Centenário do notável compositor
“O que é a música?” pergunta Gabriel Fauré,
à procura do ponto intraduzível
da real quimera que nos eleva acima daquilo que é…
Vladimir Jankélévitch (1903-1985)
(“Fauré et l’inexprimable”, 1974)
Gabriel Fauré não é somente um grande músico,
um dos maiores da França e do mundo inteiro,
é também um artista cuja produção foi abundante.
Charles Koechlin (1867-1950)
(“Gabriel Fauré”, 1948)
Aos 30 de Setembro de 1974 homenageei Gabriel Fauré no cinquentenário da morte. O recital foi realizado no MASP e, posteriormente, em várias cidades brasileiras. Faço-o presentemente de maneira íntima no “Quinto recital privé” a lembrar o centenário da morte. Regina participa interpretando obras sensíveis do Grande Mestre francês. Sugiro a leitura do blog “Gabriel Fauré” (21/02/2009).
Se considerarmos o romantismo desde os primórdios do século XIX e a sua plena acolhida pelos nomes mais representativos da música durante todo o transcorrer do tempo, apesar da pluralidade de tendências que surgiram nas primeiras décadas do século XX e se expandiram – algumas estiolaram-se na sequência -, determinados compositores se manteriam fiéis aos princípios românticos, entre eles Sergei Rachmaninov (1873-1943). É sempre bom lembrar que Jean-Philippe Rameau (1683-1764) já apregoava que “a música é a linguagem do coração”.
Gabriel Fauré, decano do trio maior da música francesa da segunda metade do século XIX às décadas iniciais do século XX, que tem a completá-lo Claude Debussy (1862-1918) e Maurice Ravel (1875-1937), foi certamente um cultor do espírito romântico sublimado. Não é difícil entender que, mercê da sua linguagem musical plena de sapiência escritural, que se traduz através da perpetuação das consagradas conquistas anteriores, Gabriel Fauré foi um inovador. Se, como notável professor de músicos que permaneceram na história, reverencia o passado, o contraponto, apreende do turbilhão romântico processos voltados à modulação constante, ao diatonismo e ao cromatismo, utilizados com maestria, meios esses a chegar, por vezes, a ápices da dinâmica e retornando ao quase inaudível. Se tantas das suas obras vão diretamente ao coração, há quase um século cultores das tendências modernas e contemporâneas veem-no como um démodé, um antiquado. Um pianista meritoso no repertório contemporâneo, ao saber que eu daria um recital por ocasião do cinquentenário da morte (1974), disse-me que a sua música era pura perfumaria (sic). Lamentável, pois termos depreciativos propagados pelos pares tornar-se-iam um dos entraves a obliterar a divulgação plena nas salas de concerto, fato real. A lendária pianista e professora Marguerite Long (1874-1966) observa: “Se a música de Fauré ainda não tem no estrangeiro o público que merece pela beleza da sua mensagem, é muito simplesmente porque não é tocada com a frequência suficiente. Enquanto os epítetos ‘música íntima’, ‘charme’ e ‘meia-luz’ limitaram essa obra, rica em tantas maravilhas, ela permaneceu reservada aos círculos refinados” (“Au piano avec Gabriel Fauré”, Paris, Julliard 1963). Renomados concursos internacionais de piano ignoram entre as obras escolhidas aquelas de Gabriel Fauré. Não nos iludamos, pois a figura do empresário sempre teve ação fundamental na escolha dos repertórios, buscando sempre proteger compositores e as obras que repetidamente se instalaram nas mentes dos ouvintes. O ilustre compositor francês François Servenière (1961-), tantas vezes presente neste espaço, por sua vez ouviu em Paris vários comentários desabonadores a respeito da música de Fauré, insinuando ser ela destinada à terceira idade e às velhinhas (sic). Tardiamente, após a análise pormenorizada das linguagens musicais de Debussy, Ravel e de Fauré, Servenière se libertaria do negacionismo relativo a Fauré, escrevendo: “Apercebi-me de que a simplicidade musical ao piano era a tarefa de composição mais difícil, na qual o compositor francês era um mestre absoluto. Aprendi que era necessária uma ciência, e uma mente purificada de todas as técnicas e de todos os sinais, para ousar compor dessa maneira, com tanta facilidade, com tanta felicidade, com tanta clareza de forma, com tanta perfeição na narrativa e no fluxo de ideias. Parece-me que a música de Fauré raramente tem desígnios sombrios ou pressentimentos”.
O insigne pianista Alfred Cortot (1877-1962) classifica três períodos distintos da criação de Fauré: o primeiro “é o prazer voluptuoso e fugidio dos dias, a imagem charmosa e calorosa dos sonhos, as emoções e os desejos juvenis”, sendo que o segundo “é a patética exaltação da maturidade, luta apaixonada e reflexiva dos sentimentos”. Finalmente, na terceira fase, “um caráter indizível de beleza grave e de ardorosa contenção, e o métier musical depurado e que se imaterializa, conferindo uma espécie de serenidade filosófica” (“La Musique Française de Piano”, Paris, Presses Universitaires de France, 1948).
