Pianista da maior abrangência na primeira metade do século XX

O exercício da música é de fato de uma complexidade maior do que o exercício das outras artes
pelo fato de que a elaboração da obra necessita da divisão do trabalho.
André Souris
(“Conditions de la Musique – démarches spirituelles du musicien”. 1976)

Artur Schnabel, pertencente à geração atuante desde os primórdios do século XX, foi um dos pianistas que mais influenciaram os intérpretes pósteros. Suas performances e gravações das Sonatas de Beethoven e de Schubert permanecem como modelos, apesar de registros fonográficos hoje ultrapassados. A edição comentada da integral das Sonatas de Beethoven é manancial para consultas sob tantos aspectos interpretativos.

De família judaica, Artur Schnabel nasceu em cidade pertencente ao Império Austro-Húngaro (presentemente a fazer parte da Polônia). Ainda bem miúdo seus pais se fixam em Viena e, tendo iniciado bem cedo seus estudos de piano, dado seu talento, na faixa dos dez anos esteve sob a orientação do notável professor Theodor Leschetizky (1830-1915), entre 1891-1897, pois o mestre já sentia dons que ultrapassavam os de um pianista, definindo-o como músico. Foi Leschetizky que o influenciou a um caminho que perduraria durante a existência, o culto às Sonatas de Beethoven e Schubert, tendo sido Schnabel o primeiro pianista a gravar as 32 Sonatas do compositor alemão. Schnabel estudaria composição com Mandyczewski, assistente de Johannes Brahms. Legaria uma série de composições abordando variados gêneros.

Teve a possibilidade de se fixar na Alemanha nazista, pois Hitler admirava suas interpretações e concederia ao pianista o status de ariano. No inventário da discoteca do Führer encontravam-se todas as gravações de Schnabel. Não permanecendo em Berlim, vive certo tempo na Suíça e na Inglaterra e de lá atravessaria o oceano para morar nos Estados Unidos. Em 1944 recebe a nacionalidade americana. Em 1942, sua mãe, Ernestine Taube, que permaneceu na Áustria depois do Anschluss, seria deportada e morreria logo após no sinistro campo de concentração de Theresienstadt, que periodicamente abrigava músicos judeus que se apresentavam e que sucessivamente desapareciam. O infausto acontecimento fez com que Schnabel jamais retornasse à Áustria e à Alemanha após a Segunda Grande Guerra.

Com uma carreira sedimentada desde o antes e o depois da Primeira Grande Guerra, Artur Schnabel percorreria a Europa e os Estados Unidos não apenas em recitais solo, mas como camerista e sob a regência dos nomes maiores da regência na Europa e nos Estados Unidos. Destacar-se-ia também como respeitado pedagogo.

Sob outra égide, Artur Schnabel, diferentemente de outros notáveis pianistas já abordados em meus blogs, configura-se não como um intérprete voltado à altíssima virtuosidade, como György Cziffra e Vladimir Horowitz entre os mais “acrobáticos”, mas sim pelas ideias transmitidas em suas execuções. Seria possível entender que a “prática” da alta virtuosidade encontrada em tantas obras de Paganini (violino) e nos românticos Chopin, Alkan, Liszt e Schumann, aceita e inserida nas partituras dos posteriores russos Tchaikovsky, Balakirev, Scriabine, Rachmaninov e Saint-Saëns na França, tenha sido determinante para a exibição pública não só do conteúdo musical, mas da performance de impacto audiovisual. Teria sido uma possível “idiossincrasia” de Schnabel quanto ao exibicionismo que o norteou por caminhos mais introspectivos. Virtuosidade a tinha, como demonstra seu repertório de período anterior. Dir-se-ia que o passar dos anos intensificou sua subjetividade, antepondo-a ao exibicionismo do intérprete.  Todavia, até a juventude da idade madura Schnabel se dedicou a um amplo repertório, a privilegiar Weber, Chopin, Liszt, Schumann, Brahms.

