Nome referencial e respeito à tradição

A obra de arte não deveria ser pretexto
para o intérprete expor seus estados de alma,
tampouco a extensão de si mesmo, a auto exibição.
É dever sagrado do executante comunicar,
de maneira intacta, o pensamento do compositor
de quem ele não é mais do que intérprete.

Claudio Arrau

Sua biografia está amplamente difundida na internet. Suas execuções podem ser melhor compreendidas conhecendo-se sua evolução desde a infância, o talento excepcional, aprendizado com o grande mestre Martin Krauze (1853-1918) – um dos discípulos favoritos de Franz Liszt -, depressão, psicanálise durante cerca de 50 anos, certezas quanto ao gesto exagerado, memória prodigiosa que, a certa altura, ele coloca em dúvida. Em livro confidencial, Arrau se descortina e cresce ainda mais diante do ouvinte (“Arrau Parle – conversations avec Joseph Horowitz”. France, Gallimard, 1985). Referi-me a esse livro fundamental em blogs bem anteriores.

Martin Krause foi o professor que o guiou durante os anos fundamentais de formação, não apenas na formação técnico-pianística, mas também na seleção repertorial e na qualidade humanística. Arrau comenta: “Apenas duas moradas nos separavam. Chegava em casa do mestre às nove ou dez horas todas as manhãs. Num quarto ao fundo de sua residência havia um piano de armário. Nesse aposento estudava sete ou oito horas diariamente. Ele aparecia uma, duas, três vezes para me ouvir a estudar. À noite, após suas aulas, dava-me a aula particular que durava uma hora ou mais. Minhas refeições se davam em sua casa, quatro ou cinco vezes por dia, pois Krause não me achava forte suficientemente. Decidiu que deveria comer mais. Caminhávamos também, de meia a uma hora, todos os dias”. Talento descomunal e orientação de um dos grandes mestres da arte pianística corroboraram a edificação de Claudio Arrau.

Após a morte de seu professor Martin Krause, que igualmente agendava suas apresentações públicas, Claudio Arrau entrou em depressão. Frise-se que durante quase 50 anos teve no Dr. Abrahanson o psicanalista competente. Alain Lompech comenta sobre uma Escola pianística à qual o artista chileno estaria filiado: “A nenhuma, senão à sua própria escola, técnica forjada por Krause em função da música abordada, superada por Arrau sobre o divã do psicanalista para desatar as tensões psicológicas que entravavam o percurso de um artista único em seu século” (“Les grands pianistes du XXème” (Paris, Buchet-Chastel, 2012).

Clique para ouvir, na interpretação de Claudio Arrau, de Carl Maria von Weber, Perpetuum mobile:

https://www.youtube.com/watch?v=hR2ZVQWFD_Q

Saliento que meu saudoso professor, o notável José Kliass (1895-1970), russo de origem judaica, igualmente estudou com Martin Krause. Contava-nos a metodologia competentíssima, mas severa, do famoso mestre. Quando Arrau vinha a São Paulo, Kliass o recebia.

Considere-se que, ainda jovem, Claudio Arrau já executava algumas integrais, fato raro encontrado entre alguns fenômenos possuidores de memórias extraordinárias. Apenas para menção, em 1933-34 apresenta no México, em quinze semanas, quinze recitais diferentes. Na mesma década, em doze recitais interpretou a integral de J.S. Bach para teclado, excluindo as obras para órgão, assim como as 32 Sonatas de Beethoven. Era intérprete da integral das Sonatas de Mozart e de ciclos extensos de Schubert, Chopin, Liszt, Schumann, Weber, Brahms, Debussy e Ravel.

Clique para ouvir, na interpretação de Claudio Arrau, as 32 Variações de Beethoven:

https://www.youtube.com/watch?v=sjcYxTASL1E

Uma das características em suas apresentações era o rigor e o respeito às mensagens contidas nas partituras. Não transigia e essa qualidade foi, erroneamente, interpretada como impessoalidade, o que não traduz a imensa autoridade nas execuções de Claudio Arrau. Poderia acrescentar, como aliás já o fiz em tantos blogs, que o guia mais autêntico para um jovem, ou mesmo adulto pianista, é aquele que exclui o livre arbítrio. Claudio Arrau jamais foi um pianista impessoal, imprimia sua interpretação com maestria e ideias claras, apenas não buscava o efeito fácil e os holofotes.

