O virtuosismo nato e a presença do fenômeno

Uma força magnética bizarra
me projetava diariamente em direção ao teclado.
György Cziffra
(rememorando seus primeiros anos)

Foi em 1960 que assisti pela primeira vez a György Cziffra tocar, após tantos comentários de colegas pianistas sobre suas mágicas performances. A cena, o Palais Chaillot, em Paris, absolutamente abarrotado. Cziffra tocou o 1º Concerto Totentanz, de Franz Liszt, e ainda brindou o público, absolutamente subjugado, com a interpretação do Grand Galop Chromatique do compositor.

Poder-se-ia dizer que a tradicional escola pianística francesa, que viu nascer pianistas extraordinários, sentiu-se “contestada” ao se deparar com o fenômeno György Cziffra, assim como, sob outra égide, com outro magnífico intérprete, o russo Sviatoslav Richter. Duas fortes presenças que puseram em causa conceitos válidos, é certo, mas diferentemente direcionados.

Assisti àquele concerto com a excelente pianista francesa Marie-Thérèze Fourneau (1927-2002), assistente de meu professor Jean Doyen (1907- ), e com quem também tive o privilégio de estudar. A impressão foi simplesmente fulminante.

A vida de György Cziffra nas primeiras décadas não encontra similaridade com quaisquer outras trajetórias de pianistas que se consagraram. Os percalços por que passou ao longo das primeiras décadas poderiam ser determinantes para o impasse. Dois fundamentos essenciais explicariam o grande intérprete que foi: ter sido um fenômeno na plena acepção do termo e a vontade de superar todas as adversidades.

Dividirei em três posts a temática György Cziffra: o primeiro relacionado à infância vivida numa favela na periferia de Budapeste e os primórdios de um aprendizado oficial, o segundo a abordar a fase dramática como recruta durante a IIª Grande Guerra e vicissitudes decorrentes, sendo que um terceiro focalizará a consolidação da carreira.

Os primeiros anos de György Cziffra não poderiam jamais sinalizar o pianista que adviria. Criança débil, que passou os primeiros anos praticamente em seu leito, mercê de uma fragilidade por ele relatada em “Des Canons et des Fleurs” (Paris, Robert Laffont, 1977), autobiografia pungente já mencionada em alguns posts bem anteriores. Com os pais e irmãos morava em uma favela nos arredores de Budapeste sem qualquer conforto básico. Relata dias sem alimentos fundamentais e a visita, por vezes, de vizinhos na mesma situação de quase penúria: “um cigarro comunitário fazia a ronda e um odor acre empestava o aposento. Bastava um assunto sobre culinária e um brusco concerto sonoro de estômagos vazios fazia saber que era o momento de mudar de assunto”.  O pai, músico de conjunto popular em cabarés, por vezes desempregado, apresentava temperamento soturno e a mãe, devotada ao filho doentio, teve empregos temporários. Uma de suas irmãs, após conseguir precário trabalho, alugou um piano e praticava técnica dos cinco dedos, escalas e arpejos. O pequeno György, sem sair do leito, via as mãos da irmã deslizarem pelo teclado e, sob as cobertas, imitava o gestual. Tinha apenas quatro anos. Aos cinco, ao se aproximar do teclado, iniciou “autodidaticamente” a sua trajetória. “A Providência me compensava da impossibilidade das brincadeiras com bola”. Logo após suplantava sua irmã nesses exercícios pianísticos e, com a ausência de partituras, aprendeu precocemente a improvisar. Seu pai dava-lhe ensinamentos rudimentares. Todos os cantos que ouvia, transformava-os em improvisação. Esses dons não ficaram despercebidos por um grupo de palhaços que transitava pelas cercanias. Resultou que aos cinco anos o miúdo encantaria frequentadores de um circo e atendia aos apelos do público improvisando temas sugeridos, não sem receber parco cachê. Poucas semanas bastaram para que sua fragilidade física o impedisse de continuar. Restabelece-se, retorna ao circo, mas não resistiria a mais poucos dias nessa atividade.

