Navegando Posts publicados em janeiro, 2022

Criação e misticismo

Scriabine era um místico,
e o místico nele determinava o pensador e o artista:
a originalidade de sua personalidade, filosófica e artística,
reduz-se em última análise
à originalidade de suas experiências místicas”.
Boris de Schloezer (1881-1969)

Entender o caminho composicional empreendido por Alexandre Scriabine compele-nos necessariamente a apreender sua trajetória, que se acentuaria progressivamente mais mística a partir basicamente do início do século. Sem ter deixado uma obra literária finalizada com fins precípuos, como o fez com suas composições, seus textos, tantos deles esparsos e até repetitivos, dão a conhecer o lado teosófico, filosófico e místico de Scriabine. Através deles, o legado criativo musical do compositor ganha sentido e não é difícil compreender que, das obras exacerbadamente românticas até as fronteiras do século XX, a aceleração visando a uma fusão música e misticismo em direção à compreensão do Cosmos se torna evidente até a sua morte prematura em 1915.

A trajetória de um compositor é marcada por transformações escriturais, mais acentuadamente a partir do século XIX. Apenas para citar uns poucos exemplos, mencionaria as criações de Beethoven, Liszt, Schumann e Debussy, criadores nos quais é nítido esse caminhar. No caso de Beethoven, o desenvolvimento instrumental, aumentando inclusive progressivamente a extensão do teclado, que obviamente necessitou de uma tábua harmônica mais consistente para resistir à tensão de cordas maiores, fê-lo adaptar-se às novas possibilidades que certamente influíram em seu pensar musical, assim como a dramática progressão da surdez. Liszt, nos anos derradeiros, não mais necessitava exibir a grande virtuosidade que caracterizava a feitura de suas obras de antanho e suas consequentes criações adquirem  configuração interiorizada.

Com Scriabine há um processo que tem sua semente fincada no dia de seu nascimento, 6 de Janeiro, festejo do Natal, sendo a noite de 6 para 7 considerada de “vigília noturna” e celebrada pelos russos.  Scriabine não esqueceria essa data e, atento, frequentou futuramente em Bruxelas a Sociedade de Teosofia, buscou literatura especializada, admirava adeptos ilustres voltados às teorias teosóficas e filosóficas da época e, sem ter deixado uma obra literária, escreveu textos conclusos ou simples anotações em seus carnets. Seguir a cronologia desses escritos corrobora entender seu caminhar e a lenta “metamorfose” em direção a uma escrita musical distante das muitas normas ditadas pela tradição.  Esses escritos esparsos, tantas vezes sem sequência, serviam para Scriabine como um aide memoire, uma fórmula usual para esboços musicais, literários ou ideias gráficas. Por vezes, pela interrupção advinda de um fato exterior, determinado conceito não teria sequência.

Importa compreender que possivelmente, não fosse a atração que o levou às transformações da escrita musical, Scriabine teria persistido no vasto movimento romântico que perduraria, possivelmente, até a morte de Rachmaninov, seu justo coetâneo, em 1943.

Clique para ouvir, de Scriabine, o Estudo op. 8, nº 12 (Patetico, 1894), na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=6H_T5I4BYn0

Scriabine gostava de expor suas opiniões sobre música, arte, filosofia com pessoas das várias camadas sociais, mas diante de figuras ligadas às artes, à intelligentsia, mostrava-se acalorado. Tantos e tantos conceitos se perderam no frágil universo da oralidade. No livro “Alexandre Scriabin”, seu cunhado Boris de Schloezer, escritor e musicólogo, irmão de Tatiana, sua segunda esposa, aprofunda-se no pensamento de Scriabine e busca revelar os porquês de tão sensível transformação do pensar. Relata os primórdios de um entendimento que se daria ao longo da existência: “Quando vi Scriabine pela primeira vez em casa de meu tio, em 1895, em Moscou, tinha eu quinze anos. Fiquei impressionado pelo aspecto doentio e frágil e por sua grande nervosidade. Impressionou-me seu toque singular, tão diferenciado de tudo que ouvira até então”. Somente no inverno de 1902 Schloezer reencontraria Scriabine, então professor do Conservatório. “Mantinha a mesma fragilidade delicada, algo até infantil. Após uma conversa de uns dez minutos sobre nossos amigos comuns, nossos parentes, sua saúde, nossa conversa enveredou por algo mais abstrato e se transformou rapidamente numa discussão filosófica, acalorada e apaixonada. Assim começaram nossos entendimentos” (Boris de Schloezer, “Alexandre Scriabine”, Paris, Cinq Continents, 1975).

