Criações basilares para piano de Robert Schumann (1810-1856)

O mistério que a música nos transmite
não é o inexprimível esterilizante da morte,
mas o inexprimível fecundo da vida, da liberdade e do amor;
em suma, o mistério musical não é o inexprimível, mas o inefável.
Vladimir Jankélévitch (1903-1985)
(“La Musique et l’Inefable”)

O programa do Terceiro Encontro privé é inteiramente dedicado a Robert Schumann (1810-1856). Observei, no blog anterior, que as principais obras  para piano de Schumann foram compostas na década de 1830, a envolver um período, mormente no segundo lustro, em que o amor intenso por Clara  Wieck (1819-1897), com todas as dificuldades enfrentadas devido à oposição paterna, seria oficializado no casamento que se deu em 1840. Pertence justamente a essa década parte significativa das obras apresentadas pela maioria dos pianistas nas temporadas de concerto pelo mundo.

A correspondência entre Robert e Clara é inequívoca. A criação que jorra de maneira abundante naquele período passional incerto é também um dos exemplos mais precisos dos limites do romantismo no que tange ao coração. Como poucos, Schumann é um grande criador de melodias penetrantes e parte majoritária de sua produção para piano adequa-as às formas preferidas pelo compositor. Schumann distribui a generosidade melódica em episódios e inúmeras obras são constituídas por segmentos curtos plenos de melodias contagiantes. Se compõe três Sonatas, apesar do título tão ligado à forma tradicional, Schumann não a segue precisamente e confessa o propósito ao responder a críticas. A maioria das obras para piano desse período fecundo tem títulos sugestivos, conduzindo-nos a esse universo onde a maestria escritural tem a embelezá-la a generosidade melódica. O musicólogo Camille Mauclair tem razão ao afirmar que a maioria das criações para piano são como lieds sem palavras. Um dos bons amigos de Schumann, o compositor e regente Felix Mendelssohn (1809-1847) “oficializaria” essa junção com as suas preciosas Canções sem palavras, ímpar coletânea para piano.

No programa desse Terceiro Encontro, minha mulher Regina Normanha Martins – sou suspeito para elogiar as suas qualidades – tocará quatro peças das encantadoras Cenas Infantis op.15 e a última das oito  Novelettes, uma peça plena de poesia, arroubo, inventiva, a ter como inspiração a sua amada Clara: “É você, minha noiva, que figura nessas Novelettes, em todas as situações e circunstâncias possíveis com tudo que há em você de mais irresistível!”.  Quanto a oitava Novelette, escreve o notável pianista Alfred Cortot (1877-1962), um dos maiores intérpretes da obra de Schumann na história: “É bem uma das páginas na qual, para retomar a expressão de Schumann; ‘eu fui mais ao fundo’, ao se referir ao empenho criativo”.

Iniciarei com uma joia de rara beleza misteriosa, O pássaro profeta, sétima das Cenas da Floresta op.82, distante do turbilhão de composições emotivas das décadas precedentes. Alfred Cortot comenta: “E eis a página verdadeiramente excepcional da coletânea com duplo título, musical e poético. A alegria instrumental na qual é evocado o canto banhado em mistério do rouxinol que sonha à noite, a qualidade expressiva, o episódio intermediário, onde um coração penetrado pelo carinho, que pede às acariciantes inflexões da voz milagrosa a confirmação de suas esperanças amorosas, colocam O Pássaro Profeta no patamar das maiores conquistas imaginativas de Schumann”.

Clique para ouvir, de Robert Schumann,
O Pássaro Profeta, na excelsa interpretação de Alfred Cortot em 1948:

https://www.youtube.com/watch?v=3HQ9yxiDLSM&t=27s

Na sequência interpreto uma das obras mais celebradas de Schumann, Carnaval de Viena op.26, distante cinco anos do Carnaval op.9. Schumann teria pensado em uma grande sonata romântica, que afinal até por motivos formais ganharia outra destinação. Os cinco episódios são contrastantes.  Allegro, a apresentar uma entrada decidida e que regressará sempre após os vários segmentos curtos, sendo que em um deles Schumann enuncia o tema da Marselhesa. Singela Romance vem a seguir e, logo após, um Scherzino que, à la manière de uma forma “rondó”, evolui jocosamente. O Intermezzo é um dos mais intensos apelos passionais na literatura pianística. Caloroso, exibe um tema intensamente emotivo, sempre acompanhado por rápida movimentação de semicolcheias. Por fim, o Finale arrebatador e seus temas cativantes. Claude Rostand (1912-1970), musicólogo e crítico musical francês, bem define o Carnaval de Viena que, na realidade se diferencia das intenções propostas anteriormente no Carnaval op.9: “A alegria vienense foi suficientemente contagiosa para inspirar Schumann a essa obra ao mesmo tempo caprichosa, brilhante, alegre, tenra, amorosa, apaixonada e mesmo impertinente e divertida”. Ademais, Claude Rostand observa que “… o Carnaval de Viena encerra a incomparável série de obras-primas pianísticas, uma das mais belas cumeeiras de toda a história universal da música”.

Os atributos do Carnaval de Viena contrastam com tantas outras criações schumanianas, estas mais intensamente confidenciais, caso específico da Grande Humoresque, curiosamente composta no mesmo período, no biênio 1838-1939.

Entre as composições de Schumann consideradas as mais complexas sob inúmeros aspectos, situa-se a Grande Humoresque op.20 que, ao longo das décadas, tem sido nomeada apenas como Humoresque. Particularmente, entendo Davidsbündle (Dansas do companheiros de David) op.6, Kreisleriana op.16, a Fantasia op.17 e a Humoresque op.20 como algumas das criações mais intensas pertencentes ao de profundis inquieto, apaixonado, conturbado e sujeito a depressões que levariam Schumann, muitos anos após, ao estado limite quando da tentativa de suicídio, dois anos antes da morte em um sanatório. Essas obras contêm o mais elevado grau de poesia não confessa, mas explicitamente traduzida através da música (sobre o tema poesia musical schumaniana, vide blog anterior).

Entre as pormenorizações sobre a Humoresque, Alfred Cortot que realizou a edição das principais criações do compositor, há a citação de uma carta à Clara datada de 11 de Março de 1839, na qual escreve: “Toda a semana estive ao piano a compor, rindo e chorando. Você encontrará as pegadas de tudo isso na minha Grande Humoreque”. Em Agosto do mesmo ano sinalizaria, em carta a um amigo, que a obra  “está mais preenchida de lágrimas do que de risos”. Alfred Cortot entende a singularidade exclusiva da Humoresque através de incisivo comentário: “Assim, tal como na sucessão de partes separadas de Davidsbündler ou da Kreisleriana, será o fio de um pensamento amoroso que liga secretamente os encadeamentos – esta vez ininterruptos, mas igualmente diversificados nas expressões – das cerca de vinte improvisações, deliberadamente ignorando qualquer exigência formal, mas cuja reunião, sob o título de Humoresque, constitui um dos exemplos mais flagrantes do gênio inovador de Schumann e ao qual não saberemos atribuir nenhum precedente em toda a história da literatura pianística”. Alfred Cortot insiste nessa orientação pessoal de Schumann quanto a determinadas regras composicionais: “O milagre acontece, apesar do constante desvio das regras construtivas consagradas e da liberdade com a qual as linhas melódicas se mostram sucessivamente enunciadas, abandonadas ou retomadas. Depreende-se todavia, dessa cintilação de ideias musicais sem aparente coesão, uma sensação de unidade e, por assim dizer, uma necessidade interior que, por exemplo, não poderia admitir nenhuma intervenção na ordem das proposições musicais, por mais livremente que pareça ter sido invocada no decurso de uma redação caprichosa”.

Clique para ouvir, de Robert Schumann, Humoresque op. 20, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=9QLA5sKqlrc

Como peça final, a contemplar a poética existente apesar da ausência das palavras, apresento, nesse Terceiro Encontro, Widmung (Dedicatória à minha noiva), na bela transcrição para piano realizada por Franz Liszt (1811-1886). No blog anterior inseri o lied Widmung na interpretação maiúscula de Hermann Prey, acompanhado ao piano por Leonard Hokanson.

Creio que Robert Schumann representa, na História da Música, o compositor que mais intensamente apreendeu e viveu os principais axiomas do movimento romântico.

In this second post dedicated to Robert Schumann, I’ll comment on the works that will be performed at the Third Encounter privé.