Clique para ouvir, na interpretação de Claudio Arrau, de Chopin, Estudo op. 10 nº 1:

https://www.youtube.com/watch?v=l-QledBNLdM

Daniel Barenboim tem posicionamento claro ao falar sobre Claudio Arrau: “Creio que os pianistas de antanho podiam ler melhor uma partitura se comparados com os atuais, pois não se conformavam em ver o ‘p’ de piano ou o ‘c’ de crescendo. Na realidade, ‘p’ [baixa intensidade] em relação ao que vem antes ou depois no discurso musical? Isso não aparece na partitura, está na área da criação musical. Tinha-se todo um fenômeno musical para qualquer pianista, não importando sua origem ou escola. Para eles a Bíblia era o som, não o papel impresso”.

Clique para ouvir, na interpretação de Claudio Arrau, de Franz Liszt, Un Sospiro:

https://www.youtube.com/watch?v=S_bVk3RMPyk

Nas conversas com Joseph Horowitz, Arrau, que tantas vezes fez questionamentos sobre vida e arte, chegara à conclusão na meia idade de que o gesto não era o essencial para agradar ao público. Restringiu-o ao máximo, a considerar que a Música era o princípio único a ser seguido. Em blog recente considerei a posição de Sviatoslav Richter, que preferia tocar nas salas basicamente só com iluminação mínima para ele e o piano, pois o público ia ao teatro para ouvi-lo e não para ver seus gestos e suas mãos. Outros tempos, diversos do atual da grande mídia, das câmeras a focalizar trejeitos e vestimentas tantas vezes bem ousadas. Civilização do espetáculo.

Nos depoimentos a Joseph Horowitz, Arrau também fala a respeito do medo do palco. Ele existe em maior ou menor grau. Tinha agendado, para récitas em Nova York, a integral das Sonatas de Mozart. Ligaria para o empresário, após ensaios em sua residência, a dizer para retirar uma das Sonatas. Ao estudar e executá-las na íntegra, sem público, repentinamente uma frase de outra Sonata teria entrado naquela que estava a executar. Dando prosseguimento aos seus estudos, o mesmo ocorreu com outra Sonata, o que o motivou a ligar ao empresário para cancelar as apresentações. Frise-se que Mozart, em suas Sonatas e Concertos, apresenta tantas vezes “fórmulas” que muito se assemelham, fazendo parte de seu extraordinário idiomático.

Essa “Bíblia do som”, de que nos fala Barenboim, foi seguida à risca durante toda a trajetória de Claudio Arrau, que nos longos depoimentos atribuiria à vaidade um dos males pelo qual o intérprete pode ser acometido. O piloto-escritor Saint-Exupéry já não professava que a vaidade não é um vício, mas sim uma doença?

A modéstia e o comprometimento pleno com a essência essencial da Música são relatados por Alain Lampech. Ao encontrar-se em Paris com Claudio Arrau, próximo dos 90 anos, este lhe pediu para marcar uma visita ao notável pianista francês Vlado Perlemuter (1904-2002), pois queria trabalhar as peças de Miroirs, de Ravel, para gravá-las: “Ouvira seu confrade executá-las em Londres, e aquela apresentação foi para ele uma revelação. Arrau pensava que ninguém compreendia essas obras como Perlemuter e ele gostaria de tocá-las para ele”.

Insere-se Arrau no seleto panteão dos grandes pianistas de antanho. Reverenciá-los é ter a consciência de que a chama da cultura erudita, da arte interpretativa dos grandes mestres do passado não pode ser extinta. Tem de ser mantida acesa.