O relato faz-se necessário a fim de se entender não apenas a fragilidade física do músico, mas a propensão ao aprofundamento em áreas aparentemente distantes do conteúdo musical, e que levariam Scriabine não apenas a fixar seus conceitos sobre o pensar, como a ter uma visão singularíssima da escrita musical. Nesse amálgama, a liberdade do homem é fundamento essencial. A musicóloga Marina Scriabine (1911-1989), filha do compositor, escreve: “A paixão intransigente de Scriabine pela liberdade, uma liberdade total, absoluta, sem limites, encontrará também a simpatia e a compreensão do leitor contemporâneo” (introdução do livro de Boris de Schloezer). Essa liberdade não teria sido uma das causas de a própria interpretação de Scriabine ao piano, mormente nos andamentos lentos, comportar a flutuação do tempo? Seu contemporâneo N.N. Chercass menciona o excesso de rubatos nas execuções de Scriabine (1916). Sob outra égide, o ilustre pianista e professor Heinrich Neuhaus (1888-1964) afirmaria: “Tocando Scriabine meu pé não deixa o pedal”. Certamente nas muitas graduações.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, Dois Poemas op. 32 (1903), na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=oCivxihlJKY

Após a exposição de duas essencialidades de Scriabine, Schloezer sintetiza o místico, antes de se alongar sobre o tema. “Tentei recriar a imagem de Scriabine, pensador e artista, essencialmente me baseando em minhas lembranças. Meu caminho se estendeu da periferia ao centro, levando-me ao epicentro de sua personalidade, à sua essência mais íntima, a esse subsolo profundamente oculto que, estou convencido, alimentou com sua substância suas ideias e suas criações artísticas. É nesse epicentro que se encontra a poderosa fonte de sua criação e que mergulham as raízes de seu pensamento e de sua atividade, estreitamente entrelaçadas na obscuridade. O que pensava o artista e a maneira como pensava, o que ele queria e fazia, tudo era determinado pelo que ele havia experimentado diretamente e pela maneira como ocorrera essa experiência”.

Numa missão visionária, Scriabine idealizou uma obra, Mystère, gestada lentamente desde o início do século e que pressupunha a “arte total”, música, teatro, pintura, gesto, poesia. Concluiu apenas o Acte préalable em 1913.

Sob outra égide, os quatro carnets contendo pensamentos, textos breves conclusos ou interrompidos, têm interesse (Alexandre Scriabine, “Notes et Réflexions”, Paris, Klinckseeck, 1979). Marina Scriabine, em notável introdução, sintetiza o conteúdo dos carnets: “Para Scriabine, não havia mais o eu ou o não eu, pois tudo estava interiorizado por ele. Chegara desse modo a uma maneira singular do pensar. Só ele existia, ele era Deus e criador do universo, mas somente no ato da criação. As expressões ‘eu não sou nada’, ‘eu sou Deus’ pontuam como uma litania certos textos desse período. Ele nada é no não-ato, na não-criação. Ele é tudo, ele é Deus, no ato criador”.

No blog anterior citei o notável Dr. Eduardo Etzel (1906-2003), meu psicanalista altruísta durante dez anos (1976-1986). Após nossas conversas sobre as essencialidades detectáveis da personalidade de Scriabine, tendo a ele mencionado inúmeros exemplos progressivos de motivos  “ansiosos”, apresentando ao piano o processo constituído de motivos curtíssimos intercalados por pausas, o notável especialista levantou a hipótese da presença de motivos neurótico-obsessivos na criação do compositor, utilização que se acentua ao longo da existência.