 

 

Robert Schumann e as motivações criativas

Queiram ou não os amadores da intuição,
a obra de arte é, na realidade,
a resultante de um sistema de pensamento próprio
daquele que a cria.
André Souris (1899-1970)
(“Conditions de la Musique”)

A música para piano de Schumann clama o verso e ela o dita.
Camille Mauclair (1872-1945)
(“Schumann”)

Na série de apresentações a que me propus, doravante em caráter privé, a temática presente envolve um dos mais representativos compositores do romantismo, Robert Schumann (1810-1856). Diferencia-se, em tantas criações, de determinados aspectos relacionados à forma perpetrada por seus ilustres contemporâneos, Frédéric Chopin (1810-1849), Franz Liszt (1811-1886) e Johannes Brahms (1833-1897), entretanto comungando em postulados outros concernentes a certos comportamentos emotivos.

Nascido na Alemanha, estaria destinado a seguir carreira jurídica, mas aos 20 anos decide-se inteiramente pela música. A escolha tardia, com implicações na formação sob ditames do ensino tradicional, fê-lo ter uma trajetória  singular, pois Schumann, compositor excelso, ao contrário de seu notável conterrâneo Johannes Brahms, não teve a mesma dedicação às formas vigentes; sob aspecto outro, sua obra, mormente as criações para piano e as melodias para canto e piano, apresentam temas e contexto geral de um romantismo estruturado no senso poético, este, revelado expressamente nos lieds ou canções. René Leibowitz (1913-1972), compositor, regente e musicólogo, define bem essa diferença: “Considero que, de um lado, nem Schumann, nem Brahms satisfazem o ideal de perfeição que eu buscava; sob outro prisma, a fusão de suas qualidades específicas e particulares parece-me estar à altura de realizar esse mesmo ideal”. Insistindo no aspecto que considera o mais intenso de Schumann, a comunicação direta através da inventiva das melodias, continua: “Na obra de Schumann, nós encontramos muitas vezes – quase em cada página – o que poderíamos nomear como a chama do gênio. Ideias extraordinárias, melodias incríveis do ponto de vista da originalidade, progressões harmônicas de uma rara justeza e de uma grande riqueza, elementos rítmicos carregados de vitalidade e de força propulsiva; tais são as constantes que marcaram as pegadas para sempre em sua arte”. Não obstante, Leibowitz comenta que, por vezes, Schumann não sabe o que fazer com o turbilhão de ideias.

Uma definição que bem apreende o romantismo schumaniano teria sido dada pelo musicólogo e crítico Marcel Beaufils (1899-1985), ao escrever que a música de Schumann é uma questão do coração. E o é, se considerada for toda a tensão a envolver sua ligação afetiva com a futura esposa, a notável pianista Clara Schumann (1819-1897), nascida Wieck, filha de Friedrick Wieck, professor renomado. A resistência paterna à união do casal foi motivo de um período atormentado sentimentalmente para Robert Schumann e Clara, mas um dos períodos mais expressivos na criação de obras do jovem compositor, máxime para piano. O casamento, após decisão da justiça autorizando a união, deu-se em 1840. Futuramente Friedrick Wiek se reconciliaria com o casal. Atributos do romantismo em suas manifestações mais pungentes, encontráveis na obra para piano de Schumann, testemunham a paixão existente por Clara, pois a produção intensamente emotiva, em que melodias penetrantes se destacam, dá-se preferencialmente na década de 1830. Significativas parcelas da produção para piano de Schumann, que exibem numerosas e cativantes melodias, poderiam ser consideradas “lieds sem palavras ou como poemas escritos com notas e não com letras”, segundo Camille Mauclair, poeta, novelista e musicólogo.