Clique para ouvir, na interpretação de Claudio Arrau, o final do terceiro movimento da Sonata Appassionata de Beethoven:

https://www.youtube.com/watch?v=LOeCaiu8Yok

The Chilean-born pianist Claudio Arrau (1903-1991) has been considered one of the keyboard giants of the last century. A child prodigy, at the age of ten he moved to German on a Chilean government grant to study under the musical tutelage of Martin Krause, former student of Franz Liszt, and his genius bloomed under this great teacher. A legend in his own lifetime, despite his remarkable gift Arrau was devoid of personal vanity, preaching austerity, fidelity to the score and refined emotion, without exaggerated gestures. A name to be placed in the pantheon of great masters of the past, helping keep the flame of classical music alight.

Desdobramentos da leitura frente à pandemia

El terror a la peste es, simplemente,
el miedo a la muerte que nos acompañará siempre
como una sombra.
Mario Vargas Llosa
(El País, Piedra de Toque, 14/03/2020)

Meses sob pressão motivada pela pandemia fazem com que a peste, esse tema recorrente ao longo da História, provoque interpretações as mais diversas. É natural que assim seja. Os séculos guardam na memória testemunhos que, ou pela escrita ou através da oralidade, são revisitados sempre que episódio marcante assim determine.

Constantemente menciono nos blogs diálogos profícuos com o amigo Marcelo, que encontrava aos sábados na feira-livre de minha cidade-bairro. Leitor assíduo dos posts hebdomadários, marcávamos um curto em um dos cafés das cercanias e discutíamos. O confinamento distanciou-me desse aprazível mercado aberto, espaço que sempre tive imenso prazer de frequentar. Já lá se vão mais de quatro meses de pleno isolamento.

Deu-se situação singular num desses dias. Marcelo toca a campainha, atendo-o com a máscara e ambos conversamos ao ar livre, sentados num banco interior e frente ao pequeno jardim de casa. Bem mais jovem, Marcelo transita protegido. Lera na manhã de sábado último o texto a comentar La Peste, de Albert Camus, e durante um bom tempo abordamos a temática e seus reflexos nesses tempos do Covid-19, pois não lera o livro e entendeu pertinente o tema.

Os blogs têm seguido uma dimensão que possibilite a leitura, se não integral numa primeira abordagem, completa após revisita. Busco escrever essencialidades sucintamente, mas entendo que, pelo alcance, outras fiquem prejudicadas. Os questionamentos de Marcelo serviram para comentá-los nesses Ecos sobre La Peste.

Suas indagações invariavelmente voltavam-se à nossa pandemia e, interpretando suas palavras, “o tema que o fez pensar numa exaustão do povo quanto ao noticiário”. Há sim semelhanças entre o conteúdo do livro e a nossa realidade. Camus estabelece em sua narrativa aspectos hodiernos frente ao flagelo que nos assola. Da revolta inicial em tempos da peste passa-se a uma acomodação, ao relaxamento e, tantas vezes, à depressão. Camus acompanha as transformações do concidadão. Anônimo, este adquire importância crucial, observado quase sempre nessa atmosfera de espanto. Na epígrafe do blog anterior já mencionara uma de suas frases: “A peste suprimira julgamentos de valor. Via-se que ninguém mais se preocupava pela qualidade das vestes ou dos alimentos que compra. Aceitava-se tudo em bloco”. Seria o que hoje definimos como efeito manada. “Não se estaria a aceitar o cansaço do povo quanto às cifras dadas com profusão e ênfase pela mídia?”. À pergunta de Marcelo diria que em La Peste esse posicionamento é claro. Hoje, à custa de informações diárias pelos veículos de comunicação, não sem antes manter o ouvinte ou telespectador em suspense, esse cidadão também se cansou, caso dele específico. Quase poderíamos não errar ao dizer que a mídia necessita desses números elevados, verdadeiro chamariz. Durante quanto tempo, exaustivamente, Mariana e Brumadinho não estiveram em pauta? O cansaço de que nos fala Camus advém do excesso de notícias que se repetem ad nauseam.