Clique para ouvir, de Carl Maria von Weber, Convite à Dança, na interpretação de Artur Schnabel:

https://www.youtube.com/watch?v=ARUkVYHWPMI

Futuramente concentrar-se-ia preferencialmente em dois compositores essenciais, Beethoven e Schubert, mas também  menos intensamente em Mozart e J.S.Bach, embora considerasse que a obra deste para teclado não é apropriada para grandes salas. Sob este aspecto, há proximidade de Schnabel com Alfred Cortot, apesar de personalidades absolutamente distintas frente às obras executadas. Contudo, ambos penetraram no âmago das partituras dos compositores eleitos: Cortot nas edições das obras de Chopin, Liszt e Schumann; Schnabel na edição das Sonatas de Beethoven, ainda que, décadas após a publicação, entendesse que poderia alterar certas posições após debruçamento sistemático. Essas edições comentadas e orientadas para fins interpretativos são consultadas até o presente com admiração.

Clique para ouvir, de Beethoven, a Sonata op. 31 nº 3 em Mi bemol Maior, na interpretação de Artur Schnabel:

https://www.youtube.com/watch?v=ryGsfqUIDtI&list=RDryGsfqUIDtI&start_radio=1&rv=ryGsfqUIDtI&t=35

Artur Schnabel é um desses pianistas do passado que pode ser considerado lendário. Estou a me lembrar de que, nas décadas de 1950–60, a menção às Sonatas de Beethoven era motivo para imediata ligação ao pianista.

Os conceitos de Schnabel sobre música têm interesse especial. Em “My life and music” (New York, Dover; Colin Smythe, England; 1988) o pianista expõe sua visão essencial sobre música, assim como a respeito de sua vida pessoal. Numa secção do livro, Schnabel responde a questionamentos de estudantes da Universidade de Chicago em 1945 e têm interesse algumas de suas observações:

Quanto ao repertório, considera: “De qualquer modo, nenhum pianista pode tocar todo o repertório pianístico. O que o faz decidir, o que o obriga a ir numa direção em vez de outra, é algo misterioso. O segredo desta atração-direcionamento é um dos mais fascinantes. Ao apaixonarmo-nos, todos nós experimentamos esse mistério”.

Clique para ouvir, de Franz Schubert, Improviso op. 90 nº 3 em Sol bemol Maior, na interpretação de Artur Schnabel:

https://www.youtube.com/watch?v=B4MUUVK8P2U

Sobre a mesmice repertorial, Schnabel tem abordagem precisa e exemplifica: “Porque deveriam todos os pianistas tocar o mesmo tipo de repertório? É bom ter outras opções. Por exemplo, nunca se ouve a charmosa e bem estruturada Polonaise de Beethoven. Nem sequer se sabe que ela existe. Muitos pianistas profissionais nunca viram essa peça, mas tocam a marcha O amor por três laranjas, de Sergei Prokofiev, uma peça que penso não poder competir com as Polonaise de Beethoven nem sequer em efeito”.

Clique para ouvir, de Beethoven, a Polonaise em Dó Maior, op. 89, na interpretação de Artur Schnabel:

https://www.youtube.com/watch?v=wI3eQTMnGag

A respeito do talento, Schnabel observa: “Pressupõe-se o talento. Ele pode ser realçado, mas não pode ser fornecido por um professor. Este nem pode garantir o sucesso na carreira aos seus alunos. Ele não é nenhum mago, o aluno é mais importante do que ele. O que pode um professor fazer? No melhor dos casos, abrir uma porta, mas o aluno tem de passar por ela”.

Sobre o denominado medo do palco, recomenda: “Se houver o medo de ficar nervoso ao tocar em público, deve-se procurar um ouvinte. Não importa muito quem possa ser. Se tiver tempo, pode-se pedir ao porteiro que venha ouvi-lo. Tenho a certeza de que agora é mais difícil do que antes encontrar pessoas que ouçam. Por que deveriam, quando se têm o rádio? O mesmo não acontecia décadas atrás”.

Para um grupo de jovens Schnabel tece considerações sobre o gostar ou não de uma música: “Ninguém pode convencê-lo de que uma peça de música é bela se para si não o for. Eu nem sequer tentaria convencê-lo. Não o posso provar. A causa e o efeito estão ambos dentro de si”.

