A Música Portuguesa em relevo

Cultura não é ler muito,
Nem saber muito,
É conhecer muito.

Fernando Pessoa (1888-1935)

Completando as considerações sobre os artigos publicados na revista Glosas, hoje na formatação livro, ratifica-se o esmero da direção não só com as matérias publicadas, mas também com as imagens, que no presente número ilustram com precisão os conteúdos literários.

Alejandro Reyes-Lucero se debruça sobre o salão para audições privadas de música vocal criado por Ema Santos Fonseca (1897-1968) e que prosperou em Lisboa de 1923 a 1940. Denominado “Divulgação Musical”, primou pela apresentação de obras desconhecidas do grande público. Apreende-se, no substancioso texto de Reyes-Lucero, que Ema Santos Fonseca era igualmente escritora e cronista, relatando os inúmeros saraus por ela promovidos. Figuras da cultura eram frequentadores dos saraus onde música e palestras enriqueciam a atividade. Reyes-Lucero observa: “Do grupo de jornalistas e escritores, cabe salientar os nomes de António Sérgio, Aquilino Ribeiro, José Maria Ferreira de Castro, Bento de Jesús Caraça, João de Barros e Luís da Câmara Reis. Do universo musical, despontam os nomes de Fernando Lopes-Graça e de Luís de Freitas Branco”. Acrescento que, em França, diversos salões mantidos por artistas ou mecenas ficaram na história. O de Stéphane Mallarmé (1842-1989), sempre às terças, recebia poetas, literatos, pintores e músicos. Claude Debussy, André Gide, Oscar Wilde, Paul Claudel e tantos mais eram frequentadores. Salões aristocráticos ou da alta burguesia que pontificaram durante a IIIª República em França, como os de Marguerite de Saint-Marceaux ou de Marie-Blanche de Polignac, que praticavam música como amadoras, recebiam igualmente músicos, poetas, escritores e pintores.

Ester Tavares, no artigo “Códigos e representações musicais na pintura decorativa oitocentista”, detém-se no “Caso do salão de baile da ‘casa mais bonita do Porto’ ”. Fartamente ilustrado, o artigo se debruça sobre o Palacete Silva Monteiro no século XIX. “Este palacete reflete uma nova forma de habitar, numa lógica burguesa e cosmopolita, expressando um determinado modus vivendi e estatuto social”, escreve a autora.

 

O compositor e professor Sérgio Azevedo, na rubrica “Livros com música”, atém-se a “Ravel”, de Jean Echenoz, escritor e romancista francês. Ao ler a substanciosa resenha de Sérgio Azevedo, concordo em número, gênero e grau com a sua apreciação. Escreve Azevedo que o pequeno romance sobre o compositor francês é “…um dos retratos mais ‘verdadeiros’ de Ravel que me foi dado ler; posso afirmá-lo sem hesitação alguma, uma vez que possuo a quase totalidade das biografias e estudos sobre o compositor…”. Fiz a leitura do livro no original em francês durante um retorno de Paris para São Paulo em 2013, resenhando-o em meu blog sob o título “Personagens reais em situações reais” (14/12/2013). Não preguei os olhos no transcurso, tal foi o fascínio que o Ravel de Echenoz me proporcionou. Trata-se de um “romance” mais ”fidedigno” do que algumas biografias percorridas ao longo das décadas. Fez-me entender melhor o homem Ravel do que biografias referenciais, entre as quais as de Armand Machabey ((1947), Roland-Manuel (1948), W.-L.Landowski (1950), Vladimir Jankélévitch (1965), HH.Stuckenschmidt (1966). Dois livros escapariam dessa apreciação por serem ligados à atividade instrumental, de preferência: “Ravel et nous”, da renomada violinista Hélène Jourdan-Morhange, dedicatária da Sonata para violino e piano de Ravel, e “Au piano avec Maurice Ravel”, da legendária pianista Marguerite Long, dedicatária do Concerto em sol para piano e orquestra do Mestre Ravel.

