As vicissitudes de um soldado pianista

O pior sofrimento está na solidão que o acompanha.
György Cziffra

Se os tempos passados na Academia Franz Liszt foram decisivos para o amadurecimento pianístico de György Cziffra, a IIª Grande Guerra veio interromper o percurso do intérprete. Recrutado para o serviço militar, tem de preparar-se em poucas semanas para ir ao front combater o exército da União Soviética, pois o Reino da Hungria integrava o Eixo Berlin – Roma – Tóquio. Cziffra narra em “Des canons et des fleurs” (Paris, Robert Laffont, 1977) sua epopeia. O título da autobiografia teria origem na frase atribuída a Robert Schumann após ouvir Liszt, “Canhões sob um campo de flores”. Daquela infância fragilizada física e socialmente aos estudos na Academia Franz Liszt, Cziffra viu-se “jogado” em ambiente rigorosamente estranho à sua existência até então.

Escrito tardiamente, seria possível que narrativas pungentes tenham sofrido influência do ambiente que o cercava. Comentar algumas das vicissitudes vividas por György Cziffra se faz necessário, pois, ao que se conhece, nenhum pianista viveu sucessão de agruras tão violentas. A título de correlação mencionaria excelentes pianistas que estiveram em campos de concentração ou de “reeducação”: Lili Kraus, igualmente húngara (1903-1986), a pianista chinesa Zhu Xiao-Mei, nascida em 1949 (vide post: “La Rivière et son Secret” (06/11/2009), e o intérprete polonês Wladislaw Spilman (1911-2000), que escreveria Morte de uma cidade, mais tarde reeditada sob o título O Pianista, narrativa de sua história nos guetos de Varsóvia. Roman Polanski, a partir do relato, dirigiria o premiado O Pianista.

A inaptidão para as tarefas da caserna fá-lo não observar determinadas instruções: “A preparação à disciplina militar, que não é senão a arte de disciplinar o civil após domá-lo, pareceu-me uma aberração inexprimível”. Lembrar-se-ia da saudação que era obrigado a realizar para um cabo instrutor não satisfeito com seus erros, “uma espécie de bruto de aspecto pré-histórico: levantar a perna bem alto, descendo-a e batendo três vezes no chão, uma vez a saudá-lo, outra dando meia volta e a terceira vez para caminhar em direção ao objetivo designado”. Essas e outras inobservâncias valeriam sua “prisão” intramuros durante curto período, em que apenas lhe davam 300 gramas de pão e água. As palavras de uma alta patente, que apropriadamente denomina César, mais bruto do que o cabo, a vaticinar o seu quase certo fim no campo de batalha, deixam-no ainda mais deprimido. Tão logo reintegrado aos que deveriam partir provoca uma queda diante de todos para evitar o front, sabedor de que, “desmascarado às vésperas da partida, estaria definitivamente curado pelas palavras reconfortantes que o padre do tribunal militar lhe diria antes de sua execução sumária”.

Logo seria capturado por partisans russos, que o consideraram prisioneiro de guerra e desertor, pois estava sem armas. Passaria período sombrio em uma mina insalubre com muitos outros infelizes. Ludibriando um dos guardas consegue fugir e vagueia por algum tempo em alguma parte do território ucraniano.

Cenas pungentes são narradas por Cziffra que, durante a fuga, entra em uma igreja, descrevendo com pormenores a sua construção. Feridos de guerra húngaros e alemães se amontoavam, muitos mutilados. Ao dizer que era pianista a um dos médicos, este lhe pede para tocar órgão, a fim de amenizar sofrimentos. Realiza várias improvisações, inclusive do hino húngaro, mas, ao ouvir tiros de canhão ao longe, sorrateiramente foge a correr e refugia-se numa floresta próxima. De lá assiste a um poderoso tiro de canhão lançado pelo exército soviético, que destrói a igreja que a seguir consome-se em chamas.

