Quarto Encontro privé dedicado aos notáveis compositores

Obra suprema é aquela em que
(a par, é certo, da rígida construção que assinala os mestres)
pensamento original e emoção própria se reúnem e se fundem…
Fernando Pessoa
(“Caracterização Individual dos Heterónimos”)

Neste “Quarto Encontro privé”, Regina e eu homenagearemos dois dos mais expressivos compositores do período barroco que compuseram centenas de peças para cravo. Dividirei em três posts, um primeiro a evidenciar os resultados da presença de Domenico Scarlatti na corte de El-Rei D.João V (1689-1750), um segundo sobre Carlos Seixas e a realidade que se lhe apresentava em Portugal, onde exerceu a atividade musical, nela a se destacar a composição, e um terceiro sobre aspectos voltados à produção para cravo e às diferenças formais e da técnica instrumental nas Sonatas dos dois grandes mestres.

Aproximá-los se faz necessário, mercê de um “quase” esquecimento do compositor nascido em Coimbra em termos mundiais, apesar do trabalho hercúleo de Macario Santiago Kastner (1908-1992) fazendo editar as Sonatas de Carlos Seixas, inicialmente na Alemanha (1935 e 1950) e posteriormente numa ampla publicação de 105 Sonatas pela Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa (1965-1992). A divulgação das obras de Scarlatti se deu, de maneira efetiva, primeiramente através das edições de Alessandro Longo (1864-1945) na Itália e, posteriormente, pela edição e catalogação de Ralph Kirkpatrick (1911-1984), propiciando, por parte de inúmeros intérpretes da península e de tantos outros rincões, a presença constante, em termos mundiais, das Sonatas para cravo do compositor nascido em Nápoles. Considere-se que Liszt (1811-1886) interpretava Sonatas de Scarlatti ao piano. Com o passar do tempo, mormente a partir das fronteiras dos séculos XIX-XX, a produção para cravo dos séculos XVII e XVIII tem sido interpretada por cravistas e pianistas.

Clique para ouvir, de Domenico Scarlatti, Sonata em Dó Maior, Longo 5, na interpretação de Regina Normanha Martins. Gravação ao vivo realizada em Mullem, Bélgica, 2001:

https://youtu.be/XQZ938vUbZk?si=04zf-wBpUkcaVaj7

Em 1714, o Infante D.Antônio, irmão de D.João V, conheceu  em Roma  Domenico Scarlatti, já consagrado na Itália e em diversos centros europeus. Diletante, impressionou-se com as interpretações de Scarlatti ao cravo. Dessa admiração surgiria o convite, formulado pelo El-Rei D.João V, para que Scarlatti viesse ao reino.  O compositor chega a Lisboa aos 29 de Novembro de 1719, permanecendo vários anos como responsável pela música na Capela Real, máxime como preceptor da Infanta Maria Bárbara (1711-1758), filha do casal real, D.João V e a arquiduquesa Maria Ana da Áustria.