A conversa com Marcelo abordou reflexões do personagem Jean Tarrou diante de duas condenações à morte que o marcaram profundamente: a primeira, após julgamento a ter seu pai como juiz, sentenciando à pena capital um acusado e a segunda, presencialmente, ficando-lhe indelével a impressão da cena do fuzilamento de outro infeliz, quando enfatiza a ínfima distância entre o batalhão e o condenado. A construção de outro livro relevante de Camus, L’Étranger, é realizada, entre tantas implicações, na direção à guilhotina da figura central do livro, Meursault, este aparentemente indiferente frente à vida e à morte. Evidencia Camus um repúdio à pena máxima. Uma frase de Camus é decisiva: “No universo do revoltado, a morte exalta a injustiça. Ela é o supremo abuso”. Na cena final da peça teatral Caligula, a preceder o assassinato do imperador romano, Albert Camus insere em uma de suas últimas falas: “Quem ousará me condenar nesse mundo sem juiz onde ninguém é inocente!”. Em 1954 intervém a favor de sete tunisianos condenados à morte. Acrescentei que apenas em 1981 a pena de morte foi abolida em França. Estou a me lembrar de meus anos como estudante em Paris nas fronteiras das décadas de 1950-1960. Quase todas as noites tomava sopa e bebia uma taça de vinho tinto com o adorável casal de concierges do prédio onde eu morava. Mais de uma vez, Robert Orambourg, leitor diário de jornal popular, comentou episódios de execuções de condenados à guilhotina. Espantou-me o fato de que uma dessas execuções se dera poucas semanas após o julgamento de bárbaro crime. Jean Tarrou, após ter narrado ao personagem central, Dr. Rieux, o trauma que o acompanharia pela existência devido àquelas duas condenações à morte, ao sucumbir vítima da peste teria, talvez, encontrado a “santidade sem Deus”. Apesar de não acreditar em Deus, Camus não se considerava ateu. No caso de Meursault, no peristilo do cadafalso há a sua plena revolta ao receber a visita do Padre a falar que rezaria por ele.

Em nossa profícua conversa observei que, sob outra égide, a de Saint-Exupéry, Camus também apresenta, através de seus vários personagens, mensagens sobre essencialidades da condição do homem. Acrescentei que se, sob o aspecto humano, “há mais coisas a admirar do que a desprezar”; sob o lado dos periódicos flagelos nada a fazer, mas sim aguardá-los, pois vírus ou bactéria estariam sempre à espreita através dos tempos. Fui buscar o livro e traduzi para Marcelo o final contundente quanto às futuras e malfadadas pestes: “Escutando efetivamente os gritos eufóricos que vinham da cidade, Rieux se lembrou de que essa alegria estava sempre ameaçada. Sabia ele que se pode ler nos livros que o bacilo da peste não morre, tampouco jamais desaparece, mas que essa multidão alegre ignorava tal fato. O bacilo pode permanecer durante dezenas de anos dormindo nos móveis e nos lençóis, a esperar pacientemente nos quartos, nas caves, nas malas, nos lenços e na papelada. Talvez dia virá quando, por desgraça e para ensinar os homens, a peste despertará seus ratos e os enviará para morrer numa cidade feliz”.

Finalmente, Marcelo disse-me que lera nesses últimos dias, num site portal conhecido, que o Prêmio Nobel de Literatura (2010), Mario Vargas Llosa, escrevera que La Peste era um livro medíocre. Disse-lhe que tinha lido o artigo publicado em El País, periódico espanhol, em sua coluna Piedra de Toque. Discordo, data venia, da posição do ilustre Mario Vargas Llosa, escritor que muito admiro, a entender inoportuno e até deselegante segmento de seu artigo Regreso al Medioevo? (14/03/2020): “La peor novela de Albert Camus, La Peste, tiene un súbito renascimento y tanto en Francia como en España se hacen reediciones y esse libro mediocre se há convertido en un best seller”. Considere-se que a afirmação se destina a uma das obras essenciais de Albert Camus, Prêmio Nobel em 1957. Opiniões, opiniões…