Clique para ouvir, na interpretação de György Cziffra, de François Couperin, La Bandoline:

https://www.youtube.com/watch?v=GKq4KGpt5Ho

Errando pela floresta, sem rumo e desorientado, deixa-se recapturar pelos partisans e retorna desesperançado à mina por período que não sabe precisar, pois “os relógios de todos foram confiscados desde a chegada e o conceito tangível do tempo passou a não mais existir para nós”. Posteriormente emerge dos subterrâneos com os outros condenados, a fim de longa caminhada a pé durante mais de uma semana, levados por soldados soviéticos a um campo de concentração. Nesse dramático caminhar recebiam pão preto duro e cebola crua. Comenta: “prevendo a marcha do dia seguinte, ninguém deixava sequer uma migalha da ração, sabendo que um desmaio durante o percurso seria tratado pelos russos como pelos alemães com uma bala na nuca”. Ao sair do bloco que apoiava o Eixo, a Hungria se “aproxima” da União Soviética e, após a estada no campo, György Cziffra é levado com outros húngaros ao seu país natal para se reincorporar ao exército.

Na caserna os tempos melhoram para György. Quando convidado pelo comandante para se apresentar como pianista durante uma festividade, reluta inicialmente, pois há anos não mais tocava, mas aceita. Teve dez dias para se preparar, após anos sem tocar e, nervoso antes de entrar em cena, aceita tomar uma bebida alcoólica fortíssima. Sente-se melhor e bebe mais de uma dose, o que o faz entrar em cena não ziguezagueando, mas confuso. Escreve: “Não me lembro sequer de ter saudado o público e, desde o início, verifiquei que minha execução estava inqualificável’. Lamentaria durante o resto da existência ter tocado pessimamente nessas condições, mas sem aferição de um público não exigente. Seu testemunho não deixa dúvidas da seriedade com que encararia futuramente a consagrada carreira: “A lembrança de minha desventura, qual uma chaga ardente, consumia o meu de profundis e, durante muitos anos após, assombrava meus dias e sobretudo minhas noites. Na verdade, foram necessárias umas boas décadas de atividade profissional irrepreensível para esquecer. Foi o único unguento capaz de cicatrizar e apagar definitivamente o que restou desse estigma interior”.

Após tratativas que resultaram, György Cziffra consegue desligar-se do exército e, reencontrando sua mulher e filho, consegue subsistir tocando em cabarés, casas de chá, sempre improvisando com maestria. Apresentando-se com uma jazz-band americana, músicos e público o saudavam com entusiasmo. O regente do conjunto comparou-o ao extraordinário pianista de jazz Art Tatum.

Clique para ouvir, na interpretação de György Cziffra, uma de suas improvisações:

https://www.youtube.com/watch?v=usi0lkfIhjw

Apesar dos sucessos nessa atividade musical, tentaria sair da Hungria com a mulher e o filho. Presos, foram separados e durante três anos, de 1950 a 1953, Cziffra permanece detido em um campo disciplinar. Não há como não pensar em Sisuphos ao se ler a passagem: “Durante dez horas, dia após dia, subia blocos de sessenta quilos do térreo ao sexto andar de uma universidade em construção. Devido ao esforço, os músculos dos meus punhos ficaram de tal maneira dilatados que era obrigado a colocar apertadas munhequeiras para evitar inflamações”. Teve de usá-las durante décadas. Confessaria que, no futuro, “muitos do métier passaram a usar os braceletes de couro, persuadidos de que se tratava de uma invenção astuciosa de minha parte, destinada a favorecer a alta virtuosidade”.