Christine Wassermann Beirão presta justa homenagem a uma notável pianista e professora na rubrica “Nos 110 anos de Helena Sá e Costa, uma fotobiografia”. Wassermann Beirão realiza uma apreciação do livro, que tem 400 páginas com centenas de fotos, dividido em 17 capítulos e escrito por 16 autores. Pelas observações de Wassermann Beirão, depreende-se que parte essencial da vida e da atividade de Helena Sá e Costa (1913—2006) foi desvelada. O prefácio é do competente Rui Vieira Nery. Conheci a ilustre pianista quando de um recital que sua irmã, a violoncelista Madalena de Sá e Costa (1915-2022), e eu oferecemos na Delegação Regional do Norte (Porto), aos 7 de Janeiro de 1986. Os ensaios realizamos em casa de Helena, que atentamente acompanhou nossa preparação. Realmente uma artista de exceção.

Comoveu-me a última matéria de Glosas 23, concernente ao meu derradeiro recital na Europa (30/05/2023), a encerrar minha atividade pianística no continente. Na introdução, “Glosando 2023”, escreve Edward Ayres de Abreu: “Um outro acontecimento marcante de 2023 dá ordem de fecho a este número da revista Glosas: José Eduardo Martins encerrou a sua carreira como pianista com uma última digressão pela Europa, a culminar em Maio com um emocionante recital no Museu Nacional da Música. Falamos de um verdadeiro amigo do MPMP: colabora, desde há longa data, com a associação e com a revista. Nas últimas décadas, pode considerar-se o responsável primeiro pela promoção da música portuguesa de tradição erudita ocidental junto do meio cultural brasileiro. Dele temos a honra de ver aqui publicado um breve texto sobre este adeus, na certeza de que vamos continuar a lê-lo e a celebrar esta rara amizade”. Generosamente, Ayres de Abreu inseriu uma foto tirada imediatamente após meu também último recital no Brasil, aos 31 de Agosto de 2023, na Pinacoteca Benedicto Calixto, em Santos, no momento em que minha mulher Regina entendia o instante do acontecido, como rezava o filósofo-musicólogo Vladimir Jankélévitch.

É de se louvar o culto aos valores musicais de Portugal empreendido pela equipe do MPMP, Patrimônio Musical Vivo. Que prossigam, apesar da atualidade nebulosa.

Finalizando, acrescento que é fundamental a uma revista sobre Música erudita ter, entre seus colaboradores, articulistas voltados a qualquer dos vários caminhos da arte sonora. Glosas está sempre a renovar os seus textos nas penas de tantos músicos que, mercê de especialidades, são convidados a colaborar. Essa prática possibilita o conhecimento, a riqueza através da diversidade temática e de autores, elementos que enriquecem os artigos numa orientação que poderia se avizinhar do enciclopedismo musical. Que continue a singrar mares sempre renovados!

In this second post on Glosas 23, I cover some of the topics addressed by the classical music magazine, starting with the activity of musical salons on the borders of the 19th-20th centuries, continuing with the figure of the remarkable Portuguese pianist Helena Costa and a review of Jean Echenoz’s book, “Ravel”.

A revista portuguesa Glosas e o compromisso com a Música

O que interessa na vida não é prever os perigos das viagens;
É tê-las feito.
Agostinho da Silva
(“Parábola da mulher de Loth”)

Desde Maio de 2010, quando do primeiro número de Glosas, houve a preocupação de divulgar a atividade musical de Portugal num período difícil em que a Cultura Humanística, e dela a fazer parte a Música, está a sofrer com o avanço de inúmeras atividades ditas culturais, sem lastro e efêmeras. Glosas luta bravamente desde o início, sempre sob a direção do competente Edward Ayres de Abreu e colaboradores de mérito. Convidado pelo diretor, tive vários ensaios publicados na prestigiada revista sob a rubrica “Ecos d’Além Mar”, a abordar a música portuguesa de concerto, que sempre cultuei, e dois compositores pátrios: Henrique Oswald (1852-1931) e Gilberto Mendes (1922-2016).

Durante anos, Glosas manteve as publicações em formato de revista, hoje no formato livro. O conteúdo qualitativo se mantém e é alvissareiro o fato de Glosas permanecer um veículo basilar nesses últimos quatorze anos. Antolha-se-me que Glosas é a publicação, no gênero, mais significativa em Portugal. Glosas 23 foi editada pela 9 Musas, Lda para o MPMP Patrimônio Musical Vivo, Lisboa.

