Dúvidas que pairam a partir da atualidade cultural nebulosa

Desfrute sempre do presente com discernimento,
assim o passado te será uma bela lembrança
e o futuro não será um espantalho
Franz Schubert

Estava a fazer compras rotineiras em supermercado de minha cidade-bairro, Brooklin–Campo Belo, e em certo momento um jovem me pergunta se eu era quem ele pensava. À resposta afirmativa veio a razão da pergunta, pois sua professora aconselhara-o a seguir meus blogs hebdomadários e a ouvir minhas gravações no Youtube. Através das imagens me reconheceu. Confesso que fiquei feliz, pois raramente ouço pergunta semelhante, mormente pelo fato de ter verdadeira idiossincrasia pela mídia atual por motivos vários, que vão da sentida decadência cultural em nosso país, da ausência de artigos ou da crítica musical especializada, tão operante até pouco mais de meio século atrás, da sentida diminuição de público para os recitais de música erudita ou de resistência e pelas transformações ditadas pelos costumes, graças em grande parte à ascensão vertiginosa dos aplicativos internéticos que, se ostentam por vezes temática de boa qualidade, dedicam-se principalmente às insignificâncias. Todas essas mutações que impactam a sociedade desestimulam acentuadamente as apresentações públicas no Brasil, principalmente os recitais solo e a música de câmara.

Os avanços tecnológicos, que fizeram desaparecer do mercado os discos 78 rotações, os LPs e condenaram à morte os CDs, conduzem o ouvinte ao fugaz, aos aplicativos e, através desses, é possível verificar a estratosférica diferença de acesso à denominada música de concerto e  a outras tantas modalidades voltadas ao público que lota os grandes espaços públicos. É fato que todos os hits que granjeiam milhões de acessos rapidamente são substituídos. Não poucas vezes abordei esse tema.

Estou a me lembrar de um recital que apresentei em Belém do Pará, integrando uma semana de recitais e concertos que a cidade programara na década de 1990. No mesmo hotel estavam hospedados dois insignes músicos, a pianista Yara Bernette e o violoncelista Antônio Del Claro. Numa das noites, no terraço do hotel, nós três conversávamos e Bernette, que vivera décadas na Alemanha, onde atuou como professora catedrática de piano da Escola Superior de Música da Universidade de Hamburgo, asseverou que o recital solo estava com os anos contados e que apenas alguns intérpretes com patrocinadores e mídia acoplada ainda levariam público maior (vide blog: Yara Bernette – 1920-2002, 12/12/2020).

A ilustre musicóloga francesa Danièle Pistone, após observar que “o recital se encontra em dificuldade”, continua a dizer: “No momento em que desaparecem os ‘monstros sagrados’, quando se impõe ‘o fim do sacerdócio’, quando o ensino se torna o ‘descarrego normal’ e quando a evolução da música gravada é ainda mal controlada, no momento em que os pianistas franceses nem sempre são bem apreciados em seu país, necessário se faz salientar como esses intérpretes se sentem solitários e, talvez, nem sempre felizes” (“Pianistes du XXe siècle – Critique, pédagogie, interprétation”. Textes reunis et édités par Danièle Pistone. Université de Paris-Sorbonne, 2007).

Essas considerações me fazem retroagir e pensar nos excelentes mestres que São Paulo abrigou cerca de 70 anos atrás e em uma plêiade de jovens pianistas, entre os quais diversos se salientaram no Brasil e internacionalmente. Três, entre outros mais professores, se destacavam: José Kliass e os pianistas professores Sousa Lima e Fritz Jank. Em seu livro “Os últimos intelectuais”, o professor de história da Universidade da Califórnia  Russel Jacoby escreveu que a entrada de respeitados mestres nas universidades fê-los, em parte, perder esse convívio extramuros e uma de suas frases é aguda: “Quando por fim a posição requerida e a segurança forem atingidas, o talento, e até o desejo de pensar intrepidamente há muito terá atrofiado” (vide blog: “Os últimos intelectuais”. 21/03/2009).

Clique para ouvir, de Jean-Philippe Rameau, “Les Cyclopes”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=c7lyY0pBRkU

Teria sido após a Segunda Grande Guerra que as maiores transformações da história da humanidade se processaram devido à tecnologia. Para as gerações mais novas, a aceleração relativa às inovações é mais facilmente assimilada. Num paralelismo real, as transformações da sociedade igualmente estão em curso acelerado. As artes e a música se inserem nesse processo. No caso da música erudita ou de concerto, assiste-se a uma proliferação de tendências “composicionais” jamais vista na história. Nesse vastíssimo repertório novo, quantas não são as obras que só conhecerão uma única apresentação, se tiverem a chance de uma première. O insigne compositor francês Serge Nigg (1924-2008) já dizia que, se no passado conhecia músicos das mais variadas áreas, no seu presente, ironicamente, preponderavam os “compositores”, mercê dos caminhos individuais “criativos”.