Cumprida a pena, sem perspectivas, retoma sua atividade como improvisador. Cônscio de sua qualidade técnico-pianística ímpar, teve a chance de ser ouvido nessas noitadas por influente personalidade oficial, que o convida para reunião cujo resultado o deixa esperançoso, pois seria engajado oficialmente para uma série de concertos. Narra com sinceridade as suas “deficiências” estilísticas, que o fazem estudar, até as apresentações meses após, dez horas por dia. Lembrar-se-ia de que, após seus longos anos de infortúnio e apesar de sua técnica excepcional, “tornei-me um anticristo nas improvisações que multiplicavam as dificuldades por dez”. Apesar do sucesso incontestável junto ao público, tomou consciência de que teria árduo trabalho junto ao repertório sacralizado. “Cada vez que voltava ao camarim, sentia-me desmoralizado pela quantidade de imperfeições e a noção da distância que ainda teria de percorrer, persuadido de que um artista digno desse nome não confunde a visão de uma verdade com a demonstração dessa verdade”. A acolhida pública fê-lo  recuperar a fé.

Clique para ouvir, na interpretação de György Cziffra, de Chopin-Liszt , Canto Polonês.

https://www.youtube.com/watch?v=ALvqdKD-1Bc

Ressalte-se sua opinião sobre parte da crítica que, independentemente de suas performances, não esquecia seu passado. Comenta: “Nada tenho contra a crítica, entendendo-a indispensável, mas acredito que ela deveria ser exercida por profissionais, ou seja, por artistas que, em sendo eles próprios produtivos, sabem do que falam”. É ácido em suas observações: “Exceções à parte, esses necróforos de espírito estreito, que formam legião, são reconhecidos facilmente por sinais distintos: orgulho incomensurável e pensamento derisório”.

Em sua última apresentação na Hungria interpretou o dificílimo IIº Concerto para piano e orquestra de Béla Bártok, que teve de preparar em pouquíssimo tempo. Após a apresentação, eram evidentes os sinais a apontar para a Revolução Húngara de 1956, que se estendeu de 26 de Outubro a 10 de Novembro até ser sufocada pelos tanques soviéticos. “As duas mil pessoas presentes ao concerto saíram da sala cantando o hino nacional, arrancando das ruas tudo o que não tivesse as únicas cores nacionais”. Aproveitando a brevíssima abertura das fronteiras, György Cziffra finalmente consegue fugir com mulher e filho. “Alguns dias após nossa fuga dei meu primeiro recital em Viena, apresentação que foi saudada, pelo público e pela crítica, como a performance de um mestre”. (tradução: JEM).

No terceiro post, abordarei o início da grande carreira de György Cziffra a partir de seu porto seguro, a França, assim como seu projeto filantrópico, “restaurar e glorificar a capela real de Saint-Frambourg em Senlis, não apenas para a minha música, mas dedicada a todas as artes”.

 

Clique para ouvir, na interpretação de György Cziffra, de Robert Schumann, Toccata:

https://www.youtube.com/watch?v=ztvEgLjZWYU

I believe there has been no celebrated pianist who has gone through so much adversity as György Cziffra. In this blog I mention, with quotes from Cziffra himself, his various arrests and hardships endured while serving in the Army, both during and after World War II.

 

O virtuosismo nato e a presença do fenômeno

Uma força magnética bizarra
me projetava diariamente em direção ao teclado.
György Cziffra
(rememorando seus primeiros anos)

Foi em 1960 que assisti pela primeira vez a György Cziffra tocar, após tantos comentários de colegas pianistas sobre suas mágicas performances. A cena, o Palais Chaillot, em Paris, absolutamente abarrotado. Cziffra tocou o 1º Concerto Totentanz, de Franz Liszt, e ainda brindou o público, absolutamente subjugado, com a interpretação do Grand Galop Chromatique do compositor.

Poder-se-ia dizer que a tradicional escola pianística francesa, que viu nascer pianistas extraordinários, sentiu-se “contestada” ao se deparar com o fenômeno György Cziffra, assim como, sob outra égide, com outro magnífico intérprete, o russo Sviatoslav Richter. Duas fortes presenças que puseram em causa conceitos válidos, é certo, mas diferentemente direcionados.

Assisti àquele concerto com a excelente pianista francesa Marie-Thérèze Fourneau (1927-2002), assistente de meu professor Jean Doyen (1907- ), e com quem também tive o privilégio de estudar. A impressão foi simplesmente fulminante.