A passagem das décadas dimensiona ainda mais a importância histórica de Artur Schnabel. Ouvi-lo em preciosas gravações é apreender a plena tradição voltada unicamente ao conteúdo musical, sem quaisquer outros “adereços” que possibilitem a distração da essência essencial. Um grande mestre a não ser esquecido.

Artur Schnabel is revered as a piano legend of the 20th century. With an immense repertoire, he was the first to record Beethoven’s 32 Sonatas. Although he performed in public the repertoire common to the vast majority of pianists, in his last decades he would focus on Beethoven, Schubert and also Mozart.

Estudo a partir dos “Quadros de uma Exposição” de Modeste Moussorgsky

… os sons e as ideias estão suspensos no ar, eu os absorvo,
eu me besunto, chegando apenas a rabiscar sobre o papel.
Modeste Moussorgsky
(carta ao amigo Vladimir Stassov durante a criação dos
“Quadros de uma Exposição” – 12 ou 18/06/1874)

Após a apresentação de “Résonances”, de Daniel Gistelinck (blog de 29/09), outra composição de um renomado compositor belga, Lucien Posman (1952- ), é tema do presente post. “Le conte de l’Étude Modeste” integra o CD “The New Belgian Études” (De Rode Pomp, 2004).

Lucien Posman estudou teoria e composição musical nos Conservatórios Reais de Gent e Antuérpia, tendo como orientadores, na área da criação musical, Roland Coryn e Nini Bulters.  Como compositor, Lucien Posman escreveu produção relevante, sinfonia, ópera, concertos, música de câmara diversificada e uma concentração maior na música vocal, mormente aquelas consagradas à poesia de William Blake (1757-1827). Lucien Posman tem carreira consolidada como professor honorário de composição e fuga no Conservatório Real do Colégio Universitário de Gent. É um dos fundadores de várias entidades ligadas à música na Bélgica flamenga, entre elas a associação de compositores flamengos, da qual se tornou presidente honorário, e a De Rode Pomp, importante plataforma artístico-musical gerida por seu irmão André Posman. Como compositor, tem vínculos com o pós-modernismo.

Quando do projeto de um CD unicamente com estudos para piano compostos por autores belgas, convidei Lucian Posman. Como sempre procedia na Bélgica, antes de minhas gravações na Capela Saint-Hilarius, em Mullem, dava recital na sala de concertos da De Rode Pomp, em Gent. O convite veio após ter tocado “La Boîte à Joujoux” de Debussy e os “Quadros de uma exposição” de Moussorgsky. Meses após, Lucien me envia “Le conte de l’Étude Modeste”, uma paródia ou pastiche da extraordinária criação do compositor russo. A obra é programática e o narrador é o próprio Estudo Modeste. O prenome de Moussorgsky era idêntico ao do pai de Lucien, daí a evocação. Se o Estudo é o narrador, Bydlo (o carro de boi polonês na criação de Moussorgsky) é o motorista. Lucien, a meu pedido, enviou a história do “Étude Modeste”. Perpassa os “quadros”, metamorfoseando-os, e emprega temas sugestivos de ampla divulgação, seguindo o roteiro dos quadros de Moussorgsky. Sabedor das intenções de Lucien quanto à “função” de Bydlo, o motorista, encontrei em uma feira popular dois pequenos caminhões em madeira e fiz a comunhão do carro de boi com os “veículos” encontrados, nomeando-os Bydlo. Em recente mensagem, Lucien me diz que o conserva, após quase vinte anos, enviando-me a foto. O meu Bydlo permanece sobre o Pleyel de estudo diário.

Mesmo para aqueles não versados na escrita musical é possível seguir o “Étude Modeste” através das frases dessa criativa composição programática. Lucien enviou-me o “conto” de sua composição para facilitar a percepção prévia. Para esse texto jocoso, mas que pode não fazer sentido para o leitor que desconhece as cenas dos “Quadros de uma Exposição”, numero cada andança do Estudo nessa visitação à criação de Moussorgsky, seguindo o roteiro da monumental obra do compositor russo, sendo que ao final de “Le conte…” proponho a escuta da minha interpretação dos “Quadros de uma Exposição” de Moussorgsky para o CD da De Rode Pomp lançado em 2004.