Tive o privilégio de estudar algumas criações de Fauré com Marguerite Long, uma das notáveis intérpretes do Mestre francês, dedicatária do Impromptu nº 4. Um dos seus conselhos referia-se aos graves da pianística de Fauré. Repetia as palavras do compositor, ”à nous les basses”, na essência, herança da proposta de Jean-Philippe Rameau a dar ênfase plena às fundamentais. Outro grande Mestre do piano com quem estudei em França foi o ilustre Jean Doyen (1907-1982), excelso intérprete de Fauré, que gravaria a integral para piano do compositor.
No programa, algumas obras essenciais para piano de Gabriel Fauré. As três Romances sans paroles op.17 pertencem a uma primeira fase escritural. De comunicação direta, já revelam o comprometimento do compositor com a sequência das prerrogativas românticas. Diferentemente das Pièces breves op. 84, mais austeras, mas a seguir o longo curso romântico. Vladimir Jankélévitch observa que Fauré, a partir do segundo lustro da década de 1910 até a morte em 1924, “renuncia às complacências e seduções de uma linguagem naturalmente adornada com todas as graças da ternura. Ele escolheu deliberadamente a porta estreita… Que segredos aprendeu ele para desdenhar assim as facilidades do prazer e do superficial?” (“Fauré et L’inexprimable”, France, Plon, 1974). Nas oito Pièces breves, Fauré está na soleira da “porta estreita” e as duas escolhidas por Regina bem apreendem o momento criativo.
A Barcarolle nº 12 op. 106 bis é a penúltima da série das Barcarolles e, mercê da destinação, apreende o ondulante que induz essa forma em compasso 6/8, a lembrar o movimento tranquilo das ondas. Marguerite Long comenta: “Abrimos as páginas das Barcarolles e descobrimos o mundo encantado. No mistério do seu silêncio interior, Gabriel Fauré descobriu as correspondências sonoras que traduzem as suas impressões fugidias ou possantes”.
Os cinco Impromptus formam um conjunto monolítico. Fauré explora a técnicas dos cinco dedos, tão glorificada em França, mas que não impede a presença de uma linguagem elegante, poética, a dar vasão à plena vivacidade. O 4º Impromptu foi dedicado à Marguerite Long, que o apresentou em primeira audição. Quanto ao 5º Impromptu, um verdadeiro “moto perpetuo”, Marguerite Long relembra: “Ao ouvir-me tocar esse derradeiro Impromptu pela primeira vez em 1909, Camille Saint-Saëns (1835-1921) disse-me, atônito após grande silêncio, mormente pela rapidez das passagens e das famosas descidas por tons inteiros, que ‘desnorteiam’ perigosamente os dedos: ‘Meu Deus, como é difícil’, justamente ele que foi um dos grandes pianistas do seu tempo e um grande amigo de Fauré”.
Clique para ouvir, de Gabriel Fauré, o Impromptu nº 5, na interpretação de J.E.M.:
https://www.youtube.com/watch?v=zzGn3VgfhrA
Entre os Nocturnes, certamente os nºs 4 e 6 têm sido os mais ventilados. A minha gravação dos dois Nocturnes está no Youtube. Em blog bem anterior comentei que estava a tocar o Nocturne 4 na sala de aula da USP quando meu ilustre colega, o saudoso compositor Gilberto Mendes (1922-2016), entrou silenciosamente e sentou-se na banqueta do piano ao lado. Ao terminar a execução, Gilberto, com a tranquilidade de sempre, disse-me: “Daria toda a minha obra para ser o autor desse Noturno”. Creio que Fauré ainda superaria a obra-prima que é o 4º Nocturne ao compor o de nº 6. Vladimir Jankélévitch comenta: “Inefável mistério de ambiguidade e de presença ausente. Existe apenas um sexto Nocturne. O sexto Nocturne é único e não envelhecerá jamais. Esse divino Nocturne inunda nossos corações”.
Duas das obras mais significativas do vasto repertório para piano de todos os tempos são, a meu ver, o Nocturne op. 63 em Ré bemol Maior e a Ballade op.19 para piano solo.
Clique para ouvir, de Gabriel Fauré, a Ballade op.19, recém inserida no Youtube, na interpretação de J.E.M.:
https://www.youtube.com/watch?v=5aWE9J_WBZQ
É motivo de alegria homenagear Gabriel Fauré no centenário de sua morte com obras que permanecem como criações inefáveis.
Five hundred years ago, I paid tribute to Gabriel Fauré on the fiftieth anniversary of his death with recitals at MASP in São Paulo and in various Brazilian cities. The “Quinto Encontro privé” honors the centenary of the French Grand Master’s death. Regina participates in the recital with expressive works.
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