1959-2023: os limites da atuação pianística no Exterior

Pouco a pouco recuperei a memória.
Talvez a ela tenha retornado,
encontrando a lembrança que estava à minha espera.

Albert Camus (1913-1960)

Aos 14 de Julho de 1959 realizava o primeiro recital na Europa, a convite do insigne compositor Fernando Lopes-Graça (1906-1994). A récita se deu na Academia dos Amadores de Música em Lisboa. Por lá passaram músicos notáveis e alguns dos ilustres escritores e poetas portugueses. Entre os presentes ao recital, Dr. João Couto (1892-1968), Diretor do Museu de Arte Antiga (Janelas Verdes), o grande pianista Sequeira Costa (1929-2019) e sua futura esposa, a também ótima pianista Tânia Achot (1937-2022), o escritor e crítico musical João de Freitas Branco (1922-1989), que escreveria em “O Século” impressões a respeito da apresentação. Ficaria indelével no meu de profundis aquela noite significativa para o jovem intérprete.

Meu último recital na Europa só poderia ser em Lisboa, desta vez no Museu Nacional da Música, dirigido por Edward Ayres de Abreu, músico respeitado e incentivador das qualitativas publicações de partituras e textos sobre músicos portugueses.

No dia anterior ao recital, que se daria em 30 de Maio, dei entrevista para o consagrado programa Antena 2 da RDP, tão bem conduzido por Paulo Guerra. No longo diálogo, perguntas argutas do competente jornalista me fizeram recordar as mais de 50 visitas a Portugal para recitais, palestras e alguns júris acadêmicos. Antena 2 tem um grande alcance e, sempre após outras tantas entrevistas com Guerra ao longo dos anos, ao me apresentar em diversas cidades havia melómanos que tinham ouvido os diálogos a versar sobre música e outros temas.
No dia do recital no Museu da Música Portuguesa caminhava com minha filha Maria Beatriz, que tão bem me acompanhou, e a memória esteve a apontar as tantas amizades que já partiram. Incentivo a mais para a derradeira apresentação. Como não lembrar da imensa gregorianista Júlia d’Almendra (1904-1992), especialista igualmente em Claude Debussy? Mais de uma década de convívio em torno do compositor francês, sem contar com o fato de que, nas minhas visitas a Portugal, acolhia-me em sua morada, 25, Rua d’Alegria, 1º andar. Paulatinamente apresentei a integral de Debussy, tanto no Instituto Gregoriano de Lisboa dirigido pela mestra, como na Biblioteca Nacional. Estou a me recordar de Humberto de Ávila (1922-2006), renomado crítico e musicólogo do Diário de Notícias naqueles anos e que me privilegiou com vários comentários sobre as apresentações em Lisboa no conceituado jornal; Jorge Peixinho (1940-1994), compositor notável, amigo-irmão do nosso ilustre Gilberto Mendes (1922-2016) e meu dileto amigo também. Foi uma alegria interpretar em primeira audição duas de suas criações, sendo que o magnífico Etude V – Dei Reihe Courante me foi dedicado. O regente e musicólogo Manuel Ivo Cruz (1935-2010), com o qual mantive contatos expressivos sempre que em Lisboa. Sob sua batuta, toquei o Concerto nº 3 de Beethoven, sendo que em outra ocasião foi a vez de minha mulher, Regina Normanha Martins, com o Concerto de Carlos Seixas. José Maria Pedrosa Cardoso (1942-2021), musicólogo notável, amigo-irmão. Tivemos vários projetos que resultaram. E na morada do casal José Maria-Manuela hospedei-me inúmeras vezes, só ou com Regina. Tantos mais músicos ou amantes da cultura povoaram minhas visitas constantes a Portugal. Se menciono alguns que já partiram, tenho a alegria do convívio com tantos outros que enriquecem o meu pensar. Desfilam na memória figuras a fazer lembrar o dizer de Albert Camus, pois “estavam à minha espera”.

Clique para ouvir, de Jorge Peixinho, Etude V – Dei Reihe-Courante na interpretação e J.E.M.:

https://www.google.com/search?q=Youtube+Jorge+Peixinho+Etude+Dei-Reihe+Courante+Martins+piano&oq=Youtube+Jorge+Peixinho+Etude+Dei-Reihe+Courante+Martins+piano&aqs=chrome..69i57.28671j0j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8

Público atento esteve presente no Museu Nacional da Música, espaço cercado por inúmeros instrumentos antigos, inclusive um piano doado por Franz Liszt (1811-1886) quando de sua passagem para apresentações em Lisboa (1845). O MNM carrega uma aura que propicia ao intérprete uma interação outra.