Era eu editor responsável da Revista Música da Universidade de São Paulo ao convidar o dileto amigo e ilustre crítico musical e musicólogo português Humberto d’Ávila (1922-2006), que contribuiu com substancioso artigo para a publicação: “Domenico Scarlatti e a Cultura Portuguesa” (vol.3 – nº 2 Novembro 1992). Esclarece: “As relações de amizade, admiração e consideração recíproca entre o napolitano e a sua discípula é um dos episódios humanos e artísticos mais interessantes que se registram e exemplificam quanto uma personalidade espiritualmente influente pode alterar por completo o rumo da vida e da obra dum artista. A princesa de Bragança não era uma figura vulgar, quer moral quer musicalmente. Possuía grande talento artístico e, a julgar pelo virtuosismo da escrita scarlattiana expresso nas tocate, que é o nome equivalente dado às sonatas, terá chegado a igualar o mestre em dedos e estilo. Não fora assim e, a mais dessa referência técnica, não se compreenderia, só pela conservação dum emprego, a dedicação dum músico de tal envergadura até o fim da vida”. Maria Bárbara se casaria com o rei Fernando VI da Espanha, tornando-se Rainha Consorte a partir de 1746. Importante salientar que Scarlatti acompanhou-a e esteve sempre a compor suas centenas de Sonatas para cravo atendendo às solicitações da figura imperial, muitíssimo dotada para o mister de cravista. Humberto d’Ávila observa: “Podemos imaginar que, se se tivesse mantido em Roma, continuaria a ser, predominantemente, um compositor de música religiosa, de cantatas e de partituras cênicas, nas quais não logrou especial êxito. Com o conhecimento de Maria Bárbara, e atendendo à constante  curiosidade dela por variar o repertório e, também, às menores possibilidades operacionais noutros gêneros que as cortes de Lisboa e Madrid lhe proporcionavam, a sua veia voltou-se quase exclusivamente para o teclado: a prova está em que a maior parte do espantoso conjunto de quase 600 sonatas que dele resta se pode situar entre 1719 e 1757, ou seja, desde a chegada a Lisboa até a morte”. Essa dedução é de grande valia e vem demonstrar que, apesar de ter sido um grande tecladista, Scarlatti percebera na Infanta portuguesa e futura Rainha de Espanha as qualidades inalienáveis de uma cravista singular, que unia a compreensão musical a uma rara virtuosidade, resultando na escrita de tantas Sonatas desafiadoras do Mestre napolitano. Esse quesito de Scarlatti voltado à virtuosidade, máxime com o passar da existência, não explicaria essa precisa destinação às mãos da figura real privilegiada nesse mister? Se considerada for a tendência a uma quase “serenidade” escritural de um compositor em idade mais avançada, salvo exceções, observa-se que Scarlatti manteria em suas Sonatas a chama da juventude madura durante toda a vida.

 

Dada a proeminência de Scarlatti no decorrer dos séculos e a tímida divulgação das Sonatas de Carlos Seixas, “consolidou-se” a posição, em termos gerais, de uma diferença qualitativa nas composições dos dois músicos que se conheceram bem em Lisboa, sendo que Carlos Seixas, dezenove anos mais jovem, tornar-se-ia substituto do músico napolitano junto à Capela Real. Creio que são linguagens que, se obedecem a determinadas regras formais do período, têm contudo “impressões digitais” que as distinguem. Santiago Kastner bem observa, após considerar dois discípulos de Scarlatti em períodos diversos, o compositor e organista anglo-irlandês Thomas Roseingrave (1690-1766) e o cravista e organista espanhol Padre Antonio Soler (1729-1783): “Embora Scarlatti fosse personalidade de cunho marcante, não converteu Roseingrave, Seixas e Soler em epígonos ou automáticos imitadores de seu estilo e nada mais abonará tanto em favor do carácter autónomo e da própria imaginação e idiossincrasia tanto de Roseingrave como de Seixas e de Soler do que dizer que nenhum dos três sucumbiu perante o italiano, guardando cada um a sua feição individual. Nenhum deles resulta ser uma sombra de Scarlatti” (“Carlos Seixas”, Coimbra, Coimbra Editora, 1947).

Clique para ouvir, de Domenico Scarlatti, Sonata em Dó Maior, Longo 457, na interpretação de Regina Normanha Martins. Gravação ao vivo realizada em Mullem, Bélgica, 2001:

https://youtu.be/0V7D7wzU5uE?si=e1wGDdfGelKXFNmy

No próximo blog abordarei o compositor Carlos Seixas e a intimidade com o cravo, mercê do exímio intérprete que foi, assim como da qualidade de suas mais de uma centena de Sonatas para o instrumento (vide blog: “Carlos Seixas – Um compositor de exceção”, 22/10/2010).

In the fourth recital privé, Regina and I will present sonatas by two significant Baroque composers who met in Lisbon: Domenico Scarlatti and Carlos Seixas. There will be three posts, the first on Scarlatti, especially when he was in Lisbon, the second on Carlos Seixas and the third demonstrating their artistic individualities.