Boris de Schloezer comenta a presença da nervosidade do jovem Scriabine. Outros comentaristas também traduzem essa assertiva de Schloezer. N.N. Cherkass, professor russo, escrevia artigo em 1916 sobre Scriabine, um ano após sua morte: “um homem doente, com uma doença interior que lhe angustiava todo o sistema nervoso”. Dois Estudos curtíssimos, op. 49 nº 1 e op. 56 nº 4 (1905-1908, respectivamente), evidenciam, na primeira década dos século XX, essa “nervosidade” observada por Boris de Schloezer e o estado ansioso. Inseri a teoria proposta pelo Dr. Eduardo Etzel  em artigo que escrevi para os Cahiers Debussy (nº 7, 1983) do Centre de Documentation Claude Debussy, Paris, como citado no blog anterior.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, seus dois mais curtos Estudos para piano, pertencentes a coletâneas de peças breves onde é notória a presença desses curtos motivos angustiantes. Interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=VaDmlkczoho

Ao escrever o monumental Prométhée – le poème du feu (1908-1910), Scriabine já se mostra um compositor muito além de seu tempo, totalmente imbuído desse amálgama música – artes outras – misticismo. A obra foi concebida para grande orquestra, com piano solo, coros mistos (vocalizando) e o inovador ‘órgão de luzes’, que projeta efeitos de luz no transcorrer da execução. Tudo idealizado pelo autor. A extraordinária criação em vários segmentos apresenta esses motivos rápidos intercalados por pausas, mormente nas últimas páginas.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, Prométhée – le poème du feu, com a Sinfonieorchester –  Frankfurt Radio Symphony, sob a regência de  Markus Stenz, tendo como solista de piano Dmitri Levkovich, dois coros mistos (vocalizando) e o inovador “órgão de luzes”, que projeta fachos luminosos no transcurso da obra:

https://www.youtube.com/watch?v=10ESN_t7txI

A divulgação da opera omnia de Scriabine tem se acentuado, principalmente após a segunda metade do século XX. Do romantismo exacerbado à escrita precursora de tantos processos que vingaram no século XX, Scriabine tem o sopro do etéreo, aponta para uma meta de união das artes, da literatura e de tantas outras manifestações. O homem a caminhar pela história rumo ao Cosmos.

On how Alexander Scriabine’s interest in mysticism and esoteric writings of his time affected the evolution of his works, going from the romanticism of the earliest compositions to the development of a highly personal style as the music-mysticism integration of his final period grew stronger.

 

Sesquicentenário de um excepcional compositor-pensador

Na realidade eu não vivo senão no futuro.
Alexandre Scriabine

Estava a redigir o blog anterior a respeito do notável pianista Roberto Szidon, que gravou em 1972 as 10 Sonatas de Scriabine para um dos mais representativos selos do planeta, Deutsche Grammophom, quando recebo da excelente pianista Solungga Liu, da Bowling Green State University dos Estados Unidos, programa comemorativo no mês do sesquicentenário de nascimento do compositor. Professores ligados à Instituição apresentaram as 10 Sonatas de Scriabine. À Solungga ficou reservada a Sonata nº 2, op. 19. Escrevi-lhe que apresentei essa Sonata no auditório Itália, em São Paulo, no centenário do compositor em 1972, em programa inteiramente a ele dedicado. Cinquenta anos se passaram e as homenagens continuam.

Filho de pai diplomata e de mãe pianista que morre um ano após o nascimento do filho, o jovem Alexandre realiza seus estudos junto ao corpo de Cadetes da Escola Militar de Moscou, mas cedo revela talento musical ao estudar piano com Zverev, harmonia com Conius e contraponto com Taneev. Após anos no Conservatório, de 1888 a 1892, completa o curso obtendo medalha de ouro. Inicia cedo sua atividade como pianista pela Rússia e alhures. Ainda jovem, apresenta-se quase sempre a interpretar suas próprias obras. De 1898 a 1903 Scriabine foi professor de piano no Conservatório de Moscou. Casar-se-ia em 1897 com a pianista Vera Ivanovna Issacovitch, com quem teria quatro filhos e, após separação, casa-se com Tatiana de Schloezer, mãe de seus próximos três.

Sua opera omnia privilegia o piano, mas o autor lega três sinfonias, poemas sinfônicos, sendo que Prométhée, le Poème du feu (1908-1910) foi escrito para grande orquestra, órgão, coros, piano e teclado com luzes, algo absolutamente inovador para a época. Compôs igualmente um Concerto para piano e orquestra op.20, realmente magnífico, mas que, por motivos que escapam à compreensão, tem sido pouco frequentado pelos pianistas.

Apesar dos esforços de dois imensos pianistas, Vladimir Sofronitsky (1901-1961) e Vladimir Horowitz (1903-1989), e alguns outros notáveis intérpretes executando na excelência suas criações, foi mais acentuadamente a partir da segunda metade do século XX que Scriabine entraria definitivamente no repertório dos pianistas (vide blogs: “Envolvimento a partir de um LP” a focalizar Sofronitsky, 05/10/2019 e “Vladimir Horowitz”, 22/02/2020).