Clique para ouvir, de Robert Schumann, Widmung (dedicatória – à minha noiva), na expressiva interpretação de Hermann Prey. Ao piano, Leonard Hokanson. Friedrich Rückert é o autor do poema:

https://www.youtube.com/watch?v=ouEcALQc4rs&t=120s

Se Clara ou Chiarina (menção à amada no Carnaval op. 9) é inspiração constante nas criações para piano, nos lieds a chama permanece e vários são os poetas a alimentar a fértil imaginação de Schumann: Goethe (1749-1832), Heinrich Heine (1797-1856), Emanuel von Geibel (1815-1884), Friedrich Rückert (1788-1866), Joseph von Eichendorff (1788-1857), Nikolaus Lenau (1802-1850) e outros mais. E é o próprio Camille Mauclair que faz observações fulcrais sobre o caminho que Schumann empreenderá após o fluxo criativo gigantesco voltado à plena emoção, onde pontificará Clara: “A música para piano de Schumann constitui uma espécie de vasta confissão psicológica, uma manifestação individualista e inteiramente subjetiva”. Casados, a destinação criativa tenderá a outros caminhos e surgirão o Oratório, Sinfonias, música concertante, lieds, música de câmara e música coral, Manfred… Escreveria a Heinrich Dorn (1804-1892), compositor, regente e professor, com quem teve aulas no início dos anos 1830: “Sou tentado a destruir meu piano. Ele se tornou muito estreito para conter as minhas ideias”. Esta frase, anos após, já não poderia ser incorporada aos transtornos psíquicos que o levaram à morte, após prolongada internação? Inúmeros textos redigidos por musicólogos e especialistas em neurociência já se debruçaram sobre a evolução das perturbações mentais de Schumann, acentuadas no último lustro da existência, quando tentou o suicídio jogando-se de uma ponte sobre o rio Reno em pleno inverno, aos 27 de Fevereiro de 1854. Salvo por barqueiros, é recolhido a um sanatório, lá falecendo aos 29 de Julho de 1856, aos 46 anos.

No próximo blog comentarei as obras que apresentarei, a abranger várias fases composicionais do imenso Robert Schumann.

The “Third Piano Encounter” will be dedicated to Robert Schumann and significant works will be performed. There will be two blogs: in this first I’ll discuss some of the creative motivations of the immense composer; in the second, I’ll comment on the program.

 

 

O músico Luiz de Godoy, um talento incontestável.

Tenhamos confiança absoluta nas energias da vontade.
Saber querer é o sagrado mister dos corações sensíveis.
Austregésilo de Athayde (1898-1993)

Foi uma gratíssima surpresa o Concerto a que tive a grata oportunidade de assistir aos 19 de Maio último. Celebrava-se a data festiva do Coro da Osesp, criado em 1994, que se dedica prioritariamente ao repertório a abranger a música brasileira dos século XX e XXI. Esteve a conduzi-lo, nesse dia, o ainda jovem e já internacionalmente consagrado regente coral Luiz de Godoy.

Em blog bem anterior (vide Luiz de Godoy, 24/12/2016) já me pormenorizei sobre parte da atuação meritória de Luiz de Godoy como mestre-de-capela frente aos Meninos Cantores de Viena (2016-2019), um dos mais renomados grupos do gênero em termos mundiais, com 525 anos de história! Com os Meninos Cantores excursionou por 26 países. Simultaneamente, atuou como diretor do Coro Acadêmico da Ópera Estatal de Viena (2016-2018) e assistente de direção artística da Academia de Canto de Viena (2015-2019). Presentemente integra o corpo docente da Escola Superior de Música e Teatro de Hamburgo, na Alemanha.

A premissa sobre a atuação de Luiz de Godoy se faz necessária, máxime pelo fato de ter ele sido meu aluno na Universidade de São Paulo. Estou a me lembrar de Luiz de Godoy, que já estava em pleno curso na Instituição, adentrar a minha sala perguntando se doravante poderia ser eu o seu professor de instrumento. Ao se por ao piano e executar uma complexa obra de Oswaldo Lacerda tive a certeza de estar diante de uma joia rara. Aposentado, ainda continuei a dar aulas em nossa morada ao atento e esperançoso jovem, até a viagem à Europa empreendida por Luiz de Godoy, mercê de uma bolsa da Erasmus na Academia de Música e Dança de Colônia e na Universidade de Música e Performance Artística de Viena. Saliento a importância fundamental, na formação musical de Luiz de Godoy, do professor Renato Figueiredo, que delineou o perfil musical do então menino de 11 anos, seguindo criteriosamente  a sua evolução ao longo dos anos.

Sala São Paulo lotada. Deu-se a apresentação do Coro da Osesp sob a direção do regente convidado Luiz de Godoy, hoje um músico rigorosamente completo, um dos mais destacados da atualidade nas atividades a que se propôs. Saliente-se a participação especial do Coro Acadêmico da Osesp, dos pianistas Fernando Tomimura e Juliana Ripke e do acordeonista Gabriel Levy.