 

Uma obra exemplar do compositor Eurico Carrapatoso

Na estrada por que vou
Não fujo do meu norte.
Edmundo Bettencourt (1899-1973)

Após a audição, via Youtube, de uma criação do ilustre compositor português Eurico Carrapatoso (1962-), fiquei novamente impactado não apenas pela obra, mas igualmente pela expressiva interpretação do quarteto formado pelos músicos Filipe Pinto-Ribeiro (piano), Esther Hoppe (violino), Pascal Moraguès (clarinete) e Christian Poltèra (violoncelo). Escrevi ao meu dileto amigo Eurico felicitando-o pela composição, mas solicitando mais informações sobre “Pour la fin, pour mon commencement”.

A obra, constituída por cinco segmentos, estreou juntamente com a apresentação do “Quatuor pour la fin du temps”, de Olivier Messiaen (1908-1992), na sala Reina Sofia, em Madrid. A criação de Carrapatoso teve apresentações posteriores na Espanha e Portugal. Dividida em cinco partes, recebeu o prêmio DASH-SHOSTAKOVICH ENSEMBLE em 2021.

Eurico Carrapatoso escreve: “O título desta peça evoca a obra célebre de Olivier Messiaen (Quatuor pour la fin du temps) e uma outra de Guillaume de Machaut (o Rondeau nr.14, Ma fin est mon commencement). A estrutura em espelho desta última obra do trecento francês está patente, logo à partida, na estrutura macroformal da minha peça, um palíndromo dividido em cinco andamentos, com várias correspondências entre si no gesto e na palavra”. O movimento que tive o grato prazer de ouvir, a ratificar a minha admiração pelas criações de Carrapatoso, foi o de número cinco, “Pour la Fin”. Acrescento que, ao interpretar em primeira audição absoluta e gravar duas das importantes criações de Carrapatoso para piano, “Six histoires d’enfants pour amuser un artiste” e “Missa sem palavras – cinco estudos litúrgicos”, acentuou-se o meu apreço pela obra do compositor nascido em Mirandela, Trás-os Montes.

Se influências recebidas há em “Pour la fin, pour mon commencement”, quem não as recebe? Carrapatoso as identifica, atributo dos que não se camuflam, mas alerta que “… também eu faço nesta minha obra uma retrospectiva de gestos representativos da minha produção ao longo destes últimos vinte anos de actividade criativa ininterrupta, desde o elemento façanhudo que campeia nos andamentos pares, até à tendência que se tem afirmado nos últimos tempos para um carácter mais sóbrio e enxuto, como é patente na simplicidade do andamento central, o solo para piano, que evoca Dulcinea del Toboso, “señora de mi alma, día de mi noche, gloria de mis penas, norte de mis caminos”, como se um D. Quixote ali cantasse o eterno feminino, acompanhado por um alaúde imaginário que geme nessa tépida sombra nocturna “ay! luna que reluces, toda la noche me alumbres” em seus acordes antiquíssimos; enfim, passando por essa diagonal que atravessa a minha música desde que achei a minha voz, tão bem significada nos andamentos inicial e final, lentos e introspectivos: um primeiro andamento álgido e espesso, marcado pela cor sombria do chalumeau do clarinete que contamina o timbre do próprio quarteto; e um último andamento solar, que faz cantar o violoncelo, o violino e o clarinete à vez, numa textura cheia de ar e espaço vital; um ameaço de nuvens mais sombrias que o clarinete rememora no epílogo, dissipa-se, por fim, num adeus picardo”. Quanto a esta quinta peça, “Pour la fin”, Carrapatoso se inspira num poema de William Blake (1757-1827), The Ecchoing Green, “que assim canta a nossa passagem transitória pelo mundo”, como afirma Carrapatoso.

The sun does arise
And make happy the skies.
The merry bells ring
To welcome the Spring.
The sky-lark and thrush,
The birds of the bush,
Sing louder around,
To the bells’ cheerful sound.
While our sports shall be seen
On the Ecchoing Green.

