadas após a leitura. Meu dileto amigo, arquiteto António Menéres, após sólida carreira em Portugal, deixou impressões em seu livro autobiográfico “Crônicas contra o esquecimento” (vide blog: 29/07/2007). Como define bem o apreço que adquirimos pela obra impressa! Escreve Menéres: “Sempre que posso olho os meus livros, quer as lombadas simplesmente cartonadas, a sua cor, os títulos das obras; mesmo sem os abrir adivinho o seu conteúdo e, quando os folheio, reconheço as leituras anteriores, muitas das quais estão sublinhadas, justamente para me facilitar outros e novos convívios”. Deu-se o mesmo ao ver a lombada de um livro numa estante bem alta, subir a escada metálica e voltar a visitá-lo quase cinquenta anos após!  Ratifica a apreensão que se tem hoje dos livros online, assim como do já quase sepultamento dos CDs. Perde-se o contato físico e dificilmente há o retorno àquilo que jaz nos arquivos “voláteis”. Dir-se-ia que uma névoa está a se tornar cada vez mais densa, a nos separar daquilo que denominávamos biblioteca individual. Quanto às públicas, tantas delas extraordinárias, poderão brevemente ter o nome substituído pelos termos “Museu dos Livros”. Um dos meus amigos só frequenta literatura pelo tablet. À minha pergunta se saberia apontar alguns dos livros assimilados, respondeu-me que não saberia. Os tempos atuais apagarão a memória “física”? Temo pela fatalidade.

“Alturas, tensiones, ataques, intensidades. (Memorias I)”, de Juan Carlos Paz (Buenos Aires, De La Flor, 1972), possivelmente jamais teria retornado para uma nova leitura não fosse a sua presença silenciosa na mais elevada estante. O debruçar atual apenas se adequou perfeitamente aos nossos dias, mercê também do perfil do compositor, teórico e pensador argentino.  Não há defasagem no seu pensar que surge já nas primeiras décadas do século XX e se desenvolve com coerência até pouco antes de sua morte em 1972. O pensamento do autor é atualíssimo e fica patente que há um recrudescimento quanto aos aspectos preocupantes elencados por Paz, a evidenciar sua extraordinária visão atemporal.

Após estudos em Buenos Aires, Juan Carlos Paz aperfeiçoou-se em Paris na Schola Cantorum, sob a didática de Vincent d’Indy. Foi um dos fundadores do “Grupo Renovación” (1929) e em 1936 funda os célebres “Conciertos de la Nueva Música”. Paz foi talvez o mais influente incentivador da música contemporânea na Argentina, sendo o introdutor da técnica dos doze sons estabelecida por Arnold Schoenberg, técnica por Paz abandonada em detrimento de uma linguagem mais experimental, diferentemente do compositor francês Serge Nigg (1924-2008), que foi o primeiro a compor obra dodecafônica em França, rejeitando-a poucos anos após a favor de criações mais tradicionais (vide: “Serge Nigg – Captar o passado, Apreender o presente, Pressentir o futuro”, 04/03/2011). Apesar de não ter composto muito, a produção de Juan Carlos Paz tem interesse. Deter-me-ei nos aspectos que não envolvem a técnica composicional, temática pertencente a um outro fórum que não este dos posts semanais com destinação mais eclética.

Clique para ouvir de Juan Carlos Paz, “Ritmica Ostinata”:

(541) Juan Carlos Paz – Ritmica Ostinata – YouTube

No livro em apreço tem-se basicamente o pensamento multicultural do compositor. Técnica de composição, tradição e vanguarda, sociedade, repertório, recepção pública, arguto senso crítico a respeito do estágio da música no século XX. Inseridas no livro, reflexões múltiplas sobre o cotidiano observado com agudeza. Nada é despiciendo em sua avaliação. Anota e transcreve, por vezes é anedótico quando o olhar e a mente captam um momento transformado em frase jocosa. Um aspecto fulcral do pensamento de Juan Carlos Paz é a coerência argumentativa, seja na avaliação a mais aprofundada, como no supérfluo tratado com humor ou desalento.