Once again I write about Camus’ novel The Plague, with focus on the similarities between the book and the moment we now live: tiredness, sometimes almost indifference, in face of the sensationalist media coverage of the Covid-19 pandemic, the heroism of ordinary people doing extraordinary things, the awareness – as in the final paragraph of the book -  that plagues never die, they just lie dormant waiting to take us by surprise. And, opposing this pessimism, the faint note of optimism when the novel’s main character says  “there are more things to admire in men than to despise”. Camus, the man who said he didn’t believe in God but was not an atheist, had faith in humanity after all.

Albert Camus (1913-1960)

A peste suprimira julgamentos de valor.
Via-se que ninguém mais se preocupava
pela qualidade das vestes ou dos alimentos que compravam.
Aceitava-se tudo em bloco.
Albert Camus
(“La Peste”)

Em carta ao pensador Roland Barthes, que tecera críticas a La Peste, Albert Camus responde aos 11 de Fevereiro de 1955: “La Peste, que eu gostaria que fosse lida através de várias perspectivsas tem entretanto, como evidente conteúdo, a luta da resistência europeia contra o nazismo. A prova é que esse inimigo, que não é nomeado, todos o reconhecem e em todos os países da Europa. Acrescentemos que uma longa passagem de La Peste foi publicada sob a ocupação, numa coletânea de combate, e que essa circunstância por si só justificaria a transposição que realizei. La Peste, num sentido, é mais do que uma crônica da resistência. Seguramente não é menos”. Ao mencionar a resistência, fá-lo por ter sido, entre outras atribuições como escritor, romancista, dramaturgo, ensaísta, um jornalista militante comprometido com a Resistência Francesa. Elaborado de 1939 a 1943, portanto do começo ao pleno desenrolar da 2ª Grande Guerra, Camus, em entrevista à revista Servir em 1945, diria: “Não sou filósofo. Não creio suficientemente na razão para acreditar em um sistema. O que me interessa é saber como se pode caminhar quando não se crê em Deus ou na razão”. Roger Quilliot, que estabeleceu textos e anotações para a edição de obras de Albert Camus da Bibliothèque de la Pléiade (Paris, Gallimard, 1962), observa que La Peste “…nos oferece enfim uma visão de um mundo sem futuro nem finalidade, um mundo de repetição e homogeneidade, onde o próprio drama cessa a dramaticidade e onde os homens se definem menos por sua ação, sua fala e seu peso físico do que pelo seu silêncio, sua sombra e sua reação diante dos desafios da existência”.  Apesar da temática necessariamente levar a tantas situações niilistas, há uma centelha de esperança no ser humano, como afirma Camus: “… aprendemos no turbilhão dos flagelos que há nos homens mais coisas a admirar do que a desprezar”.

A morte trágica de Albert Camus aos 4 de Janeiro de 1960, comentada amplamente pela imprensa e por amigos franceses, despertou-me o interesse por suas obras, mormente as narrativas e romances. Estudava em França àquela altura e li quase em seguida, em tiragens econômicas, L’Étranger, La Peste, La Chute et l’Exil et le Royaume. Ao longo da existência reli L’Étranger e La Chute, livro este que sempre me pareceu enigmático, merecedor de mais leituras.

O Covid-19 despertou no planeta um interesse maior por La Peste. Se realmente a essência essencial decorre do exposto por Camus em sua resposta a Roland Barthes, outros alcances da obra podem ser compartimentados na abrangência de flagelo representado pela peste circunscrita ou pela pandemia mundial. A tipificação geográfica caracteriza a cidade de Oran por volta de 1940, às margens do Mediterrâneo, terra de afeto do autor naquele período da Argélia Francesa, seu berço natal.

A morte de milhares de ratos que saem das entranhas do subsolo das casas, dos encanamentos e das bocas de lobo para agonizar nas ruas, calçadas e corredores provoca a seguir a peste bubônica nos humanos, transmitida pelas pulgas desses roedores. Em La Peste, no peristilo do flagelo a mídia questionava o poder municipal: “Nossos edis já não teriam sido avisados do perigo representado pelos cadáveres desses ratos?”.