Escreve Lucien Posman:

“O conto do Étude Modeste é a história de Modeste, um estudo de piano. Nesses cem anos, ele está ao lado de seu célebre companheiro, Modeste Moussorgsky, autor dos ‘Quadros de uma Exposição’. Um dia ele prefere partir. Ainda próximo de sua casa de origem percebe um Gnomo (1) assustador, que o observa de maneira bárbara. O Gnomo persegue o Estudo, que se refugia num Velho Castelo (2). O Estudo se encanta com as lamentações dos blues de Duke Bluebeard, idoso e adoentado. Ao abrir as janelas, seus ouvidos são acariciados pela algazarra das crianças (3) que saem do interior do Centro Pompidou. O Estudo decide pegar um táxi. O motorista se apresenta, chama-se Bydlo (4). É um negro alto, que conhece uma canção da África do Sul - ‘adiante, carro de boi, adiante’ (‘Ry maar aan, ossewa, ry maar aan’) - e que ele cantarola baixinho sem parar. Para passar o tempo, o Estudo combina a melodia do motorista com a melodia de Bydlo de Moussorgsky, seu vizinho nos arquivos da biblioteca; essa atitude parece funcionar maravilhosamente, com alguns ajustes rítmicos. O motorista mostra ao Estudo Modeste as atrações durante o percurso, entre elas o ballet belga da galinha com dioxina, o que provoca uma verdadeira balbúrdia (5). Aos sons do hino nacional belga, pincelada em van Beethoven e suspeitas de um ‘Dies Irae’, um verdadeiro dia das bruxas se apresenta. Entretanto, Modeste, o Estudo, não está a favor dessas cenas e pede para Bydlo ligar o Rádio. Uma discussão está em debate entre o deputado mundialista Goldenberg e Schmuyle (6), um cansado maoísta sessentão. Sob os tons orientalizados de ‘Washington Post’ (marcha do célebre compositor norte-americano John Philip Sousa), Goldenberg defende sua visão do futuro sistema político; Schmuyle intervém claudicante com os tons da ‘Internationale’ (compassos 136, etc…), a célebre canção de Pierre De Geyter, natural de Gent (Bélgica). Todavia, essa cena parece uma discussão sem esperanças e Modeste anseia por outros divertimentos. Isso começa a enervar Bydlo e, numa disparada vertiginosa, leva o Estudo ao velho mercado (7). Parece-lhe, contudo, não ser o local adequado para aquele dia e velozmente segue a dirigir. O Estudo Modeste insiste em vão para que se acalme. Finalmente eles se encontram na catacumba (8), recentemente restaurada. Não obstante, ela parece mais um sistema de esgoto não cuidado, evocando lembranças do ‘Terceiro Homem’, de Orson Welles (9). Modeste sente frio e Bydlo propõe levá-lo a visitar Baba Yaga (10). O Estudo rejeita com ênfase e solenemente, sob a ária de ‘It’s a long way to Tipperary’! Já em casa (11), o Estudo Modesto se aconchega novamente nos ‘Quadros de uma Exposição’, de seu homônimo Modeste Moussorgsky, seu lugar preferido”.

Notas: Após o Passeio (Promenade - tema que será apresentado em várias roupagens no decorrer da obra -, Moussorgsky introduz os “quadros”:

1, Gnomus
2, O Velho Castelo
3, Tuilleries
4, Bydlo
5, Ballet dos pintinhos em suas cascas (Lucien relembra o drama da administração da dioxina às rações dos galináceos, que levou ao abate de milhões de aves do país em 1999).
6, Samuel Goldenberg e Schmuyle (judeus rico e pobre, respectivamente)
7, O mercado de Limoges
8, Catacumba
9, Com Mortuis in Lingua Morta
10, Cabana sobre as patas de galinha (Baba Yaga)
11, a Grande Porta de Kiev

Clique para ouvir, de Lucien Posman, “Le conte de l’Étude Modeste”, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=nkuj97dvXYA

Faz-se necessária a divulgação dessas criações belgas. A Bélgica tem alguns dos mais relevantes compositores da Europa e penso paulatinamente, com o consenso dos autores, inserir no Youtube minhas gravações das obras contidas no CD “New Belgian Etudes”, lançado pela De Rode Pomp em 2004.