Muito do pensar do autor causou-me forte impressão àquela altura, ratificando-se no presente sob outra percepção, basicamente mercê dos acúmulos após tantas décadas. No post apresento segmentos do raciocínio de Paz relativos às várias áreas frequentadas pelo compositor e teórico.

No prólogo já alerta: “A realização deste livro me divertiu, em parte e menos divertidamente, diria, motivado pelas limitações facilmente comprovadas; todavia decidi publicá-lo, não para que aqueles que o lerem aprendam a corrigir seus erros às custas dos meus, segundo a hipócrita atitude ou conselho mais ou menos velado dos autores de memórias, diários, confissões, mas para que os cometam melhor do que eu, em forma mais atrativa, intensa e divertida, se ao menos puderem”.

Sobre o ato de compor: “Para quem escrevo música, poderia alguma vez questionar-me. Afirmaria que escrevo para mim; para quem, francamente, não sei nem pensei; pois é tal a quantidade de música que se escreve, – à qual agregamos a nossa – que caberia a pergunta, à parte os porquês e para quem, simplesmente o quando e o porquê”.

Após mencionar a célebre frase de Buffon (1707-1788), Le style c’est l’homme, enumera uma quantidade expressiva de grandes compositores do passado notabilizados pelos seus estilos definidos, precisando que os que os sucederam formaram escolas e foram meros teóricos. Essa postura crítica se estende por uma série de reflexões em que condena o establishment que faz proliferar epígonos, tantos deles sem talento.

Paz considerava Moussorgsky (1839-1881) o virtual precursor do expressionismo sonoro e acrescenta: “… personifica o mais incongruente e extraordinário desafio do instinto criador contra toda retórica racionalizada na organização sonora”.

Sobre a forma musical, Paz tece considerações sobre a relação intrínseca com o de profundis de um compositor: “A música deve significar uma coincidência da investigação formal com a experiência interna do compositor; é algo que se sabe, apesar de bem esquecido por razões de tática. A grande lição de Beethoven e dos românticos em geral, e de Schönberg e Debussy em particular, consiste em demonstrar que a forma não é um molde confortável, senão a consequência externa de um processo interno”. A posição do autor não se aplicaria também à literatura, à poesia e às artes em geral?

Paz é bastante ácido com os musicólogos e os críticos: “Os musicólogos são os seres mais desprovidos de musicalidade que eu conheci. Não sentem nem entendem a música, considerando-a obstinadamente como uma vertente da arqueologia”. Ao considerar a crítica, mencionando várias áreas – literatura, música, teatro, artes plásticas – e estendendo sua posição também aos teóricos de arte, de ideologias e de religiões, comenta: “sua sabedoria se baseia unicamente na nossa ignorância, nossa benevolência e nossa credulidade”.

Quanto à repetição repertorial realizada pela grande maioria dos intérpretes, Juan Carlos Paz mostra-se crítico mordaz: “… a música é algo que rigorosamente não conta, não interessa nem ao virtuose-monstro, insensibilizado por força de repetição constante das mesmas obras, nem ao público, que só deseja ouvir mais uma vez. A indústria do concerto! Esses virtuoses são como máquinas que engolem moedas. Você deposita uma no espaço a ela reservado e imediatamente a máquina agradece enviando-lhe uma torrente de música: você paga a entrada do recital e o virtuose o recompensa fazendo-o ouvir pela milésima vez ‘a’ Polonaise de Chopin, ‘a’ Sonata ao Luar de Beethoven, La Campanella de Liszt ou a Pavane de Ravel, todo um intercâmbio de duas desconsoladoras rotinas. Resultado positivo: negócios para empresários. Nada mais”.