O repertório escolhido para o derradeiro recital em Lisboa teve, em parte, um expresso saudosismo, como se o intérprete estivesse a homenagear não apenas o insigne Fernando Lopes-Graça, mas a agradecer a guarida que sempre teve ao longo dos anos e as amizades profundas advindas de um convívio permanente com músicos ou amantes das sonoridades.

Como acontecera em Gand, na Bélgica, ao finalizar o último recital na Europa em Lisboa senti emoção forte, lembranças afloraram da apresentação no auditório da Academia de Amadores em Julho de 1959 e pareceu-me que o ciclo se completava definitivamente, nele a conter toda uma verdadeira devoção pela música produzida em Portugal desde, no caso, Carlos Seixas (1704-1742) ao notável Eurico Carrapatoso (1962-), diletíssimo amigo. Foi o repertório desses três séculos que busquei, quando imergi em composições excelsas portuguesas, transmitir em recitais e gravações. Essas criações fizeram parte considerável do meu repertório.

As duas Sonatas de Carlos Seixas, em lá menor (71) e em Dó Maior (8), integraram o programa, juntamente com duas breves composições de Lopes-Graça, Dança Antiga das Bagatelas e Alcobaça dançando um velho fandango, da coletânea “Viagens na Minha Terra”. Sobre estas duas, retive durante muitas décadas os manuscritos autógrafos de Lopes-Graça. Ao chegar em Lisboa em Julho de 1959, disse ao notável compositor que gostaria de incluir no programa duas de suas peças. No dia seguinte presenteou-me com os manuscritos originais acima mencionados. Não faz oito anos doei-os à Casa Verdades de Faria em Cascais, onde se encontra o espólio de Lopes-Graça.

No programa inseri outras criações que me ligavam mais precisamente à Lisboa. Em 1983, tricentenário de nascimento de Jean-Philippe Rameau (1683-1764), apresentei a integral para cravo interpretada ao piano em dois recitais no Teatro São Luís. No presente, inseri a magnífica Suíte em Lá Maior. Criações de Francisco de Lacerda (1869-1934), Eurico Carrapatoso, Gilberto Mendes (1922-2016) e Francisco Mignone (1897-1986) completaram o programa.

Emoção maior espera-me após o recital. Convidados para o jantar, ao adentrarmos no restaurante Rústico-Luz, na sala maior para eventos do estabelecimento, um jantar promovido por amigos músicos portugueses, capitaneado pela ilustre regente coral e gregorianista sucessora de Júlia d’Almendra, Idalete Giga, reuniu cerca de trinta amantes da música. Resistir, quem há-de? Em dado momento, a intérprete de guitarra portuguesa Marta Pereira da Costa encantou os participantes com belas composições solo. Para finalizar, um bolo comemorativo de meus 70 anos de atividade pianística, 64 a tocar em Portugal, ratificou meu apreço incondicional à cultura portuguesa, às amizades fiéis e às terras lusitanas.

Ao longo dos blogs tenho salientado que meu afeto incondicional à música portuguesa instalado desde a juventude, a Carlos Seixas, a Lopes-Graça… apenas foi ratificado com os anos a passar. O leque se abriu. Findar os recitais europeus em Lisboa tem para este intérprete simbologia. Convenço-me de que Bélgica e Portugal, entre outros países que me são caros, como a França, são aqueles em que as raízes chegaram mais ao fundo. No caso de Portugal há os laços sanguíneos, mas a compor o amálgama existe o efeito humano, propiciado pelos elos de amizade que as décadas fortaleceram, e o musical, graças à qualidade de alguns notáveis compositores.

No próximo blog escreverei sobre as impressões da palestra com exemplos musicais na cidade de Évora, inúmeras vezes visitada para recitais, e a palestra durante o lançamento de meu segundo livro pela renomada Universidade de Coimbra, que teve, no evento, a comovente introdução do professor catedrático de História Medieval da Instituição, João Gouveia Monteiro.

The last recital in Europe was in Lisbon, the city where I first performed in Europe in 1959. The cycle comes to an end,  after 64 years of crossing the Atlantic for performances.

A Música como respiração

O objetivo de teu esforço deve ser a ação e não o que ela trará.
Não sejas como aqueles que,
para agir, têm necessidade desse estimulante:
a esperança da recompensa.
Ludwig van Beethoven (1770-1927)

Há que se pensar na coda, termo italiano tão utilizado para indicar o caminho final de uma música. A coda também está presente na vida do intérprete. Fase final, acordes em fortíssimo ou, à maneira da flama de uma vela que serenamente se extingue, sons em pianíssimo.