A vida de György Cziffra nas primeiras décadas não encontra similaridade com quaisquer outras trajetórias de pianistas que se consagraram. Os percalços por que passou ao longo das primeiras décadas poderiam ser determinantes para o impasse. Dois fundamentos essenciais explicariam o grande intérprete que foi: ter sido um fenômeno na plena acepção do termo e a vontade de superar todas as adversidades.

Dividirei em três posts a temática György Cziffra: o primeiro relacionado à infância vivida numa favela na periferia de Budapeste e os primórdios de um aprendizado oficial, o segundo a abordar a fase dramática como recruta durante a IIª Grande Guerra e vicissitudes decorrentes, sendo que um terceiro focalizará a consolidação da carreira.

Os primeiros anos de György Cziffra não poderiam jamais sinalizar o pianista que adviria. Criança débil, que passou os primeiros anos praticamente em seu leito, mercê de uma fragilidade por ele relatada em “Des Canons et des Fleurs” (Paris, Robert Laffont, 1977), autobiografia pungente já mencionada em alguns posts bem anteriores. Com os pais e irmãos morava em uma favela nos arredores de Budapeste sem qualquer conforto básico. Relata dias sem alimentos fundamentais e a visita, por vezes, de vizinhos na mesma situação de quase penúria: “um cigarro comunitário fazia a ronda e um odor acre empestava o aposento. Bastava um assunto sobre culinária e um brusco concerto sonoro de estômagos vazios fazia saber que era o momento de mudar de assunto”.  O pai, músico de conjunto popular em cabarés, por vezes desempregado, apresentava temperamento soturno e a mãe, devotada ao filho doentio, teve empregos temporários. Uma de suas irmãs, após conseguir precário trabalho, alugou um piano e praticava técnica dos cinco dedos, escalas e arpejos. O pequeno György, sem sair do leito, via as mãos da irmã deslizarem pelo teclado e, sob as cobertas, imitava o gestual. Tinha apenas quatro anos. Aos cinco, ao se aproximar do teclado, iniciou “autodidaticamente” a sua trajetória. “A Providência me compensava da impossibilidade das brincadeiras com bola”. Logo após suplantava sua irmã nesses exercícios pianísticos e, com a ausência de partituras, aprendeu precocemente a improvisar. Seu pai dava-lhe ensinamentos rudimentares. Todos os cantos que ouvia, transformava-os em improvisação. Esses dons não ficaram despercebidos por um grupo de palhaços que transitava pelas cercanias. Resultou que aos cinco anos o miúdo encantaria frequentadores de um circo e atendia aos apelos do público improvisando temas sugeridos, não sem receber parco cachê. Poucas semanas bastaram para que sua fragilidade física o impedisse de continuar. Restabelece-se, retorna ao circo, mas não resistiria a mais poucos dias nessa atividade.

Clique para ouvir, na interpretação de György Cziffra, de Jean-Philippe Rameau, Le rappel des oiseaux:

https://www.youtube.com/watch?v=4pjR6V3mzGI

É relativamente recente o surgimento, sempre em aceleração, de pianistas oriundos do Extremo- Oriente, mormente da China, munidos de “aparelhamento” técnico-pianístico extraordinário, acompanhado mais tenuamente pelo aprimoramento musical. Todavia, o quesito voltado à interpretação tem surpreendido ultimamente as escolas ocidentais. O fato denota a presença de professores que desenvolveram metodologia não aplicável no Ocidente. Para que haja resultados, haveria a necessidade de alunos altamente disciplinados e concentrados nos objetivos. E o Extremo-Oriente é exemplo nesse mister. A eclosão de uma nova geração dessa vasta região torna, a meu ver, mais acentuadamente György Cziffra um fenômeno absoluto sob o plano técnico-pianístico, independentemente de suas inegáveis qualidades musicais.