O presente número (23) é rico em temas diversificados. O roteiro se abre com preciosa entrevista que um dos mais destacados compositores da nova geração, Nuno da Rocha (1986-), concede a Edward Ayres de Abreu. Não poucas vezes nos referimos, em posts anteriores, à sensível deterioração cultural, em termos globais, a atingir países em graus diferenciados.  Na significativa entrevista, Nuno da Rocha se mostra por vezes cético nesse mister. Ayres de Abreu bem se posiciona na apresentação de Glosas: “Nuno da Rocha fala-nos mais de sombras do que de sol – e não podemos senão compreendê-lo porque, em grande medida, as nuvens de que fala são as de toda uma geração – de um país? – que se vê obrigada – que se abandona? a navegar à vista e a reduzir futuros a retóricas”. A entrevista expõe com clareza o pensamento do compositor em tantos elementos constitutivos da música, a abordar técnica, estética, recepção, máxime criação. Algumas respostas a Ayres de Abreu merecem reflexão: “Não é só a minha música, a música que se faz hoje em dia, que é muito diversa, ela por si fixa as pessoas. O problema é haver estratégias para que essas pessoas vão às salas”. Menciona duas de suas criações: “Não tenho dúvida nenhuma de que alguém que tenha ido ver o Paraíso ou o Inferno (obras do entrevistado), mesmo a mais mozartiana da vida, foi contra a parede. E mesmo que saia de lá a dizer ‘Caramba, tanta dissonância!’, aquela escuta teve impacto, e certamente abriu ali qualquer coisa…”. Ayres de Abreu questiona: “Escreverás o Purgatório? E a resposta é imediata: “Não, já estamos em cima dele”. A entrevista é bem rica, a destacar não apenas o pensamento de Nuno da Rocha, como o seu modus operandi num labor que surpreende, mercê das inúmeras composições. “Desde que tenha orquestra, aceitaria tudo” afirma Nuno da Rocha.

Edward Ayres de Abreu formula perguntas para pronta resposta, “Inquérito Fugado”, e entre elas, “Compor música: por quê?” É um grito. “Para quem?” Para mim e para ninguém (pelos vistos). “Até quando?” Até breve, creio; Ritual diário ou manifestação ocasional? Quando tenho uma encomenda é um ritual diário; “Há ‘música antiga’ na tua música?” Claro; “Ópera ou teatro?” Teatro; “Campo ou cidade?” Lisboa. “Sons insuportáveis”. Restaurantes cheios de gente. “Sonhos para concretizar enquanto compositor?” Que a minha profissão comece a ser uma profissão.

Em entrevista à Tatiana Bina, os professores Helena Rodrigues e Paulo Maria Rodrigues expõem os trabalhos da relevante Companhia de Música Teatral nos seus “25 anos reencantando o mundo”. A permanência efetiva, com tantos projetos voltados aos bebês e à infância, e outras mais aspirações condicionam a Companhia de Música Teatral como pioneira em vários caminhos. Mérito de Glosas ao evidenciar o valor dos dirigentes.

Ana Sofia Malheiro se debruça sobre a Orquestra sem Fronteiras fundada por duas figuras idealistas, Catarina Távora, coordenadora de projetos pedagógicos da orquestra, e Martim Sousa, diretor musical, e que surgiu para dar oportunidade a jovens instrumentistas que, por múltiplas razões, não encontram caminhos para se desenvolver. O projeto, que vive do mecenato, não se restringe apenas à Orquestra, mas mantém “Residências em Música de Câmara” e os “Laboratórios de Escuta Criativa”, este voltado às crianças do primeiro ciclo. Catarina Távora explica essa ação junto às crianças do primeiro ciclo, onde “se trabalha a imaginação, a atenção, a criatividade, além da empatia e da relação intra e interpessoal”. Estimulantes dois outros projetos, o “Cantar-o-Lar”, a ter como objetivo “dinamizar quatro lares na cidade de Aveiro”, e “Música no Lugar Certo”, a atender doentes com câncer de mama do IPO de Coimbra. A OSF percorre o interior, “tocando em terras onde nunca uma orquestra havia passado”. Uma frase de Martim Sousa Tavares merece atenção: “Num país que está claramente virado para o litoral, quem vive no interior sente que tem uma capital que lhes vira as costas”.