Old John, with white hair
Does laugh away care,
Sitting under the oak,
Among the old folk,
They laugh at our play,
And soon they all say.
‘Such, such were the joys.
When we all girls & boys,
In our youth-time were seen,
On the Ecchoing Green.’

Till the little ones weary
No more can be merry
The sun does descend,
And our sports have an end:
Round the laps of their mothers,
Many sisters and brothers,
Like birds in their nest,
Are ready for rest;
And sport no more seen,
On the darkening Green.

O sol nasce,
E alegra os céus.
Os sinos alegres tocam
Para dar as boas-vindas à primavera.
A cotovia e o tordo,
As aves do mato,
Cantam mais alto à volta,
ao som alegre dos sinos.
Enquanto os nossos desportos serão vistos
No verde que ecoa.

O velho João, de cabelo branco
Ri-se dos cuidados,
Sentado debaixo do carvalho,
Entre os velhos,
Eles riem-se da nossa brincadeira,
E logo todos dizem.
“Que alegria, que alegria!
Quando todos nós, raparigas e rapazes,
na nossa juventude, éramos vistos,
No verde que ecoa.

Até que os mais pequenos se cansem
Não podem mais ser alegres
O sol está a pôr-se,
E os nossos desportos têm um fim:
Ao colo das suas mães,
Muitas irmãs e irmãos,
Como pássaros no seu ninho,
estão prontos para descansar;
E não se vê mais desporto,
No verde que escurece.

(Traduzido com a versão gratuita do tradutor – DeepL.com)

Clique para ouvir, de Eurico Carrapatoso, “Pour la fin, pour mon commencement” nº5:

https://www.youtube.com/watch?v=Lrw3N2m5jLA

Em inúmeros blogs anteriores discorri sobre as várias tendências composicionais, sempre a considerar a importância de se apreender origens. A História evidencia, através dos séculos, a longa evolução da teoria e dos gêneros musicais. Muitas conquistas surgiram a partir desse olhar o passado e, a partir dele, o acréscimo de novos degraus. Sempre mantive distância de teorias que nascem sem quaisquer ligações com o passado e que, glorificadas em guetos, estiolam-se na brevidade devida. Eurico Carrapatoso, mestre de uma escrita sólida, nunca negligenciou a tradição e sua obra, magistralmente bem escrita, obedece àquilo que já rezava Jean-Philippe Rameau (1683-1764), la musique est le langage du coeur. A peça nº 5 é exemplo vivo dessa qualidade inalienável de Carrapatoso. “Pour la fin” em sua lentidão, com o piano como guia principal dos três outros instrumentos, numa reflexiva evolução, finda a peça como iniciou, na solidão em pianissimo.

“Pour la fin, pour le commencement” is a work in five parts by the distinguished Portuguese composer Eurico Carrapatoso. It received the DASH-SHOSTAKOVICH ENSEMBLE award in 2021.  I comment on the final part, “Pour la fin”. I was impressed by the quality of the writing and the exemplary performance by the piano, cello, violin and clarinet.

 

Duas tendências básicas

A arte só beija quem por ela almeja ser beijado.
A arte exige uma liturgia, um ritual, que se prende
Com a fonte da dádiva e a aproximação do amor.
Miguel Real (1953)

A temática a envolver a interpretação musical tem inúmeras variantes. O blog do dia 17 de Agosto abordou algumas delas, inclusive o respeito à partitura, a inevitável diferença interpretativa de dois músicos que, respeitando fielmente o que reza a partitura, não são robôs. A compreensão da obra executada jamais será idêntica, assim como o ritmo da fala não é igual em todos. E mais, as impressões digitais distinguem cada indivíduo em particular, impossíveis de se repetirem em um outro humano. O mesmo se dá com a interpretação. Refiro-me àqueles que respeitam os textos, mas flexibilizam a frase musical com devidas reservas, fato que ratifica a individualidade.