Primeiramente salientaria o gosto pela elaboração do programa, dele a constarem 10 obras significativas extraídas da música coral do século XV à atualidade. Luiz de Godoy, mui pertinentemente, pronunciou-se sobre a escolha do repertório, elencando os compositores e os seus propósitos em relação à criação.

Segui atentamente o desenrolar da apresentação, que manteve o público silencioso durante todo o prosseguimento do evento, respeito ao programa, tributo ao regente. O roteiro planejado seguiu harmoniosamente e, à medida que evoluia, mais cativava o auditório. A alternância das peças e seus respectivos moods evidenciaram não apenas a qualidade inerente do Coral da Osesp, como propiciaram a observância de determinadas qualidades do regente Luiz de Godoy, não apenas no aspecto estritamente musical como no gestual adequado, sem quaisquer exibicionismos, mas a apreender as essencialidades das partituras.

Estou a me lembrar de uma resposta da notabilíssima Nadia Boulanger (1887-1979), compositora, musicóloga, educadora musical francesa, a uma pergunta que lhe formulei quando de uma visita à sua morada. Qual a essência-mor da interpretação? Respondeu-me que era saber graduar as intensidades e que a maioria dos intérpretes trabalhava numa faixa intermediária, evitando as extremidades. Guardo os sábios conselhos da excelsa mestra desde sempre. Luiz de Godoy é um dos que cuidam das intensidades com esmero. No todo da apresentação, que exibiu quase sete séculos de exemplos pontuais, Luiz de Godoy cuidou da gama de intensidades, da quase inaudível à mais potencializada, o que resultou numa escala extraordinária do espectro sonoro. Essa apreensão do regente, rara nos tempos atuais, importou para cada obra interpretada pelo Coro da Osesp, apesar de estilos e adequações, mercê da cronologia, um interesse adicional. Quanto ao estilo, saliente-se a condução de Luiz de Godoy na sempre complexa compreensão dos períodos históricos. Uma tão extensa linhagem de compositores, que se estende por tantos séculos, poderia “homogeneizar” estilos. Na alternância do programa do passado ao presente, mais nitidamente ficou marcada a assimilação estilística. Luiz de Godoy soube transmiti-la ao Coral da Osesp, que tão bem a apreendeu. Creio que, em quaisquer interpretações, a compreensão estilística, adquirida através do conhecimento necessário das fontes primeiras, manuscritos definitivos ou rascunhados, fac-similes destes, partituras impressas, literatura pertinente e competente, proporciona ao músico a certeza da distância do equívoco. Se talento descomunal existir por parte do músico, emergirá a execução que servirá de modelo.

Luiz de Godoy não cuidou apenas do conteúdo musical em si. Preocupou-se em valorizá-lo sob égides outras, como a posição dos coralistas, que por vezes se deslocavam com a finalidade de determinado resultado sonoro previsto pelo regente, como na encenação relativa à última obra apresentada, O Mare Nostrum, da compositora holandesa Camille van Lunen (1957). Ao término desta, os coralistas, ao caminharem pelos corredores  pronunciando um autêntico mantra, conquistaram decididamente o numeroso público.

Encantou-me igualmente sua concepção de uma obra que me é muito cara, Magnificat em talha dourada: Ó, meu menino, do ilustre compositor português Eurico Carrapatoso (1962). Das várias versões que conhecia, algumas no Youtube, foi a interpretação concebida por Luiz de Godoy e executada com expressividade comovente pelo Coro da Osesp a que mais me impactou.

Neste país em que escassearam os valores maiúsculos voltados à música erudita, de concerto ou clássica, quando comparado a tantos do hemisfério norte e do Extremo Oriente, o surgimento de um músico de primeiríssima qualidade, hoje consagrado pelo seu talento, ombreando com os maiores do gênero em âmbito mundial, realmente é jubiloso.

Bem haja Luiz de Godoy em sua bela carreira.

The Osesp Choir’s performance under Luiz de Godoy was ineffably beautiful. Luiz de Godoy is now at the highest level of the planet’s great choral conductors. The concert held at Sala São Paulo on May 19 will remain etched in the memory of a large and attentive audience.