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine: Prelúdios op. 11, nºs 11, 13, 14; Prelúdio op. 22, nº 1; Mazurka op. 40, nº 2; Désir, op. 57 nº 1; Estudo op. 8, nº 12 (Patetico)Poème op 32 nº 1, na interpretação do autor (1910) :

https://www.youtube.com/watch?v=xgD8Qq01CxY

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine: Étude op. 42 nº 5, na interpretação de Alexandre Sofronitsky:

https://www.youtube.com/watch?v=dTjVEEIQhqc

O caso de Scriabine é único entre os compositores. Sua filha, a musicóloga Marina Scriabine, sintetizou as aspirações de seu pai ao afirmar que não se pode dissociar a evolução de sua escrita composicional de seu aprofundamento místico. À medida que o pensamento, voltado mormente à Teosofia, evolui, a escrita musical acompanha, numa guinada absoluta aos postulados do longo caudal romântico. Se o extraordinário Sergei Rachmaninov (1873-1943),  seu coetâneo e colega de Conservatório, seguiu ao longo da vida uma linha romântica detectável, Scriabine terá basicamente, em sua breve existência, três vertentes nítidas, cujas fronteiras são perceptíveis, sendo quase impossível reconhecer o mesmo compositor através dos extremos do calendário. Se as criações de Chopin (1810-1849) e mais tarde, numa transição, as de Liszt (1811-1886) exerceram influência na escrita de Scriabine, não desprovida das raízes russas, mas sem cariz  popular, seria contudo mais acentuadamente a partir do início do século XX que o compositor-pensador empreenderá um caminho singular, personalíssimo, intrinsicamente imbuído de seu debruçar místico. Sua música torna-se mais dissonante. Cria seu próprio sistema. Nele insere o “acorde místico” de seis sons com intervalos de quarta. Suas criações dessa última fase, tanto nas Sonatas e Prelúdios, como nos Estudos e Poemas, seriam pouco frequentados pelos pianistas durante as primeiras décadas do século XX. Devido à brevidade dos tantos Poemas, o processo de “transformação” da linguagem se mostra mais presente. Digo “tantos” Poemas, pois vários deles assim nomeados e com titulação têm a caracterização detectável em outros, igualmente titulados, mas sem a palavra Poema a precedê-los. Como exemplos, temos os casos de Enigme, op. 52 nº 2, Nuances, op. 56 nº 3 e Étrangeté, op. 63 nº 2.

Clique para ouvir, de Scriabine, o Estudo op. 8 nº 10, na interpretação de Vladimir Horowitz:

https://www.youtube.com/watch?v=f8ezja4JBSk

Após a leitura de toda a obra para piano de Scriabine nos anos 1970, chegaria a uma conclusão concernente à quase absoluta inexistência da passagem do polegar em suas criações, sem abdicar em inúmeras delas da extrema virtuosidade. Sabe-se que, aos 18 anos, Scriabine teve problemas com sua mão direita, o que o fez compor o Prelúdio e o Noturno, op. 9, só para a mano sinistra. Durante a existência, como exímio pianista, mormente a executar suas próprias obras, teria preocupação com sua mão direita. Ao escrever artigo para publicação do Centre de Documentation Claude Debussy, em Paris, inseri posicionamento do ilustre Professor e ortopedista Dr. Heitor Ulson, que, após se inteirar dessa ausência quase que total da passagem do polegar – quando em curtos arpejos, Scriabine poderia realizá-los com rápido movimento da mão – consideraria que possivelmente o pianista-compositor tenha tido o denominado Mal de De Quervain (Dr. Fritz De Quervain 1868-1940), que afeta justamente o movimento de articulação do polegar. Logicamente, por analogia, o mesmo se daria com o processo exercitado pela mão esquerda. Reza a história que Scriabine na juventude estudou demais, a fim de cumprir os programas do Conservatório.  Sob outra égide, ao consultar o notável Professor e Psicanalista Dr. Eduardo Etzel (1906-2003), relatei-lhe o crescimento, na obra para piano de Scriabine, dos motivos curtos entremeados por pausas. Esse processo se acentua na medida em que Scriabine penetra nesse universo místico, pois eles se tornam mais sôfregos e angustiados. Segundo o especialista, seriam motivos neurótico-obsessivos. Se a linguagem composicional de Scriabine se transforma, essas duas considerações seriam elos que fazem “identificar” os extremos da criação (vide Cahiers Debussy “Quelques aspects comparatifs entre le langage de Debussy et Scriabine”, nº 7, 1983). Essa comparação entre Debussy e Scriabine se faz necessária, pois contemporâneos, embora apenas ao final de suas produções haja aproximação de procedimentos, estes voltados à sonorística, ao timbre e a essa busca daquilo que Debussy denominava “la beauté du son”. Frise-se, os dois não se conheceram, mas Debussy teria assistido a concerto de música russa em que foram apresentadas criações de Scriabine.

