As cartas do compositor a André Hellé dizem muito…
Entre nós, eu nunca suportei bem a multidão…
Claude Debussy
(carta a Gabriele D’Annunzio, 10/05/1911)
A recepção do blog anterior foi animadora. Agradeço as considerações e creio que as missivas de Debussy a André Hellé corroboram entendimentos.
Como observei no último post, há tempos Elson e eu pensávamos introduzir La Boîte à Joujoux no Youtube. Como se trata de obra singular, programática e cercada de sensíveis ilustrações criadas pelo escritor e pintor francês André Hellé, várias montagens foram feitas ao longo de mais de um século. A primeira audição mundial se deu no Théatre Lyrique (10.12.1919) através da versão para orquestra, preparada pelo compositor e regente André Caplet, amigo de Debussy, embora a edição da partitura original para piano tivesse sido publicada no final de 1913. Ficaria a impressão de que La Boîte à Joujoux teve como destinação inicial a orquestra. Essa teria sido uma das razões para que uma menor divulgação da obra pelos pianistas ocorresse ao longo de muitas décadas.
Vários leitores atentos pediram que me alongasse mais nessa obra que é exceção na composição para piano de Debussy, caracterizando melhor a gênesis, o evoluir da composição até seu término, o estilo e as ideias concernentes do autor. Essas colocações têm interesse e explicam com clareza incontáveis outras situações paralelas nas obras dos compositores, ratificando a posição do escritor e naturalista Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon (1707-1788), para o qual le style est l’homme même.
As “autocitações” de Debussy em La Boîte à Joujoux são reminiscências de motivos ou frases musicais metamorfoseados. Como não pensar em Children’s Corner, mormente em Jumbo’s Lullaby (berceuses des élephants), Serenade for the Doll e The Little Shepperd, esta última tão próxima do “Un pâtre qui n’est pas d’ici joue du chalumeau dans de lointain” (Um pastor que não é daqui toca flauta ao longe), do terceiro quadro de La Boîte…! Essas lembranças fazem parte essencial do idiomático de um autor, revelam que há, mormente em Debussy, o olhar o novo sem olvidar o passado, mesmo que a linguagem se transforme.
Antolha-se-me que La Boîte à Joujoux contém a síntese de vários procedimentos empregados por Debussy, por vezes num despojamento essencial, e que a escritura do ballet pour enfants revela elementos estilísticos inalienáveis do autor que serão projetados poucos anos após. O Étude pour les arpèges composés (1915), como um exemplo basilar, contém diversos compassos que fazem lembrar segmentos de La Boîte à Joujoux.
Clique para ouvir, de Claude Debussy, o Étude pour les arpèges composés, na interpretação de J.E.M.:
https://www.youtube.com/watch?v=VCAH8fYHjSo
No Youtube há várias versões para La Boîte à Joujoux a partir do original para piano solo: piano e algumas ilustrações, piano e declamação – frases da história contidas na partitura -, piano e teatralização, orquestra…
Como asseverei no blog anterior, sempre que apresentei em público La Boîte à Joujoux tinha em mente a criação de Debussy como composição que se sustenta independentemente de outros recursos. Interpretei-a em recitais no Brasil e no Exterior na formatação original e o público sempre compreendeu a mensagem intrínseca. Contudo, mercê dos avanços da internet, a inclusão das frases e das ilustrações não apenas norteia o ouvinte-leitor, como não interfere minimamente no discurso musical, antes, corrobora o entendimento. E possibilita em acréscimo o recurso de novamente se ouvir e se ver de imediato frase ou frases não inteiramente entendidas durante a execução de determinada passagem.