Em “Des canons et des fleurs” o pianista tece rico testemunho sobre o estudo na infância. O fato de ter sido um “autodidata” naqueles primeiros anos fá-lo comentar as razões que contrariam o ensino tradicional voltado ao piano. Observa: “Iniciar o estudo sério de piano sem saber ler música, na realidade, não me parece prejudicial para um principiante. Ao contrário, a preocupação (sobretudo no começo) com aspectos práticos do instrumento, preferencialmente aos teóricos, favorece e acelera a eclosão e mais, o desenvolvimento de um jogo de reflexos das mãos sobre o teclado. O poder de concentração crescente do aluno fará com que consagre um máximo de eficácia ao bom desenvolvimento de seus reflexos condicionados, que são, na minha opinião, a base de toda técnica pianística séria. Não entendam mal os meus propósitos. Observando-se as diversas fases de sua evolução, é saudável deixar as mãos caminharem sozinhas, a fim de que seu detentor possa familiarizar-se com as leis particulares que regem a sua mobilidade espontânea. É muito mais oportuno penetrar os arcanos da leitura musical, uma vez que o entendimento tácito de seus dedos com as teclas tenha criado na criança a sensação soberana de terreno conquistado”.

Um certo dia dessa infância plena de infortúnios o pequeno e frágil György foi cercado por outros meninos da Cour des Anges, favela em que morava. Surraram-no e o insultaram, simplesmente por ser ele um mini pianista admirado. Escreveria: “Era o poder emocional de minhas mãos. Acabara de apreender que essa habilidade era capaz de suscitar sentimento de amor…, mas também de ódio”.

Reiteradas vezes escrevi sobre o acaso que pode modificar totalmente a trajetória de um personagem. Seria possível entender que naquelas condições, tantas vezes agudizadas no livro de Cziffra no que concerne à extrema pobreza, dificilmente houvesse transformações em sua existência. O provável seria vê-lo no futuro como um pianista a desenvolver sua atividade como músico de ambiente, à maneira de seu pai. Certo dia em que seus pais e sua irmã saíram para o trabalho, estando só a estudar autodidaticamente nos seus poucos anos e com a porta aberta, entra naquele único espaço comunitário da família um cidadão. Idoso, coxo e quase maltrapilho, o vendedor ambulante que visitava àquela altura a Cour des Anges dirige-se ao menino que, assustado, ouve do ancião vaticínio de um futuro promissor. György o viu como um bicho-papão. A seguir, sua mãe entra no aposento e, sem hesitação, convida o cidadão a se retirar. Estabelece-se um diálogo:

“ – Madame, eu não vim para vender nada… apesar de notar que vocês têm necessidades. Entrei para dizer que seu filho tem um talento excepcional e que seu lugar não seria na marquise de uma feira e sim na Academia de música de Budapeste, fundada por Franz Liszt. Sou um modesto vendedor ambulante, sei o que sei e para provar minha boa intenção, obterei um encontro com o grande diretor da Academia para que ele ouça seu filho.

- Não me diga que o senhor o conhece pessoalmente, retrucou sua mãe, olhando as roupas surradas do ancião.

- Madame, tenho a certeza de que ele não recusará, respondeu o ambulante com um sorriso sardônico. Na próxima semana passarei para confirmar data e hora precisa do encontro…”

Após data marcada e preparativos, roupa de marinheiro comprada pela irmã para seu irmão caçula, ei-lo com sua mãe em direção à Academia: “para se chegar à residência do Diretor, situada bem além do outro lado de Budapeste, caminhamos uma hora e meia até a estação de trem, mais duas horas para atravessar a cidade e ainda mais uma a pé”. Na realidade nada estava marcado, mas, após insistência da mãe, que explicou as penúrias e as inverdades do vendedor ambulante do qual o Diretor não tinha a menor ideia, este aquiesceu e ouviu o garoto. Teria dito ao telefone a um interlocutor que a criança não era uma pedra rara, mas o Koh-i-Noor (um dos diamantes mais valiosos do planeta).