O encontro com o jovem que fez a pergunta que me surpreendeu levou-me à reflexão. Há dois anos e meio sem tocar em público graças à pandemia e, sob outra égide, sendo infenso às interpretações online, o gesto do rapaz foi recebido com simpatia. Um jovem a ouvir e a praticar a música clássica ou de concerto. Esperanças…

A young man asked me in a supermarket in my neighborhood if I was the pianist José Eduardo Martins. His question was the starting point for a few reflections on the decline of classical music.

 

Aspectos da edificação de um músico

El artista que ejecuta profesionalmente el piano,
o cualquier otro instrumento musical,
debe antes que nada dominar en todos sus detalles
tanto el instrumento como la obra que ejecuta.
Jaime Ingram

Continuo a anotar determinados questionamentos sobre a formação do músico desde a origem. Há abundante literatura que aborda a complexa atividade sob várias facetas e já dediquei diversos posts à temática. Tem havido uma aceleração dessas dúvidas, mormente após desfilar, ao longo dos anos, uma quantidade significativa de grandes mestres do teclado do passado, que tem propiciado uma guarida acolhedora por parte dos leitores.

Uma das dúvidas bem colocada por diversos leitores é a da nomenclatura que por vezes emprego a “diferenciar” músico e virtuose. Na realidade, ao mencionar o termo virtuosidade, deixaria claro que todos os grandes mestres elencados neste espaço a tem. Não obstante, há alguns que a possuem no mais alto nível devido a vários motivos e, para tanto, figuraram entre os pianistas homenageados Vladimir Horowitz, Josef Hofmann, Shura Cherkassky, Jorge Bolet, Andor Foldes…Todos causaram admiração pelas performances absolutas sob o plano da técnica pianística, além de terem sido grandes músicos. Como entender a transcendente técnica de György Cziffra, um autodidata na infância e que, em campo de concentração durante a 2ª Grande Guerra, durante bom período teve que transportar pedras de 30 quilos ou mais, motivo que o levaria a utilizar munhequeira na futura carreira de pianista?

Gisèle Brelet afirmaria que “há uma qualidade particular do virtuose independente dos dons propriamente musicais: a necessidade e o gosto pela exteriorização. Parece-me que a obra, uma vez apreendida musicalmente,  pode ser interpretada tanto pelo músico como pelo virtuose. Ao músico bastam a estrutura ideal da obra e a sonoridade na indeterminação de suas possibilidades. E ele interpreta, tentando salvaguardar essa estrutura ideal que seu pensamento contemplou, não buscando realizar uma execução particular, mas conduzindo-a até o extremo limite do concreto e a completa determinação qualitativa” (“L’Intérpretation Créatrice”, 1951).  Na maturidade, tanto o músico intérprete ou o virtuose não desprovido de musicalidade serão respeitados. Seria possível acreditar que o primeiro se voltará preferencialmente à interiorização e Wilhelm Kempff, Alfred Cortot, Dinu Lipatti e Clara Haskil são exemplos nítidos, enquanto que os elencados anteriormente causam estupefação através do desempenho como virtuoses.

Clique para ouvir, de Schubert, o Improviso op. 90, nº 3, na interpretação de Dinu Lipatti:

https://www.youtube.com/watch?v=NganWOe8yTc

Clique para ouvir, de Moskowsky, Étincelles, na interpretação de Vladimir Horowitz:

https://www.youtube.com/watch?v=X27N_svVPok

Perguntas chegaram nesses anos a respeito da memória e o porquê de determinados intérpretes terem repertórios imensos e memorizados. Há muitos estudos a respeito e pontuo dois do Dr. André François Arcier (Le Trac: Le comprendre pour mieux l’appprivoisier Le trac: stratégies pour le maîtriser, 1998 e 2004, respectivamente) que pormenoriza o tema, mormente quanto à possibilidade do “branco” – falha da memória -, entre tantos mais referentes às tensões várias do intérprete de diversos instrumentos (vide blog “O medo do palco – Problemática e possíveis soluções”, 04/10/2008). Sim, há intérpretes com memórias prodigiosas e mencionei diversos pianistas superdotados nesse quesito: José Vianna da Motta, Jean Doyen, Claudio Arrau, Wilhelm Backhaus, Arthur Rubinstein, Friederich Gulda e tantos outros. A leitura à primeira vista se aprende desde os primórdios. Ela é essencial para o instrumentista. Já a retenção do repertório na memória tem graduações, pois há aqueles que memorizam normalmente e, em menor número, alguns superdotados que retêm na memória quantidade incalculável de composições, podendo ser acionadas quando necessário, sem equívocos. O pianista português Vianna da Motta (1868-1948), em uma das nove turnês pela América do Sul, interpretou mais de 100 obras memorizadas. Retinha as 32 Sonatas de Beethoven, o Cravo bem Temperado de J.S. Bach e parte considerável do repertório romântico. Eu estudava em Paris nas fronteiras das décadas 1950-60 e falava-se que Arthur Rubinstein (1887-1982) apresentara sequencialmente, em Paris, 17 recitais diferentes em pouco mais de três semanas, todos memorizados. A memória de Claudio Arrau abrangia basicamente as integrais de J.S.Bach, Mozart, Beethoven, Schumann…

O tema menino prodígio igualmente pontuou questionamentos. Os primórdios do aprendizado são tão diversos. Há aqueles, geralmente filhos de músicos, que o iniciam quase no berço e, se dons existirem – a genética pode ser determinante -, ainda na idade edipiana já se apresentam em público para gáudio de plateias embevecidas. Se qualidades inalienáveis existirem, esses futuros intérpretes poderão ser impelidos, mercê de suas aptidões voltadas à exteriorização ou não, a desenvolver suas atividades em torno de repertórios determinados.

Quantos dos pianistas elencados não foram precoces, mas nem todos. Se alguns já se apresentam ainda no primeiro lustro, outros mais farão sua estreia após o segundo. Estou a me lembrar de que minha mestra, a legendária pianista francesa Marguerite Long, dizia que o ideal é a criança ter a iniciação antes dos 10 anos, pois após a estrutura muscular já estaria menos maleável. Por vezes, a precocidade excessiva pode trazer traumas, como o que acometeu a pianista norte-americana de origem polonesa Ruth Slenczynska (1925- ), que em seus programas de concerto inseria ter sido forçada a estudar exaustivamente desde a tenra idade (vide blog: “A criança prodígio frente à interpretação musical e à vida”, 14/06/2014).

Se pontuo alguns tópicos relacionados aos questionamentos recebidos, impossível esgotá-los. Terei prazer em abordá-los proximamente. Faço minhas as palavras do ilustre pianista panamenho Jaime Ingram (1928- ): “no me veo haciendo frente a la vida sin la compañía del piano y la música”.

Writing about great pianists of the past over the years, I took note of many questions received from readers. Today I comment on some of such questions.

Pianista Ucraniano entre os maiores

O virtuose dotado de musicalidade
compreende mais profundamente a música do que o músico puro,
que não a vê se não como uma abstração matemática.
Gisèle Brelet
(“L’intérpretation créatrice”, 1951)

Certamente Shura Cherkassky permanecerá na história do piano como um dos mais completos intérpretes. Frequentou o repertório do barroco à contemporaneidade e legou uma arte voltada à tradição, mas plena de uma abordagem pessoal.

Nascido em Odessa, anos após se desloca com a família para os Estados Unidos, fugindo da Revolução Russa. Após aprendizado  com a mãe, Cherkassky estudará no Curtis Institute of Music com Josef Hofmann (sobre Hofmann, vide blog anterior). O mestre foi fundamental em sua formação e a ele estaria ligado até 1935. Uma de suas recomendações foi a do estudo diário de quatro horas, que Cherkassky seguiria à risca durante a existência. Facilidade e obstinação edificaram o pianista que teve carreira até o final de sua existência, atuando na América do Norte, Europa, Rússia, Extremo Oriente, Austrália e Nova Zelândia.

Clique para ouvir, de Josef Hofmann, Caleidoscópio, na interpretação de Shura Cherkassky:

https://www.youtube.com/watch?v=2AdDU6yNcCw

Apesar do respeito à tradição, Cherkassky nem sempre interpretava uma determinada obra seguindo seus próprios postulados anteriores e, apesar de ter tocado com as mais importantes orquestras do mundo, por vezes entre ensaio e apresentação pública poderia modificar sua execução. Se as obras românticas têm na interpretação de Cherkassky um tratamento especial quanto ao rubato, quando interpreta seus contemporâneos — Berg, Stravinsky, Stockhausen —, suas execuções se revestem de uma percepção invejável, sem quaisquer concessões. Harold Schonberg define bem determinadas características de Cherkassky: “Tem o som de ouro, a cor, a técnica infalível, a personalidade e, em seu melhor momento, o fluir e refluir da marca romântica. Suas interpretações são sempre idiossincráticas e interessantes” (“The Great Pianists”,1987).