Sem contar determinadas criações, como Petite Suite (piano a quatro mãos, 1888-1889), Children’s Corner (1906-1908) e La Boîte à Joujoux (1913), seria esta última a que apresenta tardiamente aspectos mais descontraídos e lúdicos, sem que o rigor estrutural perca a absoluta coerência. Foi Georges Ricou, secretário geral da Ópera-Cômica, que sugeriu a André Hellé apresentar o projeto do ballet a Debussy. Isso feito, ao responder ao autor do texto e das ilustrações, convidando-o a visitá-lo, Debussy escreve: “Acredite de bom grado que a sua ideia de um ballet não pode me deixar indiferente” (14/02/1913). A se ler, a adorada filha Claude-Emma (Chouchou – 1905-1919) estará sempre presente durante a criação. Como André Hellé obtivera sucesso com seus vários livros para crianças, entre os quais L’Arche de Noé e Les Facéties de Topsy, chien mácanique, aceitação também conseguira pelos papéis com pequenas ilustrações de bichinhos. Debussy lhe escreve para agradecer esses papéis: “Chouchou me disse que só pode escrever sobre o seu papel. Poderíamos contestá-la por essa precoce marca de gosto e de alegria?” (22/06/1913). Vítima de difteria, Chouchou faleceu aos 13 anos, pouco mais de um ano após a morte do pai.
Creio de interesse para o leitor determinadas frases da correspondência de Debussy a André Hellé. Mantêm as missivas muito do charme existente na composição.
Durante a criação, escreve a Hellé: “Desde que você acertadamente deseja que a rosa tenha importância, porque não inseri-la na primeira página? Na realidade, tudo nessa pequena tragédia resulta numa rosa descartada! Desde a existência das mulheres e das rosas, é a eterna história” (25/07/1913). Hellé insere a rosa naquele espaço, após carta de Debussy quatro dias depois, na qual ratifica: “Pediria que colocasse a rosa na capa da partitura, sob o título La Boîte à Joujoux…, pois isso resultaria em surpresa nas páginas seguintes. Aliás, essa rosa tem a mesma importância de qualquer outro personagem”. Acrescentaria o fato de que na página dos personagens – boneca, soldado e polichinelo – há, logo abaixo, o “tema” da rosa sobre o desenho, e os instigantes sinais são inequívocos, pois uma pausa de semínima com fermata e mais o sinal decrescente em direção a um pp, silêncio absoluto pois, ratificam, nessa singela anotação, o fato de que 80% da opera omnia de Debussy se situar nas baixas intensidades, configurando uma de-dinamização. Nas 25 ilustrações constantes da edição de 1913 (Durand), por 11 vezes a rosa estará presente!
A respeito de uma futura apresentação de La Boîte à Joujoux, Debussy escreve ao seu editor Jacques Durand que “a mise en scène não necessita de um mestre de ballet, pois no transcorrer da obra tem-se preferencialmente movimentos e não Passos de ballet” (19?/05/2014).
Após a morte de Debussy, André Hellé escreve à viúva do compositor, Emma Debussy: “Choro o amigo que partiu e com emoção me lembro da grande confiança que ele em mim depositou. Evoco, estarrecido, as horas cruéis e todos os sofrimentos dele, assim como os seus. Contudo, quero pensar que Debussy não pode morrer” (27/03/1918). Tradução: J.E.M.
E não morreu. Continua a ser um dos compositores mais frequentados, geralmente através de suas obras sacralizadas há bem mais de um século. La Boîte à Joujoux pouco a pouco desperta o interesse dos pianistas, independentemente de texto e imagens. Aguardemos esses passos.
Clique para ouvir, de Claude Debussy, Étude pour les note répétées, na interpretação de J.E.M. Não é difícil detectar nesse magnífico Estudo, composto dois anos após La Boîte à Joujoux, eflúvios emanados do ballet pour enfants:
https://www.youtube.com/watch?v=yFwQ_iiSVZI
Para o leitor que não teve acesso ao blog anterior, insiro novamente o link de La Boîte à Joujoux, gravação que realizei na Capela de Saint-Hilarius, Mullem, Bélgica, para o selo De Rode Pomp (2002):
https://www.youtube.com/watch?v=0nGug1ZFxKU
I have received numerous e-mails requesting further information about the genesis of “La Boîte à Joujoux”. After considerations, I insert passages of letters from Debussy to André Hellé, author of the text and the illustrations of “ballet pour enfants”, as well as two Études pour piano which, despite their abstract genre, contain effluvia from “La Boîte à Joujoux”.
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