Quando dos 75 anos de Pierre Boulez, em entrevista ao Le Monde (24/03/2000), o notável músico afirmaria que, se Sacre de Printemps de Stravinsky, Pierrot Lunaire de Schoenberg, o 4º Quarteto de cordas de Béla Bártok e os Douze Études de Debussy fossem escritos atualmente, seriam aceitos como criações absolutamente contemporâneas. Acrescentaria à lista o Poema Vers la Flamme op. 72 de Scriabine, composto em 1912. “Na realidade eu não vivo senão no futuro”, como afirmaria o compositor.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, Vers la Flamme op. 72, composta em 1912, na interpretação de J.E.M. Gravação ao vivo durante recital no Convento Nª Senhora dos Remédios em Évora, Portugal, 2017:

https://www.youtube.com/watch?v=wdgfEnv51MI

This year we celebrate the sesquicentenary of Alexandre Scriabine, the Russian composer whose works have been increasingly championed by pianists worldwide in the last decades, garnering significant acclaim.

 

Pianista brasileiro referencial pouco cultuado

É um inútil desperdício de tempo celebrar a memória dos mortos
se não nos esforçamos em exaltar as obras que deixaram.
Monteiro Lobato

Não é difícil compreender que a música erudita no Brasil tenha sofrido um sensível decréscimo, tanto no que concerne à divulgação como ao aparecimento de maior número de instrumentistas que granjeariam renome fora do Brasil. Em jornais de décadas atrás, a crítica — sob a pena de críticos músicos, diga-se —, pontuava quase diariamente o resultado das performances dos concertos. Eram aproximadamente dez veículos da imprensa publicando apreciações!!! Estiolaram-se. É fato. Reduziram-se as salas para recitais em número e espaço, assim como minguou a afluência do público. Alguns intérpretes internacionais relevantes ainda conseguem se apresentar com boa audiência nos dois Teatros maiores da cidade.

A premissa se faz necessária, pois se esse panorama parece acentuar-se, divulgar os que já se foram torna-se também tarefa complexa. Guiomar Novaes, Magda Tagliaferro e Nelson Freire, com absoluta justiça, mercê de carreiras consagradas permanentemente pelo planeta, permanecerão como luminares, mesmo não sendo cultuados à altura. Mas alguns outros pianistas que partiram, de imenso valor, basicamente estão encobertos por uma neblina. Refiro-me a Antonieta Rudge, Arnaldo Estrela, Yara Bernette, Antônio Guedes Barbosa e Roberto Szidon, como alguns dos exemplos marcantes. Neste espaço reservei blogs a Antonieta Rudge (17/10/2020), Guiomar Novaes (09/05/2020), Yara Bernette (12/12/2020), Magda Tagliaferro (a partir do livro de Catherine Lechner-Reydellet, “Les légendes françaises du piano”, 10/11/2018), assim como outro a salientar, Fernando Lopes (vide: Fernando Lopes, (30/03/2019). Nascido em Porto Alegre, Roberto Szidon estudou com Karl Faust e posteriormente, nos Estados Unidos, com Ilona Kabos e Claudio Arrau. Sua ascensão foi meteórica, mormente após estudar medicina, abandonando o curso no quinto ano para se dedicar inteiramente à música. Sem amarras, todo um potencial revelou-se. Viveu nos Estados Unidos, mas fixaria definitivamente morada na Alemanha. Apresentou-se com algumas das mais importantes orquestras e seu nome figuraria entre os mais respeitados pianistas do período. Paralelamente à sua aceitação, não desprezaria o repertório pátrio, tendo gravado em LPs uma série de autores, como Alberto Nepomuceno, Glauco Velásquez, Villa-Lobos, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Radamés Gnatalli, Marlos Nobre, mas também Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth.