O surgimento da peste muda completamente a vida dos habitantes, que veem os portões da cidade se fechar, isolando-a do mundo exterior. Ninguém mais sai nem entra em Oran com seus de 200.000 habitantes, segundo o autor em sua obra de ficção. Os moradores passam a assistir à morte crescente de seus concidadãos. Nesse trágico quadro, são poucos os personagens narrados pelo escriba que, ao final do livro, se revela como sendo o personagem central, o Dr. Bernard Rieux. Ele os acompanha em suas aspirações, esperanças, desalentos, generosidade, solidariedade, desprendimento, mas também má conduta e sobretudo, no caso mais específico do cidadão anônimo, “a ignorância que acredita tudo saber”. Os personagens ignotos reagem de acordo com as circunstâncias: temor, ansiedade, aceitação da peste, desalento, resignação frente à morte e júbilo final com o flagelo debelado. Durante a peste os roubos se avolumam: “Casas incendiadas ou fechadas por motivos sanitários foram pilhadas. Difícil supor serem atos premeditados. A maioria das vezes, uma súbita ocasião levava as pessoas, até então honradas, a ações repreensíveis, que seriam imitadas a seguir”.

A edificação de La Peste foi lenta. Camus pesquisa obras fundamentais que tratam da peste na Europa e na Ásia dos séculos XI ao XIX. Seu conhecimento prévio substancia realidades de endemias que assolaram a região anteriormente e tornam, sob outro aspecto, verossímeis suas interpretações de determinadas agonias, como a do filho do juiz Othon ou de seu amigo Jean Tarrou. Este, acamado em casa do médico, torna-se uma das últimas vítimas da peste. Albert Camus, nessas inusitadas duas longas narrativas, transmite ao leitor a evolução do início à fatalidade, a descrever as mínimas reações. Faz-me lembrar outra leitura, a de “Memórias de um Cirurgião-Barbeiro”, do ilustre médico e escritor Heitor Rosa, ao relatar pormenorizadamente outras agonias durante o século XVI devido à sífilis e ao tétano e a ter Girolamo Fracastoro (1478-1553) como personagem central.

Episódios que se repetem nas epidemias ou pandemias através dos séculos contêm certas constantes. Em La Peste, parte considerável daquilo que se está a sentir com a pandemia do Covid-19 lá está presente na imaginada peste de Oran: descaso inicial dos governantes frente ao flagelo anunciado, minimizando-o como irrelevante e passageiro, e mais: isolamento, lockdown, máscaras, legião de médicos e enfermeiros dedicados que se extenuam nessa luta sem descanso, cidade vazia, distanciamento, temor, agonia do infectado, tentativas para se encontrar “o” remédio, aproveitadores, acúmulo de mortos nos cemitérios. “A peste como abstração era monótona”, escreve o narrador. “Muitos coveiros e enfermeiros, primeiramente oficiais, a seguir improvisados, morreram da peste. Impressiona o fato de não faltarem homens para essa tarefa”.

Se considerarmos a pandemia que se está a viver nesse 2020, La Peste pareceria retratar situações multum in mínimo limitadas a Oran, que se expandem avassaladoras na atualidade. Personagens do enredo desempenhariam duplo papel, se consideradas forem guerra e pandemia. Teriam semelhança com outras que o nosso cotidiano expõe, assim como com outras durante a resistência na Segunda Grande Guerra ou outras mais advindas.