Aprecio sempre as posições dos leitores. Alguns se estendem, como Gildo Magalhães dos Santos, professor titular da FFLECH-USP. Suas observações são pertinentes: “Concordo integralmente com suas justas palavras. É preciso respeitar as intenções do autor, e é uma fronteira difícil, essa entre seguir rigorosamente a escrita e o espaço de variação que acrescenta a sensibilidade do intérprete. Às vezes, mesmo quando o intérprete é o próprio compositor, há pequenas, mas sutis, variações. As definições de tempo e intensidade comportam sempre uma faixa de tolerância, porque a vida não é uniforme, nem as pessoas. Os excessos apontados por você são evidentemente daninhos, creio que os intérpretes excelentes seguem o preceito in medio stat virtus – nem a execução milimétrica nem a liberdade inconsequente. Estaria certo?”

O compositor Paulo Costa Lima, um dos mais importantes do país, considera: Quem teve o privilégio de sua parceria em diversas obras sabe bem avaliar o que está dizendo; a delicada união de natureza interpretativa entre um máximo de respeito e um máximo de liberdade. Uma experiência inesquecível”.

A professora e tradutora Aurora Bernardini sintetiza a interpretação problemática em frase basilar: “É como pintar sem conhecer as regras da perspectiva”.

Em blogs bem anteriores, por diversas vezes comentei o posicionamento do intérprete frente à partitura, fundamental para que uma composição seja assimilada, pois fornecedora dos elementos criados pelo compositor. Inúmeros intérpretes, no caso pianistas, se consagraram valendo-se unicamente da partitura e, a partir dela, idealizaram suas execuções. Não transgrediram, confiaram nas acuradas intuições. Um exemplo notável é o de Guiomar Novaes (i893-1979), que ainda adolescente obteve o primeiro lugar num concurso promovido pelo Conservatório de Paris destinado a duas vagas para jovens estrangeiros, tendo no júri Claude Debussy, Gabriel Fauré e Moritz Moskovsky. Debussy escreve, após o concurso, ao seu amigo e regente André Caplet (25/11/1909): “a ironia habitual dos acontecimentos quis que a postulante artisticamente mais dotada entre todos fosse uma brasileira de 13 anos. Ela não é bonita, mas tem os olhos ‘ébrios de música’ e esse poder de se isolar de qualquer presença, qualidade característica tão rara do artista”. Essa observação seria inerente na maneira de interpretar da nossa pianista maior ao longo da existência. Não foi Guiomar Novaes uma pesquisadora, mas, em respeitando a partitura, criou interpretações singulares admiradas no planeta (vide blog: “Guiomar Novaes”, 09/05/2020).

Clique para ouvir, de Fréderic Chopin, Noturno nº 13 em dó menor, op. 48 nº 1, na interpretação de Guiomar Novaes:

https://www.youtube.com/watch?v=gOa8Qnsii5Q

Inúmeros pianistas renomados, nascidos no século XIX e nas primeiras décadas do século XX, continuam a ser admirados pela interpretação poética de extensos repertórios sem que tenham sido pesquisadores ou analistas. Anos atrás, neste espaço, homenageei inúmeros pianistas extraordinários possuidores da aura que pereniza.

Na literatura, o acesso à opera omnia de um poeta, escritor ou pensador terá maior abrangência se o leitor acompanhá-lo pelos aprofundamentos de estudiosos através dos tempos. A visão se torna mais ampla, pois parcialmente desvelada por especialistas na temática. Na realidade, na Academia o debruçamento sobre um autor, no que tange às diversas teses acadêmicas, tem de vir acompanhado de bibliografia sólida. Pelo menos é o que se espera. Ocorre esse aprofundar máxime nos vocacionados, diametralmente opostos aos carreiristas, para os quais as teses acadêmicas se tornam um enfado.