Clique para ouvir, de Villa-Lobos, A Lenda do Caboclo (0:00), New York Skyline (3:52) e A Fiandeira (6:50), na interpretação de Roberto Szidon:

https://www.youtube.com/watch?v=O_9gXfvzHCM

Contudo, seu nome ficaria indelevelmente inscrito no cenário internacional através de gravações para um dos selos mais importantes do mundo, o Deutsche Grammophon. Entre os registros extraordinários salientem-se as 10 Sonatas e a Fantasia op. 28 de Scriabine, feito largamente louvado, pois a integral do gênero era um dos desafios pianísticos. Igualmente gravaria as 19 Rapsódias Húngaras de Liszt, a transcendente Sonata Concorde de Charles Ives, os 4 Scherzos e os 4 Impromptus de Chopin, a 2ª Sonata de Rachmaninov e a 6ª de Prokofiev, assim como o 2º Concerto de MacDowell e o Concerto em Fá de Gershwin, ambos para piano e orquestra, entre outros mais registros que incluem obras de câmara, uma de suas predileções. Entre essas, saliente-se a integral das Sonatas de Béla Bartók para violino e piano, com Jenny Abel, que foi colocada como uma das mais importantes do século XX pela revista alemã Fono Forum. De Schumann, gravou ciclos de melodias com o barítono Thomas Quasthoff.

Clique para ouvir de Franz Liszt, a Rapsódia Húngara nº 15, na interpretação de Roberto Szidon:

https://www.youtube.com/watch?v=SGdosIzG20k

Distante dos palcos anos antes de sua morte, partiria aos 69 anos, vítima de ataque cardíaco em Düsseldorf, na Alemanha.

Aos 8 de Novembro de 1977 dei recital no auditório do SESI, na Av. Paulista, em São Paulo. Meses antes apresentara no MASP, na mesma Avenida, a integral dos Estudos para piano de Alexandre Scriabine. Em torno do compositor russo, Szidon e eu tivemos contatos. Ele compareceu ao auditório do SESI, pois no programa interpretei alguns poemas do compositor e, logo após o recital, participamos de programa ao vivo na TV Cultura unicamente sobre Scriabine, a convite do maestro Walter Lourenção. Conversamos e interpretamos algumas obras do imenso criador russo. As fotos do evento, sem muita nitidez, registrariam o encontro prazeroso. Estavam “perdidas” há décadas e, ao consultar velhos arquivos, encontrei-as, motivo a mais para a inserção de blog em homenagem ao imenso pianista Roberto Szidon, considerando ademais a efeméride a lembrar o sesquicentenário de nascimento de Scriabine (1872-1915). Dedicarei o próximo blog ao notável compositor russo.

Clique para ouvir, de Alexander Scriabine, a Sonata nº 2, op 19, na interpretação de Roberto Szidon:

https://www.youtube.com/watch?v=S8qry3WyPTs

Estou a me lembrar de dois fatos que evidenciam outras qualidades de Roberto Szidon. Naquele período, Szidon esteve em nossa casa mais de uma vez. De todos os pianistas que conheci com leituras à primeira vista rigorosamente fulminantes e precisas, conheci três singulares: Fritz Jank (1910-1970), Jean Doyen (1907-1982), meu mestre em Paris, e Roberto Szidon. Quanto a esse dom extraordinário, lembraria que, após nosso programa na TV Cultura, deixei-o à porta do prédio onde morava seu tio. Eram duas da madrugada e Szidon me disse que às sete voltaria ao Rio, pois às dez da manhã gravaria um LP com obras de Radamés Gnatalli. Perguntei-lhe se faziam parte de seu repertório. “Não, aprendi-as nesta última semana”, respondeu. Foi um dos pianistas referenciais de sua geração a deixar gravações que permanecerão.

Clique para ouvir, de Alexander Scriabine, a Sonata nº 4, op 30, na interpretação de Roberto Szidon:

https://www.youtube.com/watch?v=9G6osdfBA-o

Clique para ouvir, de Scriabine, o Poème Tragique op. 34, na interpretação de J.E.M.

Alexander Scriabin – Poème Tragique Opus 34 – José Eduardo Martins – piano – YouTube

Roberto Szidon was one of the greatest pianists of his generation worldwide, as testified by his discography, released by the highly respected label Deutsche Grammophon. I also comment on our past contacts thanks to a mutual interest in the works of the Russian composer Alexander Scriabine.