Clique para ouvir, na interpretação de György Cziffra, de Jean-Philippe Rameau, Le rappel des oiseaux:

https://www.youtube.com/watch?v=4pjR6V3mzGI

É relativamente recente o surgimento, sempre em aceleração, de pianistas oriundos do Extremo- Oriente, mormente da China, munidos de “aparelhamento” técnico-pianístico extraordinário, acompanhado mais tenuamente pelo aprimoramento musical. Todavia, o quesito voltado à interpretação tem surpreendido ultimamente as escolas ocidentais. O fato denota a presença de professores que desenvolveram metodologia não aplicável no Ocidente. Para que haja resultados, haveria a necessidade de alunos altamente disciplinados e concentrados nos objetivos. E o Extremo-Oriente é exemplo nesse mister. A eclosão de uma nova geração dessa vasta região torna, a meu ver, mais acentuadamente György Cziffra um fenômeno absoluto sob o plano técnico-pianístico, independentemente de suas inegáveis qualidades musicais.

Em “Des canons et des fleurs” o pianista tece rico testemunho sobre o estudo na infância. O fato de ter sido um “autodidata” naqueles primeiros anos fá-lo comentar as razões que contrariam o ensino tradicional voltado ao piano. Observa: “Iniciar o estudo sério de piano sem saber ler música, na realidade, não me parece prejudicial para um principiante. Ao contrário, a preocupação (sobretudo no começo) com aspectos práticos do instrumento, preferencialmente aos teóricos, favorece e acelera a eclosão e mais, o desenvolvimento de um jogo de reflexos das mãos sobre o teclado. O poder de concentração crescente do aluno fará com que consagre um máximo de eficácia ao bom desenvolvimento de seus reflexos condicionados, que são, na minha opinião, a base de toda técnica pianística séria. Não entendam mal os meus propósitos. Observando-se as diversas fases de sua evolução, é saudável deixar as mãos caminharem sozinhas, a fim de que seu detentor possa familiarizar-se com as leis particulares que regem a sua mobilidade espontânea. É muito mais oportuno penetrar os arcanos da leitura musical, uma vez que o entendimento tácito de seus dedos com as teclas tenha criado na criança a sensação soberana de terreno conquistado”.

Um certo dia dessa infância plena de infortúnios o pequeno e frágil György foi cercado por outros meninos da Cour des Anges, favela em que morava. Surraram-no e o insultaram, simplesmente por ser ele um mini pianista admirado. Escreveria: “Era o poder emocional de minhas mãos. Acabara de apreender que essa habilidade era capaz de suscitar sentimento de amor…, mas também de ódio”.

Reiteradas vezes escrevi sobre o acaso que pode modificar totalmente a trajetória de um personagem. Seria possível entender que naquelas condições, tantas vezes agudizadas no livro de Cziffra no que concerne à extrema pobreza, dificilmente houvesse transformações em sua existência. O provável seria vê-lo no futuro como um pianista a desenvolver sua atividade como músico de ambiente, à maneira de seu pai. Certo dia em que seus pais e sua irmã saíram para o trabalho, estando só a estudar autodidaticamente nos seus poucos anos e com a porta aberta, entra naquele único espaço comunitário da família um cidadão. Idoso, coxo e quase maltrapilho, o vendedor ambulante que visitava àquela altura a Cour des Anges dirige-se ao menino que, assustado, ouve do ancião vaticínio de um futuro promissor. György o viu como um bicho-papão. A seguir, sua mãe entra no aposento e, sem hesitação, convida o cidadão a se retirar. Estabelece-se um diálogo:

“ – Madame, eu não vim para vender nada… apesar de notar que vocês têm necessidades. Entrei para dizer que seu filho tem um talento excepcional e que seu lugar não seria na marquise de uma feira e sim na Academia de música de Budapeste, fundada por Franz Liszt. Sou um modesto vendedor ambulante, sei o que sei e para provar minha boa intenção, obterei um encontro com o grande diretor da Academia para que ele ouça seu filho.