Apesar da tenra idade, György já participaria de masterclasses do professor István Thomán (1862-1940), “curso frequentado pelos ‘grandes’ de vinte e cinco ou mais anos, virtuosos completos que lá vinham para polir ainda mais suas interpretações, a cem léguas das minhas tímidas ousadias. Conservo minha eterna gratidão ao mestre István Thóman. E estou a me lembrar de suas palavras ao ouvir um aluno tocar a Grande Polonaise de Liszt e a IVª Balada de Chopin: ‘Um dia, eu toquei nesta sala essas duas obras diante de Liszt’ “.

István Thóman foi professor de Ernö Donhányi (1877-1960) e de Béla Bartok (1881-1945), pianistas de grande mérito e compositores consagrados. Cziffra estudaria igualmente com Ernö Donhányi.

Clique para ouvir, na interpretação de György Cziffra, de Ernö Dohnanyi, Capriccio, Étude de Concert em fá menor, op. 28:

https://www.youtube.com/watch?v=2EHfTDnZIto&list=RDU8ZU8I2aH8Q&index=3

Essa primeira fase se encerra: “meu mestre, István Thóman, morreu enquanto vozes e barulhos de botas cobriam as vozes do céu. Abertamente as pessoas falavam bem mais sobre a eventualidade de uma guerra ‘como jamais vista’ do que do próximo concerto”.

Retornando àqueles quatro anos de idade em que o miúdo improvisava cantos que ouvia, entre os quais “aprendi de ouvido a Grande Valsa da célebre ópera Faust, de Gounod (somente muito mais tarde, em Paris, a beleza diabólica dessa peça me foi revelada em todo o esplendor, através da magistral transcrição de Liszt, que eu me apressei a gravar em lembrança… daquela lembrança)”.

Clique para ouvir, na interpretação de György Cziffra, de Gounod, na transcrição de Franz Liszt, Valsa, paráfrase da ópera Faust:

https://www.youtube.com/watch?v=F6HLMLryv9U

Para o leitor que quiser seguir pela partitura:

https://www.youtube.com/watch?v=YEyCurpqCoY

Após essas fases, da infância ao aperfeiçoamento, György Cziffra não se pormenoriza nos anos a estudar na Academia e passa diretamente aos caminhos rigorosamente inusitados, o da mobilização para a IIª Grande Guerra e das incríveis vicissitudes que viveu, temas para o próximo post.

 

It was in 1960 that I saw György Cziffra playing for the first time, after so many fellow pianists commented on his magical performances. On the occasion, the auditorium of the Palais Chaillot, in Paris, was absolutely packed. Cziffra played Franz Liszt’s First Concerto and Totentanz for piano and orchestra and also delighted the mesmerized audience with his interpretation of the composer’s Grand Galop Chromatique.

 

A tradição pianística da Hungria

Não vou escalar o Everest,
pois não sou tão grande como a montanha.
György Sebók

Após abordar Andor Földes (1913-1992) no post anterior, precisar a figura do pianista e professor György Sebók faz-se necessário, sendo que nos próximos três posts, György Czifra (1921-1994), o mais divulgado dos mestres  húngaros do teclado no século XX, será tema, mercê também dos pungentes testemunhos que legou em seu livro “Des canons et des fleurs” (Paris, Robert Laffont, 1977).

De 2007 ao presente foram mais de trinta pianistas focalizados neste espaço. Pormenorizar-me em três pianistas relevantes nascidos na Hungria, já falecidos, revela a qualidade exemplar do ensino musical naquele país, assim como uma tradição voltada ao instrumento que tem como figura maior Franz Liszt (1811-1886) e que revelou tantos outros nomes, como Annie Fischer (1914-1995), Tamás Vázáry (1933-), Peter Frankl (1935-), Deszo Ránki (1951-), Zóltan Kocsis (1952-2016), András Schiff (1953-)…

Dos três mencionados primeiramente, György Sebók é o menos divulgado, mesmo tendo sido notável pianista e professor. Estou a me lembrar de que meu saudoso pai guardava, em sua imensa coleção de LPs, alguns gravados por György Sébok, mormente a interpretar Chopin e Liszt.