Substancioso estudo, fundamentado na obra para piano do compositor Ruy Coelho (1889-1986), foi realizado por Bernardo Santos, resultado de suas pesquisas para doutorado. Pianista de mérito, Bernardo Santos focaliza com agudeza a obra para piano solo, piano camerístico e piano e orquestra. Apresenta a lista da opera omnia de Ruy Coelho, pormenorizando inúmeros intérpretes das suas criações através das décadas. O primeiro deles a ser mencionado foi colega de Ruy Coelho quando se aperfeiçoavam na Alemanha. Trata-se de Guilherme Fontainha (1887-1970),  pianista e professor respeitado no Brasil. Morava no Rio de Janeiro, mas quando em São Paulo tive duas ou três aulas com o Mestre Fontainha. Uma das composições de Ruy Coelho, Sonatina (1933), cuja estreia se deu pela pianista Nina Marques Pereira, foi gravada pelo musicólogo e pianista Bernardo Santos.

Clique para ouvir, de Ruy Coelho, Sonatina, na interpretação de Bernardo Santos:

https://www.youtube.com/watch?v=S5Af5RjZSPM

No próximo blog comentarei a sequência de artigos da referencial Glosas.

Glosas magazine, launched in 2010 in Portugal, is now in its 23rd issue. It covers a wide range of music. Now in book format, it maintains its continuous quality over time.

 

 

Respeito à partitura sem prejuízo do eu

A música não é um objeto físico nem mesmo um objeto real,
ela é uma imagem cuja execução,
e somente sua execução, comunica-se com o ouvinte
por uma certa maneira de unir, de modelar e de acentuar os sons.

Ernest Ansermet (1883-1969)
(“Écrits sur la Musique” 1971)

Ao longo dos anos, inúmeras vezes escrevi sobre a interpretação musical, o respeito à criação do compositor e, num caminho oposto, a arbitrariedade. Mercê de fatores a envolver empresários, patrocinadores e a publicidade ampla, verifica-se no presente a desatenção, por parte de muitos intérpretes, às mais consagradas orientações concernentes à tradição. Poder-se-ia considerar como liberação quase plena, que jamais seria aceita décadas atrás. Ingredientes a fazer parte do espetáculo atual propulsionam o intérprete a “criar” a sua execução a partir da partitura cuidadosamente composta pelo autor. Nesse desiderato, um dos aspectos mais comentados por expressivos compositores é o da transmissão da obra a obedecer o pensamento do autor. Em décadas passadas, foram muitos os músicos que, em depoimentos formais ou não, se pronunciaram, a enfatizar o respeito à partitura. Todavia, há que se entender a personalidade de cada intérprete, numa abrangência a considerar a diversidade instrumental.

Comentei em blog recente o desacordo de Maurice Ravel (1875-1937) que, ao ouvir em Nova York Arturo Toscanini (1867-1957) reger o famoso Bolero, acelerando o andamento à medida que a obra evoluía num crescendo constante, ficou furioso pela atitude arbitrária do renomado regente, pois a obra mantém do início ao fim um andamento inflexível. Em outra oportunidade, Toscanini e Igor Ígor Stravinsky (1882-1971) concordaram que “ao executante cabe tocar o que está escrito”. Na realidade, os dois grandes Mestres não eram contra a imaginação do intérprete. Nesse sentido, o insigne regente suíço Ernest Ansermet considera que “…o intérprete não deve introduzir na obra efeitos próprios, mas somente o que implica o texto do compositor, a saber: o que recupera o que está escrito”. Em oposição ao preceito de Toscanini e Stravinsky, Ansermet observa: “Não se toca jamais ‘o que está escrito’, mas não se deve tocar nada que não esteja em conformidade com o senso musical do texto”.

As transformações no que concerne à interpretação sofreram nesses últimos decênios o choque da aceitação pública sob outras égides, máxime às excentricidades de executantes que, colhendo aplausos retumbantes, permitem-se “inovar” sobre a sacra criação musical. Em blogs distantes de mais de uma década observei ter ouvido, durante minhas turnês pela Europa, músicos extraordinários desconhecidos do grande público, mas que transmitiam a mensagem musical de maneira contagiante, sem contudo se absterem da imaginação até ampla, mas respeitando o pensamento do compositor.