Bernard Rieux, narrador, médico responsável e humanista está sempre propenso a atender os infectados, atitude que, transposta em pleno 2020, exemplificaria a legião de médicos, enfermeiros e ajudantes que têm labutado nesses tempos do Covid-19. “Em todos os exércitos do mundo, à falta de material, substituem-se por homens. Todavia, faltam-nos homens também”. Alguns poucos voluntários e abnegados juntam-se ao médico durante o percorrer da narrativa. Tarrou “é exemplo que pode compreender tudo e que sofre”, segundo o amigo Rieux. Tarrou também redige suas observações e ajuda Rieux em suas difíceis tarefas. Será um dos últimos a sucumbir, ele que buscava uma empírica santidade sem Deus. Joseph Grand, funcionário público, tenta escrever livro, mas a buscar a perfeição da primeira frase, dela não passa. Será o primeiro a se curar da peste. Suas aparições chegam a dar uma pitada de humor contido à narrativa. O padre Paneloux tem várias aparições e seus dois sermões ao longo da peste têm apreensões diferenciadas. Inicialmente tonitruante, após presenciar a longa agonia do filho do juiz Othon tem uma outra percepção do flagelo. “Sim, o sofrimento de uma criança era humilhante para o espírito e para o coração”.  A figura de Raymond Rambert ocupa vários espaços no livro.  Jornalista  temporariamente em Oran, nela fica retido pelo confinamento obrigatório. Após muitas tratativas para burlar o lockdown a fim de encontrar a amada, entende o devotamento do Dr. Rieux e se engaja na ajuda ao combate do mal. Estudiosos veem nele um resistente tardio durante a ocupação nazista. Após a abertura dos portões da cidade, sua amada o reencontra. Castel, médico como Rieux, representaria hoje a legião de cientistas na busca de uma vacina. O juiz Othon, que perde seu filho frente à peste, engaja-se na luta empreendida por Rieux. Também foi visto como um resistente tardio. Outros mais figurantes cruzam o caminho de Rieux, mas um é intrigante: Cottard, personagem que tentara o suicídio, mas propenso a atividades suspeitas. Desagrada-lhe o fim da peste e essa atitude foi entendida como a de um collaborateur em tempos da ocupação nazista. Enlouquece e é preso.

Considere-se em La Peste o tributo ao afeto, seja através da ausência, caso do jornalista Rampert separado da amada pelo fechamento dos portões da cidade, seja pelas várias situações afetivas no cotidiano dos personagens que cruzam os caminhos do Dr. Rieux ou, finalmente, no episódio da abertura plena da cidade, nos encontros daqueles que estiveram separados. Camus enfatiza o afeto, vivifica-o, dá-lhe sentido, a justificar a afirmação “há nos homens mais coisas a admirar do que a desprezar”. (Tradução: J.E.M.).

Situações intrigantes envolvem Camus com a temática julgamento em tribunal e execução física. Em L’Étranger seria o personagem principal, Meursault, que, julgado por ter assassinado um árabe, é executado. Em La Peste, Tarrou, em longa confidência ao médico Rieux, carrega um trauma em duas situações: ao assistir seu pai, juiz, condenar um acusado à pena máxima e ao presenciar, em outro momento, o fuzilamento de outro condenado.

A atemporalidade de La Peste leva o leitor a entender que, na essência, o homem não se desvia do atavismo. Frente ao flagelo, mais acentuadamente acertos e desvios de procedimentos se fazem sentir. Albert Camus em suas obras expõe esses comportamentos. Com raro sentido de observação. O Prêmio Nobel, tão discutido em tantas escolhas, foi conferido em 1957 ao escritor. Inquestionável.

My comments of the book “La Peste” (The Plague) by Albert Camus. Written from 1939 to 1943 — in the midst of the Second World War — and published in 1947, the novel follows the inhabitants of the Algerian city of Oran during a fictional outbreak of bubonic plague. According to Camus’ own words, the novel could be read on several levels, but its most obvious allegory deals with the pestilence of Nazism and the German occupation of France. Each moment in history has its own reading. For us, in the year 2020, the novel seems to be a warning of the dangers posed by infectious diseases at any time. The constants are the same then and now: authorities’ unwillingness to accept the early signs of the epidemic, quarantine, lockdown, face masks, people dying in droves, plague profiteers, expressions of solidarity, the heroism of medical workers, the search for a cure. No wonder coronavirus has made Camus’ novel a bestseller again.