Ao comentar a mutação interpretativa através dos tempos, Paz polemiza sobre tema que nunca teve consenso. Observa: “O teatro, a música e a dança são as mais evasivas e menos fiéis, entre todas as artes, aos desejos e às finalidades de seus criadores. Suas limitações quanto a essa particularidade consistem em que, para se expressar junto ao público, necessitam do intérprete – ator, diretor, executante, cantor, dançarino -, na realidade deformadores das aspirações do autor, em maior ou menor dimensão”.

Após discorrer sobre a mentalidade de dois intérpretes que podem ter ideias diversas sobre uma determinada obra, Paz se questiona sobre a interpretação fiel. “Sabemos por acaso como Beethoven, Berlioz, Schumann, Chopin e Liszt exigiam a interpretação adequada? Constata-se pois que, não sendo desejável a versão arqueológica à base da interpretação fidedigna, que na realidade nada dela sabemos, só nos resta, para a música, o teatro e a dança, a versão perpetuamente mutante, recriada, modificada, metamorfoseada segundo o temperamento, a cultura, as afinidades ou preferências, e até a saturação do intérprete em determinado período de sua evolução ou da circunstância em que atua”.

Em vários artigos publicados no Brasil e no Exterior sobre as composições de Johann Kuhnau (1660-1722), Jean-Philippe Rameau (1683-1764) e Carlos Seixas (1704-1742), originalmente escritas para cravo e que gravei ao piano para o selo belga De Rode Pomp, observei que o silêncio de mais de um século das interpretações ao cravo faz entender que nada sabemos sobre as execuções dessa música no instrumento original, mas que a escuta, nessa relação professor-aluno, foi a responsável pela interpretação ao piano dessa imensa produção durante o longo período silencioso do cravo. Nenhum dos grandes compositores do vasto período romântico no século XIX compôs para cravo. A oralidade professoral foi fator decisivo para que a tradição da criação para o instrumento, que imperou basicamente nos séculos XVII e XVIII, não se perdesse quando interpretada ao piano.

A respeito da ópera, escreve: “Para mim, a ópera ideal seria aquela em que os cantores, em determinado instante da ação, se esquecessem de atuar”. Tradução: J.E.M.

Quantos não foram os autores que escreveram memórias? Há aquelas que se perdem nas profundezas da arqueologia social e outras que impressionam e anteveem o futuro, pois não envelhecem. Visitá-las torna-se uma possibilidade de entendermos os fracassos e os acertos da trama social e da cultura como um todo. Nessa visão, Juan Carlos Paz mostra-se um profeta após tantas décadas decorridas.

Juan Carlos Paz, Argentine composer, theorist and thinker, has been the introducer of dodecaphonism in his country. In his book of memoirs, he explores the most varied topics on music, literature, art and history, not failing to be humorous when everyday life makes an impression on him.

 

O retorno aprazível

Se não apontares ao impossível, te sairá baixo o tiro ao possível.
Agostinho da Silva
“Espólio”

Foi no longínquo 1971, ano em que a cidade de Goiânia comemorava seus 38 anos de fundação, que pela primeira vez me apresentei na cidade. Já demonstrava a vocação de ser uma das pujantes do Centro-Oeste, apenas superada por Brasília em termos populacionais. Minha relação com a cidade se prolonga ao longo de meio século, volvendo periodicamente a fim de recitais promovidos por diversas entidades, mas também para cursos, congressos e bancas universitárias junto à Universidade Federal de Goiás.

Estou a me lembrar de ter oferecido curso na Escola Mvsika para jovens postulantes à carreira musical, após realizar duas apresentações em anos sucessivos.  O convite veio através da referencial pianista e professora Glacy Antunes de Oliveira, uma das fundadoras do estabelecimento. Foi no biênio 1974-1975 que frequentei a cidade no fim de cada mês para aqueles encontros didático-musicais. Com alegria reencontrei na atual visita antigos frequentadores do curso e que hoje desempenham profícua atividade musical na cidade.