Apresentou-se nos quatro continentes, sendo solista das maiores orquestras, gravando e lecionando paralelamente. Em 1949 é nomeado professor no Conservatório Béla Bartók em Budapeste. Após a revolta húngara em 1956, estagiou em Paris e, a conselho do violoncelista János Starker (1924-2013), lecionou a convite, na Escola de Música da Universidade de Indiana, continuando a carreira e se apresentando frequentemente com seu amigo Starker. Sebók consideraria sua permanência em Indiana como a mais profícua musicalmente. Entre outros projetos, ele foi organizador do Festival em Ernen, na Suíça.

Suas masterclasses em algumas das mais importantes instituições musicais no mundo foram marcantes e aplicativos exibem diversas delas, oportunidade de se ver a tranquilidade e a competência de um mestre absoluto.

O humanismo de Sebók em sala de aula ficaria evidente, entre tantos exemplos, no aconselhamento a aluno sobre o erro eventual, factível, absolutamente possível no ato de tocar. Contudo, perfeccionista, não admitia leitura errônea de uma partitura, as denominadas notas erradas, motivada pela distração ou negligência.

Em 1985, o pianista narra que, após uma sua apresentação aos 14 anos, cometeu alguns erros, mas que no todo entendeu ter tocado bem. Um seu vizinho observaria essas falhas em conversa com seu avô que, indignado, retrucou que “até o sol tem manchas”. Sebók lembrar-se-ia dessa frase por toda a vida e não deixava de transmitir aos seus alunos essa passagem, a fim de que entendessem melhor como enfrentar o medo do palco. Afirmaria: “A mudança cria espaço dentro de nós para descobrir algo diferente. Se você tem medo, precisa de coragem. Se você não tem medo, não precisa de nada”.

Clique para ouvir, na interpretação de György Sebók, duas Valsas (op. 69 nº 1 e 70 nº 1) e dois Estudos (op. 10 nº 3 e op. 25 nº 2) de Chopin:

https://www.youtube.com/watch?v=GbKi6XDtiH4

Intérprete, entre tantos compositores, de Chopin e Liszt, imprimia às interpretações a sua assinatura. A condução da frase musical é realizada com flexibilidade ímpar, a propiciar a integração plena com a dinâmica, à maneira de um elástico que estendemos e retraímos. Nenhum exagero, tanto na interpretação como no discretíssimo gestual, hoje tão negligenciado pela maioria da nova geração de pianistas, mormente quando frente às câmaras. A sua interpretação do Adagio (BWV 564), Bach-Busoni, traduz à perfeição essa apreensão plena, poder-se-ia dizer, a comunhão absoluta com a mensagem musical:

https://www.youtube.com/watch?v=m_uxtZIafbY

Ao longo dos blogs sobre pianistas tenho salientado a progressiva mudança de atitude frente à partitura. Verifica-se, em parte dos postulantes à possível carreira pianística, a necessidade da busca pela plena virtuosidade como fim, não como meio. As interpretações de György Sébok primam pelo amálgama harmonioso dos elementos técnicos com a interpretação. Suas execuções em nenhum instante evidenciam a necessidade de demonstrar virtuosidade frente ao público. Ela lá está, intacta, perfeita, mas a serviço do essencial, a interpretação. Não seria essa a vontade dos compositores que permaneceram na história? A intensidade emotiva que Sébok revela na interpretação da Mefisto Valsa, de Liszt, não é exemplo marcante?

Clique para ouvir, na interpretação de György Sebók, de Franz Liszt, a Valsa Mefisto:

https://www.youtube.com/watch?v=UcjdA8Y4jAo

Os próximos três blogs serão dedicados a György Cziffra. Independentemente do grande pianista que foi, viveu uma saga sem precedentes em sua trajetória.

It is important to remember György Sebók, one of the greatest  Hungarian pianists of the 20th century. Since Franz Liszt, Hungary has produced a series of remarkable pianists. I’ve already addressed Andor Földes and, in the next three posts, the chosen one will be the phenomenon György Cziffra, completing the trio of Hungarian masters.