“The tale of Etude Modeste” is a pastiche of Modeste Mussorgsky’s “Pictures at an Exhibition”. Lucian Posman, one of the most important Belgian composers today, accepted the invitation to write a work for my piano etude project, which would be part of the CD “New Belgian Etudes” (De Rode Pomp, Ghent, 2004). The inspiration came after my performance in Ghent of “Pictures at an Exhibition”. Modeste was the first name of the Russian composer and also the name of Lucien’s father. In “The tale…”, Etude Modeste is the narrator and Bydlo, one of Mussorgsky’s paintings, the cab driver.

 

 

Um pianista impecável sob todos os aspectos

O século XX não viu um pianista de maior probidade e de ideais mais puros.
Harold Schonberg
(“The great pianists”, 1987)

Descendente de família de judeus russos, Rudolf Serkin nasceu na Boêmia, então pertencente ao Império Austro-Húngaro, atual República Checa. Menino prodígio, estudou com Richard Robert. Aos doze anos tocou com a Orquestra Filarmônica de Viena. Mais tarde teria aulas de composição com Arnold Schoenberg. Uma passagem definitiva dar-se-ia nos primórdios dos anos 1930. Em Berlin, Rudolf Serkin se apresentaria como camerista junto aos irmãos Busch, dos quais Adolf Busch (1891-1952) foi um notável violinista. Sendo arianos num período da ascensão nazista, os irmãos Busch, em encontro com Goebbels, deste recebem verdadeiro anátema, a proibição de tocar com Rudolf Serkin, judeu. Os Buschs e Serkin se deslocam para a Suíça, lá vivem temporariamente e se estabelecem futuramente nos Estados Unidos. Rudolf Serkin se casaria em 1935 com a filha de Adolf Busch, Irene, e teriam sete filhos.

No novo país lecionaria no Curtis Institute of Music de Filadélfia, tendo sido diretor da instituição de ensino de 1968 a 1976. Formou gerações. Frise-se que, apesar de possuidor de grande virtuosidade, buscava transmitir preferencialmente conteúdos musicais aos seus alunos, a contrastar com a corrente vigente no país. O fato de ter substituído a foto de Franz Liszt (1811-1886) em sua sala de aula pela do insigne pianista Joseph Hofmann (1876-1957), que anteriormente estivera ligado à instituição, evidencia sua inclinação antiexageros exibicionistas. Seu sucessor, Jorge Bolet (1914-1990), ao estranhar a ausência da foto que conhecera décadas atrás, restituiu-a ao local exato.

Rudolf Serkin teria uma carreira extraordinária por tantos países, solando com as melhores orquestras e legando gravações que perduram.

Clique para ouvir, de Brahms, quatro peças, op. 119, na interpretação de Rudolf Serkin:

https://www.youtube.com/watch?v=btVHc6BSxMw

Um episódio burlesco se deu após recital Bach de Adolf Busch com o então jovem pianista Rudolf Serkin em 1921. Ao final, com os aplausos insistentes, Adolf sugeriu a Rudolf tocar um bis. “Mas qual peça?”, perguntou. O violinista, em tom de brincadeira, disse-lhe “As Variações Goldberg”, obra capital de J.S.Bach e de longa duração. Ao final, restavam apenas quatro pessoas: Adolf Busch, o ilustre pianista Arthur Schnabel, Alfred Einstein (musicólogo e crítico musical) e o autor da façanha.