Regressando à execução pianística, intérpretes deixaram suas marcas indeléveis após longas pesquisas a fim de entender o porquê da criação de um compositor, suas buscas formais e inovações, seus cuidados com a escrita sem falhas e a inspiração. Em uma das obras impecáveis do ilustre compositor português Eurico Carrapatoso, o Credo da Missa sem Palavras – Cinco Estudos Litúrgicos”, escrevi-lhe que as musas entraram pelas janelas abertas e o inefável se instalou.

Intérpretes que buscam analisar com profundidade uma composição, antes mesmo de deixá-las vivas em suas mentes e dedos, têm no ato da execução o domínio do todo. Insignes nomes ficaram perenes e foram arautos da tradição, deixando suas marcas em estudos, análises, processos interpretativos, transmitindo aos seus coetâneos e aos pósteros ensinamentos basilares. Ferrucio Busoni (1866-1924) fê-lo com as composições de J.S.Bach; Paul-Badura Skoda (1927-2019), ao escrever sobre a interpretação de Mozart após um aprofundamento abissal, apreende os segredos da execução adequada das criações do compositor austríaco. Artur Schnabel (1882-1951) deixou escritos preciosos sobre sua vida e sua música no livro “My life and Music”, realizando ademais a magnífica edição comentada das 32 Sonatas de Beethoven. Alfred Cortot (1877-1962) legou-nos edições das obras de Chopin, Liszt e Schumann que são faróis para a melhor apreensão das composições dessas três figuras excelsas. Escreveu importante livro, “La Musique Française de Piano”, no qual acrescenta sua experiência como pianista para a compreensão de um repertório que faz parte do acervo de executantes de antanho e do presente. Para o aprimoramento técnico é autor  do  método “Principes rationnelles de la technique pianistique”.

Clique para ouvir, de Robert Schumann, Cenas Infantis op.15, na interpretação de Alfred Cortot:

https://www.youtube.com/watch?v=BausH790e9g

Sem penetrar no campo analítico, pianistas ilustres legaram, através de livros, ricas experiências, fato que corrobora o aperfeiçoamento voltado ao possível desempenho de um intérprete. Marguerite Long (1874-1966) escreveu três livros sobre Fauré, Debussy e Ravel, assim como “Le Piano”, uma síntese do aprendizado; Arthur Rubinstein (1887-1982) depositou em três livros a sua trajetória pianística, mas penetrou também em aspectos interpretativos. Heinrich Nehuaus (1888-1964), em “L’art du Piano”, insere toda a sua vasta experiência como pianista e professor;  Wilhelm Kempff (1895-1991) legou-nos “Cette note grave – les années d’aprentissage d’un musicien”; György Cziffra (1921-1994), em sua obra “Des canons et des fleurs”, narra episódios dantescos de sua vida, que acenavam para a impossibilidade total de uma carreira que se mostraria vitoriosa; Zhu Xiao Mei (1949-) deu-nos “La Rivière et son secret”. Tantos outros eminentes pianistas depositaram em livros suas experiências. Transparente a importância desses depoimentos, máxime como exemplos dignificantes que, desprovidos de análises estruturais, evidenciam caminhos que podem servir de itinerários seguros.

Intuitivos ou analíticos, ou os dois associados, são a evidência do caminho traçado por um intérprete. O intuitivo assim é desde os primórdios, o analítico se configura com o tempo. O que pareceria claro é a vocação. Só aqueles com o feu sacré atingem a essência da comunicação. O receptor, o ouvinte, quase sempre percebe os eflúvios da interpretação que se comunica. Enquadrados nessas duas possibilidades, importa a qualidade da interpretação do instrumentista, seu rigor após desvendar os segredos da partitura ou o voo da imaginação. Os exemplos acima mencionados evidenciam, através das interpretações de Guiomar Novaes e Alfred Cortot, as duas tendências. O ouvinte dificilmente fará a distinção entre as duas concepções, pois em ambos os casos as musas estiveram presentes.

Pianistic interpretation from two distinct perspectives starting from the score: intuitive or preceded by analysis and other studies.