Clique para ouvir, de Vladimir Rebikov (1866-1920), Valsa, na interpretação de Shura Cherkassky:

https://www.youtube.com/watch?v=HtVtqSJdxLc

Neste espaço apresentei ao longo do tempo uma centena de ilustres pianistas, que se consagraram em seus períodos devido as qualidades múltiplas, pessoais, intransferíveis. Entre os tantos intérpretes que desfilaram, Shura Cherkassky seria um daqueles que permaneceram também pela transcendência absoluta no quesito virtuosismo. Se György Cziffra foi um virtuose telúrico, que até o presente causa admiração e perplexidade (vide blogs: György Cziffra, 10-17-24,/04/2021), se Vladimir Horowitz (vide blog: Vladimir Horowitz, 22/02/2020) ficaria lembrado pelo virtuosismo, pujança sonora e graduações infindas das sonoridades, Cherkassky se insere nesse seleto grupo. Suas interpretações revelam o respeito pleno para com a partitura e, quando a serviço da técnica transcendente, o também virtuose absoluto.

Clique para ouvir, de Chopin, a Tarantela em Lá bemol Maior, op. 43, na interpretação de Shura Cherkassky:

https://www.youtube.com/watch?v=oAjsC9W_phM

Ao longo desses anos tenho ressaltado  a diferença entre notáveis pianistas de antanho e aqueles das gerações mais recentes. Vendo-se vídeos de Cherkassky, as maiores dificuldades pianísticas são transpostas sem quaisquer “recursos” corporais e teatralidade.  Tem-se a impressão nítida de que toda a mensagem está a ser transmitida, apenas ela, na sua integridade. O Eu do músico é passado ao público através do conteúdo que está a ser transmitido e interpretado após debruçamento pormenorizado sobre a composição, pois ela é essencial e duradoura.

Essas considerações fazem-me pensar no aperfeiçoamento tecnológico relacionado à apresentação pública gravada e filmada. Se verificarmos o vídeo abaixo, a câmara situa-se ao alto e por trás do pianista. A gravação é de um recital em 1993 no Carnegie Hall de Nova York. Cherkassky tinha 84 anos. A aclamação aos encores é total. A câmara capta bem as mãos de Cherkassky. Nenhum gesto para impactar o público, nenhum trejeito facial após cada execução. Tudo está lá e a mensagem, mormente no caso da hipertranscendente Islamey, de Balakirev, é assimilada integralmente, assim como nas outras criações interpretadas.

Clique para ouvir, de Balakirev, Islamey e outros peças mais de Anton Rubinstein, Rachmaninov e Morton Gould, apresentadas como encores em gravação ao vivo (1993), na interpretação magistral de Shura Cherkassky:

https://www.youtube.com/watch?v=_oGB8CC4mJE

Estou convencido de que a parafernália tecnológica utilizada para assimilar o gestual e a indumentária por vezes extravagante do intérprete tem sido impactante para as novas gerações, causando-lhes maravilhamento. Essa assertiva pode ter consequências futuras para novéis intérpretes, que, ao terem as “câmaras” como verdade basilar, transferem para elas parte da concentração.  Já abordei esse fato em muitos posts anteriores. O visual a preponderar. A própria apreensão do conteúdo de uma obra, por mais virtuoses que sejam os novos intérpretes, mormente os oriundos do Extremo Oriente ou do Leste Europeu, sofre a influência dessas novas engenhocas. Entrevistados, alguns desses intérpretes comentam suas carreiras, suas viagens e recepções, mas pouco têm a dizer sobre as obras que executarão e, quando o fazem, há o lugar comum, aprendido de maneira superficial através da oralidade ou de revistas ou livros.

Ouvir Shura Cherkassky é gratificante, pois impera a competência plena e a naturalidade da transmissão, fatores fulcrais para a real compreensão de uma obra.

The Ukrainian-born pianist Shura Cherkassky (1909-1995) was one of the greatest of the 20th century, though somewhat forgotten today. Listening to him is always a pleasure, because he respects tradition without losing spontaneity. An absolute virtuoso, making beautiful music pour from under his fingers.