Desde a eclosão da pandemia pressentia que o término das apresentações públicas estava próximo. Se o técnico-pianístico não sofria alterações, há que se pensar que a mente sabe indicar, a todo o mecanismo físico a finalizar na ponta dos dedos, os rumos do silêncio quanto ao contato frente ao público após 71 anos. Anualmente pontuava poucos recitais, quase sempre a privilegiar repertórios ignotos representativos ou composições contemporâneas. Essa seleção teve o cunho pessoal sem concessões quanto à qualidade.

Já salientara em blog anterior que Gand, na Bélgica, e Lisboa seriam as cidades escolhidas para o encerramento das apresentações na Europa, sendo que as atividades ligadas à música prosseguiriam em termos literário-musicais. Continuarei o contato sensível com o piano e terei o prazer de tocar para aqueles que me cercam, intimamente, respirando os sons que me acompanham pela existência.

Ter escolhido as duas cidades para as despedidas europeias, pianística e presencialmente, tem outras explicações adicionais. Aos 85 anos, as viagens transatlânticas se tornaram um complicador. Espaços nas aeronaves progressivamente diminuídos na classe econômica, transporte da bagagem outro problema, aeroportos superlotados, lhaneza em extinção.


Gand, na Bélgica Flamenga, representa muito para este intérprete. Em blogs bem anteriores comento a relação primeira que se deu em torno de uma apresentação totalmente dedicada a Henrique Oswald com a participação de inúmeros excelentes músicos da Bélgica, sendo que atuei em toda a longa primeira parte na execução de música de câmara e piano solo e, na segunda, o coral Nove Canto dirigido magnificamente por Katrijn Friant interpretou a magnífica Missa de Réquiem do nosso mais importante compositor romântico. O concerto foi realizado no Muziekconservatorium de Gand no dia 18 de Novembro de 1995. No dia seguinte ao evento conheci, num instante ocasional já narrado em blogs bem anteriores, André Posman, diretor da programação dos concertos do De Rode Pomp e do selo que leva o mesmo nome. Em 1998, depois de várias apresentações que realizei no auditório, disse-me que chegara a hora de deixar a minha herança musical. As gravações se sucederam durante vinte anos, sempre a ter Johan Kennivé como engenheiro de som, um dos mais relevantes mestres do planeta. Em acréscimo, Johan é versado em música e psiquiatra. Como foram importantes para mim esses atributos somados! André acredita na perenidade do legado das suas gravações. Oxalá isso ocorra, apesar do selo De Rode Pomp, hélas, não mais existir. Quanto às gravações, sempre acreditei que elas devem ser realizadas nas melhores condições possíveis, algo impensável ao gravar cinco LPs no Brasil nos anos 1980.

Dos 25 CDs que gravei no Exterior, 21 foram realizados numa cidade próxima, Mullem, bem pequena, mas plena de charme. Na mágica e misteriosa capela Saint-Hilarius (século XI), anualmente gravava um ou dois CDs. Eram três sessões que tinham início nas fronteiras da meia-noite, prolongando-se até ao amanhecer. Jamais Kennivé pressionou-me quanto ao término das sessões. A anteceder as gravações realizava recitais na sala da De Rode Pomp a interpretar repertório que gravaria. De Rode Pomp mantinha uma revista a apresentar não apenas a programação do mês, como ensaios escritos por musicólogos relevantes da Bélgica e de outros países europeus.

As relações de amizade com André, sua esposa Jamila e segmento do meio musical gantois assinalaram a fidelidade absoluta. Jamila daria à luz gêmeos, que hoje são músicos do mais raro talento: Taha, pianista, Yassine, clarinetista. Nesses dias em Gand ouvi-os num ensaio interpretando, com um também jovem violoncelista, Jacob, trios de Beethoven e Brahms numa ótima execução, a lhes antever brilhante futuro.

Na foto de 2012, os gêmeos Taha e Yassine, Tycho e Trixie, estes filhos do dileto casal Tony e Tania Herbert, lar onde permaneço durante minhas viagens à Bélgica. A segunda foto foi tirada no dia 25 de Maio último.