- Não me diga que o senhor o conhece pessoalmente, retrucou sua mãe, olhando as roupas surradas do ancião.

- Madame, tenho a certeza de que ele não recusará, respondeu o ambulante com um sorriso sardônico. Na próxima semana passarei para confirmar data e hora precisa do encontro…”

Após data marcada e preparativos, roupa de marinheiro comprada pela irmã para seu irmão caçula, ei-lo com sua mãe em direção à Academia: “para se chegar à residência do Diretor, situada bem além do outro lado de Budapeste, caminhamos uma hora e meia até a estação de trem, mais duas horas para atravessar a cidade e ainda mais uma a pé”. Na realidade nada estava marcado, mas, após insistência da mãe, que explicou as penúrias e as inverdades do vendedor ambulante do qual o Diretor não tinha a menor ideia, este aquiesceu e ouviu o garoto. Teria dito ao telefone a um interlocutor que a criança não era uma pedra rara, mas o Koh-i-Noor (um dos diamantes mais valiosos do planeta).

Apesar da tenra idade, György já participaria de masterclasses do professor István Thomán (1862-1940), “curso frequentado pelos ‘grandes’ de vinte e cinco ou mais anos, virtuosos completos que lá vinham para polir ainda mais suas interpretações, a cem léguas das minhas tímidas ousadias. Conservo minha eterna gratidão ao mestre István Thóman. E estou a me lembrar de suas palavras ao ouvir um aluno tocar a Grande Polonaise de Liszt e a IVª Balada de Chopin: ‘Um dia, eu toquei nesta sala essas duas obras diante de Liszt’ “.

István Thóman foi professor de Ernö Donhányi (1877-1960) e de Béla Bartok (1881-1945), pianistas de grande mérito e compositores consagrados. Cziffra estudaria igualmente com Ernö Donhányi.

Clique para ouvir, na interpretação de György Cziffra, de Ernö Dohnanyi, Capriccio, Étude de Concert em fá menor, op. 28:

https://www.youtube.com/watch?v=2EHfTDnZIto&list=RDU8ZU8I2aH8Q&index=3

Essa primeira fase se encerra: “meu mestre, István Thóman, morreu enquanto vozes e barulhos de botas cobriam as vozes do céu. Abertamente as pessoas falavam bem mais sobre a eventualidade de uma guerra ‘como jamais vista’ do que do próximo concerto”.

Retornando àqueles quatro anos de idade em que o miúdo improvisava cantos que ouvia, entre os quais “aprendi de ouvido a Grande Valsa da célebre ópera Faust, de Gounod (somente muito mais tarde, em Paris, a beleza diabólica dessa peça me foi revelada em todo o esplendor, através da magistral transcrição de Liszt, que eu me apressei a gravar em lembrança… daquela lembrança)”.

Clique para ouvir, na interpretação de György Cziffra, de Gounod, na transcrição de Franz Liszt, Valsa, paráfrase da ópera Faust:

https://www.youtube.com/watch?v=F6HLMLryv9U

Para o leitor que quiser seguir pela partitura:

https://www.youtube.com/watch?v=YEyCurpqCoY

Após essas fases, da infância ao aperfeiçoamento, György Cziffra não se pormenoriza nos anos a estudar na Academia e passa diretamente aos caminhos rigorosamente inusitados, o da mobilização para a IIª Grande Guerra e das incríveis vicissitudes que viveu, temas para o próximo post.

 

It was in 1960 that I saw György Cziffra playing for the first time, after so many fellow pianists commented on his magical performances. On the occasion, the auditorium of the Palais Chaillot, in Paris, was absolutely packed. Cziffra played Franz Liszt’s First Concerto and Totentanz for piano and orchestra and also delighted the mesmerized audience with his interpretation of the composer’s Grand Galop Chromatique.