O universo dos afetos contempla geograficamente cidades que são caras por motivos diversos. Não é fácil saber os motivos das escolhas, pois eles naturalmente se instalam em nosso de profundis. Se Paris ficou-me indelével pela formação primordial entre os anos fronteiriços às décadas 1950-60 e pela relação posterior intensa em torno de Claude Debussy; se Gand, na Bélgica, me é preferencial sob outra perspectiva, pois lá me apresentei mais de vinte vezes e pelo selo De Rode Pomp foi lançada a maioria de meus 25 CDs gravados na mágica capela Saint-Hilarius, em Mullen, milenar pequena cidade próxima à Gand, sendo que espero finalizar minha atividade pianística nessa cidade flamenga, mercê do legado e de indelével relacionamento humano; se Portugal como um todo, pois cerca de vinte cidades foram visitadas para recitais prioritariamente, mas também para outras atividades culturais ao longo de 60 anos e afetos imaculados incontáveis; em termos pátrios uma cidade tem para mim significado especial, Goiânia. Quantas outras foram repetidamente visitadas e das quais guardo recordações que perduram! No crepúsculo da atividade pianística seria possível aceitar que o curso mencionado nos inícios da década de 1970 fincou sólidas bases, o que fez com que aos sucessivos convites para várias atividades ligadas à música tivessem singular posicionamento. Diria que os elos forjados naqueles tempos permaneceram imunes a quaisquer possibilidades adversas.

Durante o período mais sombrio da pandemia resolvi doar parte substancial de minha biblioteca musical, incluindo partituras, à Universidade Federal de Goiás. Uma camioneta da UFG retiraria 14 caixas com esse primeiro acervo. Alguns amigos e professores comentaram que a destinação deveria ter sido a Universidade de São Paulo, onde permaneci durante 27 anos. Não obstante essas salutares divergências, entendo que o Sudeste já está contemplado por acervos consideráveis não apenas nas três universidades paulistas, como nas do Rio de Janeiro e outras mais… Le coeur a ses raisons que la raison ignore, já professava Blaise Pascal (1623-1662). Diria que razão e coração se incluem na minha decisão, que será completa quando de minha ida para os anjinhos. Minha mulher e filhas não apenas acatam, como estimulam o envio à UFG do acervo que ainda mantenho e que me possibilita continuar pesquisas… A modesta contribuição será propícia àqueles pesquisadores do Centro-Oeste e, só de pensar nesse futuro debruçamento de estudiosos, traz-me aquilo que professava meu padrinho de crisma, D. Henrique Golland Trindade (1897-1974), arcebispo de Botucatu,  que oficiou meu casamento com Regina em 1963: “santo orgulho”. Saber destinações.

O convite de Gyovana Carneiro, professora da UFG e “agitadora” cultural em Goiânia, e que no início dos anos 1990 frequentou curso que ministrei na pós-graduação na USP, foi no intuito da realização de um recital na nova sala da cidade, pequena e aconchegante, “Estúdio de Piano & Experiência Musical Natália Mendoza”. Trata-se de uma nova proposta que atende, paradoxalmente, ao decréscimo da aceitação da denominada música de concerto, mormente para as novas gerações, bombardeadas diariamente por um sem número de outros anseios através dos mutantes meios internéticos. O pequeno espaço, à la manière das ancestrais comunidades cristãs, que se reuniam sempre com intensidade exemplar, torna-se igualmente um local de resistência. Grata surpresa foi a presença de figuras relevantes do meio universitário e cultural de Goiânia, entre elas o Reitor da UFG, professor Edward Madureira, e outros docentes das várias áreas do conhecimento, entre os quais Anselmo Pessoa (literatura italiana),  assim como membros da sociedade amantes da música de concerto que compareceram ao evento que, numa primeira parte, homenageava o nosso ilustre Gilberto Mendes, mercê do centenário do compositor (1922-2016). A seguir interpretei criações de Bach-Liszt, Debussy, Oswald e Scriabine (sesquicentenário de nascimento).