No recital em uma das salas da antiga De Rode Pomp, que abrigava exposições de pinturas, hoje a servir para recitais solo ou de câmara, deu-se o longo recital, o derradeiro, após cerca de vinte em que me apresentei no antigo auditório da organização. Impossível não sentir emoção sabendo ser o último nessa tão querida cidade. A generosa acolhida e o rever velhos amigos, que estiveram presentes desde o recital de 1995, comoveram-me. Jean-Philippe-Rameau, Bach-Liszt, Schumann-Liszt, Lucien Posman, Gilberto Mendes, Francisco Mignone e Scriabine (12 Poemas) foram os compositores escolhidos.

De Rode Pomp mantinha uma programação de cerca de 120 apresentações anuais de artistas provenientes da Europa Ocidental e dos países eslavos, mormente os russos. O nível desses recitais estimulava as audiências, que acorriam quase diariamente aos eventos. Há um pulsar musical em Gand desde a Idade Média, que continua vivo. Ao ouvir o jovem trio Malatya, acima mencionado, renasceram neste veterano músico as esperanças de que a música clássica, erudita ou de concerto, apesar da massificação de gêneros sonoros voltados às multidões e que propiciam lucros extraordinários às patrocinadoras e àqueles que se apresentam, tem ainda cultores da nova geração com amadurecimento exemplar e qualidade ímpar, friso, em apreciável número, como me relataram vários músicos profissionais belgas.

Ao encerrar o recital interpretei de Francisco de Lacerda (1869-1934), como extraprograma, “Oraison dominicale des Castors”, pequena peça a representar a síntese da síntese do autor e que finaliza nas baixíssimas intensidades. Dediquei-a ao meu amigo Joep Huiskamp, que, ao longo dos mais de vinte anos, desloca-se com sua esposa Jonneke de Eindhoven, na Holanda, às cidades belgas em que me apresento. Em 2012 e 2019 o casal viajou para Coimbra e Lisboa, respectivamente, para outros recitais. Joep adora a obra de Francisco de Lacerda e os Açores, terra natal do compositor. A presença do também amigo, professor e pianista Alfonso Medinila que frequentou várias gravações realizadas em Mullem igualmente me comoveu.

Gand ficará gravada no meu de profundis pelas razões elencadas e por ter me proporcionado gravar, sempre à minha escolha, obras extraordinárias, a maioria tão pouco frequentada. Ter gravado um CD unicamente com obras de compositores belgas foi um raro privilégio.

Clique para ouvir, de Daniel Gistelinck, Resonances, na interpretação de J.E.M. O CD “New Belgian Etudes” contemplou 10 compositores belgas relevantes:

https://www.youtube.com/watch?v=4XflfeoeAl8

Clique para ouvir, de Lucien Posman, Le conte de l’Étude Modeste, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=nkuj97dvXYA

 

Os dois próximos blogs abordarão as atividades finais em Portugal.

In Ghent, Belgium, I gave my next-to-last recital in Europe this year, putting an end to my public pianistic activities. I now recall aspects that have been dear to me during the 27 years I visited this lovely city and where I’ve made everlasting friendships.

O Tempo insubornável

O que seria do homem sem o fervor?
Antoine de Saint-Exupéry
(“Citadelle”)

O presente post é bem curto. A dificuldade de acessos e a minha quase absoluta ignorância a respeito da tecnologia, que avança diariamente, impedem minha atualização nesse complexo mister artificial, mas relevante.

Ao retornar às nossas terras dedicarei dois ou três blogs às viagens e haverá, em consequência, a presença de fotos que me são caras e outras que virão nessa turnê.

Ter chegado ao término europeu relativo às apresentações públicas está a me levar a experiências emocionais jamais presentes ao longo desses 71 anos, sempre a tocar e na mais absoluta comunhão com a atividade pianística, buscando aprofundar-me nos porquês da criação musical.

Sob outro aspecto, Bélgica e Portugal habitam o meu de profundis, pois nesses países vivi os mais significativos impactos quando das apresentações pianísticas, mercê também dos repertórios que, se de um prisma, abordavam com bem menos intensidade as composições tradicionalíssimas que povoaram dedos e mente nas quatro primeiras décadas, sob outra égide, o trabalho arqueológico se abriu quando penetrei no repertório do passado pouco ou nada frequentado, mas incomensuravelmente valioso, naquele da contemporaneidade, o que me fez conhecer compositores extraordinários. Se a França me é tão cara, pois parte fundamental de minha formação devo aos ensinamentos recebidos, seria contudo em torno das pesquisas sobre o notável Claude Debussy que se acentuaram as relações.

As amizades mantidas ao longo das décadas se prolongam. Dádivas.

Até um próximo blog, prezado Leitor, cúmplice das minhas linhas ao longo de dezesseis anos.