A fazer parte dos grandes luminares do piano do século XX, Rudolf Serkin não se enquadra entre aqueles mais voltados a arroubos e à presença constante na mídia. Uma de suas qualidades interpretativas basilares residia no absoluto respeito às ideias dos compositores eleitos e na tradução sonora sem artifícios. Esse rigor não compromete a fluência que Serkin transmite nos mais variados gêneros interpretados. Era imenso seu repertório, tendo perpassado, no período em que estudou com Schoenberg, obras de compositores coetâneos e apresentado com orquestra obras referenciais, como os Concertos em fá menor de Max Reger, em ré menor de MacDowell, de Bartók e Prokofiev e a Burlesca, de Richard Strauss. Com o passar dos anos se restringiria ao repertório austro-germânico da primeira metade do  século XIX, Beehoven, Schubert, Schumann, não se descartando o seu eleito mais remoto, J.S.Bach. Lendárias suas interpretações de programas em que privilegiava, nesse período derradeiro da carreira, as últimas Sonatas de Schubert e de Beethoven. Considerado um dos maiores cultores desses luminares, suas gravações testemunham  a singular competência. O crítico Harold Schonberg observa em “The great pianists”: “Serkin passou sua vida a buscar a verdade tal como ele a entende, expressando sua visão do teclado em termos austeros que, no entanto, conseguem utilizar uma linha cantante vinda diretamente do século XIX”.

Desde a juventude Rudolf Serkin praticou música de câmara, gosto acentuado durante as colaborações musicais com Adolf Busch e seus familiares. Notório o duo com o grande violoncelista Mstilav Rostropovich.

Clique para ouvir, de Johannes Brahms, o Allegro non tropo da Sonata nº 1 em mi menor, op. 38, para violoncelo e piano na interpretação de Mstilav Rostropovitch e Rudolf Serkin:

https://www.youtube.com/watch?v=fswUjjn6LvQ

O notável pianista Murray Perahia tece algumas impressões valiosas sobre Rudolf Serkin, sem jamais ter estudado com ele, mas sim interpretado obras para piano a quatro mãos e dois pianos de Mozart. “Ele é uma personalidade, fiel respeitador das intenções de um compositor. É intenso e ao mesmo tempo exigente. Aprendi muito com ele, nada específico, mas sim uma atitude em relação à música, como respeito absoluto e dedicação até os extremos, acima de quaisquer limitações físicas. Não tendo sido dotado com ‘mãos fáceis pianísticas’, teve de trabalhar arduamente sua técnica, e isso lhe causou forte impressão. Decorre que buscou transmitir aos alunos todo esse esforço para almejar a interpretação a mais correta”.

Clique para ouvir, de Schumann, Estudos Sinfônicos, na interpretação de Rudolf Serkin:

https://www.youtube.com/watch?v=JNnVYSksSNY

Morando em Vermont junto à família, teve entre seus sete filhos alguns que se dedicaram à música, sendo que Peter Serkin (1947) tem carreira destacada como pianista e professor.

Clique para ouvir, de Schubert, Marcha em Sol Maior, op. 52 nº 2, na interpretação a quatro mãos de Rudolt e seu filho Peter Serkin:

https://www.youtube.com/watch?v=wlD9haP7g0g

Rudolf Serkin e tantos outros extraordinários pianistas do século XX têm frequentado este espaço. Friso sempre que se faz rigorosamente necessário divulgá-los. A volúpia mediática tem dado guarida de maneira acelerada ao espetáculo, beirando o desrespeito para com os grandes mestres da composição do passado. Pianistas dotados de talento exuberante que se apresentam no Hemisfério Norte, oriundos mormente do leste europeu e do Extremo Oriente, são apresentados como intérpretes, mas acompanhados de uma parafernália gestual e de indumentária. A música é transmitida, mas seria a essência essencial da apresentação? Tão mais o extramusical ocorre, desde que a execução se dê em nível elevado, mais desperta essa geração o entusiasmo de aficionados. Há um capitis diminutio da condição essencial da música, contaminada doravante pelo império dos holofotes. Esses virtuoses de fato, extremamente ventilados, incorporam-se ao espetáculo mediático e pouco a pouco estão a transformar o ritual de um concerto numa “festa” para os olhos. Triste realidade. Nada a fazer…

 

Rudolf Serkin is one of the 20th century’s leading names in piano performance. Respected by his peers, he excelled in preaching tradition. His interpretations reveal a unique authenticity.