Faço minhas as palavras de Mario Vargas Llosa que, em seu consagrado livro “La Civilización del espectáculo”, vaticinava a queda da cultura erudita. Ela se processa a passos largos. Se considerarmos os mais ventilados sites portais do país, logo nas páginas de abertura não mais há quaisquer resquícios alusivos à atividade da “outrora” alta cultura, duas palavras que eram habituais, inclusive a designar importante instituição portuguesa, “Instituto de Alta Cultura”. O leitor se lembrará de que anos atrás tencionaram retirar dos currículos escolares brasileiros autores como Camões e tantos outros luminares, numa tentativa rasteira de minimizar a cultura tida por esses mentores como elitista. Não houvesse resistência entraríamos num obscurantismo literário. Os sites mais frequentados do país privilegiam o supérfluo, a derrocada dos costumes e da moralidade, pois temas ligados a sexo e suas “modalidades” estampam as primeiras páginas desses concorridos portais com vexatória permissividade, em acréscimo abandonando o trato basilar da língua mater. Estou a me lembrar de tempos outros em que, durante uma década, escrevi para o Suplemento Cultural de “O Estado de São Paulo”. O saudoso e notável editor responsável, Nilo Scalzo, dizia que na redação havia um especialista que revisava todos os textos do denominado “Estadão” e do “Jornal da Tarde”, a fim de que erros ortográficos, de sintaxe e outros mais não aparecessem nas publicações. Quantos não foram meus textos de três páginas sobre música e arte publicados nesse outrora veículo exemplar?   A permissividade atual dos portais apresenta-se plena, sem pejo e todo um besteirol é transmitido às novas gerações. Infiltrado nas mentes, proliferam como erva daninha. Arte, literatura, música pareceriam pertencer, para esses portais, atividades “jurássicas”. Sob a égide da música efêmera, multidões, mormente de jovens, acorrem aos espetáculos de altos decibéis e rigorosamente descartáveis. Valor intrínseco, nenhum. Dizia eu em Goiânia que a morte trágica de cantora goianiense levou cerca de um milhão de pessoas aos seu sepultamento. Naqueles dias faleceu o maior pianista brasileiro da segunda metade do século XX e reconhecido no mundo como um expoente, Nelson Freire. Menções relativizadas e mínimas na mídia. Semanas após, pouco se falava da cantora. Nelson Freire permanecerá através de um legado indiscutível, felizmente registrado em gravações memoráveis.

Acredito firmemente que, apesar da nítida decadência da cultura erudita, focos de resistência existirão. Se décadas atrás tínhamos várias salas de concerto em São Paulo, como exemplo, e músicos consagrados e os jovens promissores recebiam público numeroso, hoje um teatro e uma sala, ambos grandes, recebem público considerável, mormente quando nomes consagrados no Exterior aqui aportam para récitas. As pequenas salas fecharam suas portas, e duas ou três continuam heroicamente a resistir. Intérpretes qualitativos nelas se apresentam e recebem ouvintes selecionados, que ainda cultuam a atividade musical erudita. Inúmeras vezes mencionei que na década de 1950 São Paulo tinha treze críticos musicais, que resenhavam considerações competentes tanto para os luminares como para os iniciantes. A maioria deles era versada em música. A cidade agigantou-se e a crítica musical estiolou-se. Não mais há o crítico musical de ofício, apesar de alguns assim  se autodenominarem. É de se lamentar.

É pois relevante a inauguração de uma sala pequena, mas que servirá de estímulo às manifestações de recitais e cursos. Se Goiânia teve, entre baluartes da arte pianística, a amiga saudosa Belkiss Carneiro de Mendonça (1928-2005), formadora de uma geração de competentes pianistas e que me concedeu o privilégio de prefaciar seu último CD, a chama da música de concerto não feneceu e o piano deverá continuar a revelar talentos, apesar dos tempos desalentadores. Que a esperança não feneça!

It is always a pleasure returning to Goiânia for musical activity. I have been there to present a recital in honour of the remarkable composer Gilberto Mendes in the small and cosy room of the “Studio of Piano & Musical Experience Natália Mendoza“, in the presence of a select audience.