Ernest Ansermet apreende a essência dessa bivalência compositor-intérprete: “No momento em que o autor concebe sua obra, ele obedece à sua intuição concernente às possibilidades da linguagem musical; pode mesmo se dizer que quase toda a sua concepção é, a seu ver, evidente e não precisa ser analisada, sendo pois uma criação sintética que comporta inúmeros elementos irrefletidos. O executante, ao contrário, em presença do texto e para descobrir o que pensa o autor, deve primeiramente fazer a análise, ou seja, penetrar além do texto até o senso da música que o autor esquematizou no papel. Entenda-se, ele é, nesse momento, um intérprete e não um mero executante”. Ernest Ansermet tece outros comentários: “A interpretação sonora procede da mesma intuição da linguagem musical, tanto para o intérprete como para o autor, sendo que, para o autor, ela visa criar novas manifestações dessa linguagem, para o intérprete ela almeja criar a imagem concreta, refletida pelos sons, da escrita criada pelo compositor, o que implica uma certa congenialidade do intérprete e do autor. Aquele cria a obra ‘real’ após um esquema por ele traçado, tornando-se o porta-voz do homem num certo meio e em uma certa época. Essa criação de segunda mão é sancionada pelo público na medida em que este pode reconhecer na obra executada precisamente o que o compositor expressou consciente ou inconscientemente”.

As sábias linhas do insigne Ernest Ansermet apenas ratificam a necessidade de se distanciar da arbitrariedade. Mencionaria dois exemplos que me parecem claros a respeito de liberdades interpretativas perigosas, mas saudadas com entusiasmo pelo público atual que, assim agindo, apenas estimula o processo. A magnífica obra para cravo de Jean-Philippe Rameau (1683-1764) teve algumas gravações ao piano, pontificada pela primeira realizada pela imensa pianista francesa Marcelle Meyer (1897-1958) em 1953. Em 1997 fui o terceiro a gravar a integral em Sofia, na Bulgária, e lançada na Bélgica pela De Rode Pomp num duplo CD e, posteriormente, no Brasil pela Concerto. Atualmente há outras mais gravações ao piano e 20 ao cravo.

Duas interpretações ao piano causaram-me estranheza. O excelente pianista moldavo Alexander Paley (1956-) gravou a integral, mas improvisou a partir do original em quase todas as peças, quando das repetições indicadas por J-P.Rameau. Entendo como um equívoco. O virtuose russo Daniil Trifonov (1991-), um dos mais representativos pianistas da sua geração em termos mundiais, tendo se apresentado recentemente em São Paulo, tanto em nossa cidade, como no Carnegie Hall de Nova York, interpretou a suíte em lá de Rameau (1728) e o vídeo está no Youtube. O virtuose romantizou ao extremo a suíte inteira e em determinadas peças, a Allemande e a Sarabande, excedeu em impulsos românticos, sendo que na Gavote variée finalizou as últimas variações como se fossem de grande virtuosidade “romântica” no andamento e na dinâmica. Acrescentou ornamentos e floreios não indicados na obra completa original para teclado que exibe mais de 5.000 sinais apropriados. Rameau criou a sua tabela de agréments (ornamentos), clara a não possibilitar dúvidas quanto à sua execução (vide imagem acima). É só respeitá-la devidamente. Parafraseando o grande filósofo e musicólogo francês de descendência judaica, Vladimir Jankélévitch (1903-1985), que, ao ser perguntado por um jovem alemão que o visitou em Paris a respeito de qual ser a razão para ele nunca mais sequer escrever sobre o pensamento da Alemanha, respondeu-lhe que não tinha a procuração de seis milhões de mortos no holocausto. Teriam porventura, numa visão imaginária, os referidos intérpretes recebido procuração de Jean-Philippe Rameau? Se outros pianistas, dando asas à imaginação, fizerem o mesmo, mas com outras “tendências” interpretativas, a extraordinária criação de Jean-Philippe Rameau não estará sujeita à completa descaracterização? A se pensar.

The theme of is blog deals with musical interpretation following the guidance of the score versus arbitrariness, which creates an obstacle to the tradition that has been perpetuated over the centuries.